Em texto recente, Pedro Marin relembra a aproximação, feita por Clausewitz, entre o carteado — dentre suas muitas variações — e a guerra. Diferenciando-se da metáfora com o xadrez, os jogos de cartas visam demonstrar um aspecto central do conflito bélico: a imposição de uma qualidade específica de incerteza. Claro que existem incertezas no xadrez, mas, pela própria estrutura lógica do jogo, ela se inscreve em um campo de possibilidades restrito e “evidente” (de forma abstrata), ainda que exaustivamente extenso. No carteado teríamos mais espaço para a efetividade do blefe, por exemplo. Um espaço entre a performance e o semblante, onde a ousadia e a cara de pau engendram efeitos reais. Um elemento também da política, por outros meios.
Essa lacuna — entre a lógica do xadrez e o blefe das cartas — também atravessa nossa experiência contemporânea mediada pela lógica da digitalização. Cada vez mais somos determinados pelo comportamento das próprias máquinas, de tal modo que a suposta distinção entre virtual e real revelou-se equivocada. Isso não quer dizer que a realidade é uma simulação, mas que a digitalização retroage sobre a própria realidade. Estamos vivendo, faz pouco mais de dez anos, as primeiras consequências disso na política brasileira: o que sucede as jornadas de junho é uma atualização da extrema-direita nacional (e internacional) que pauta a afirmação e gestão de lideranças políticas também pela influência digital — a candidatura de figuras do Movimento Brasil Livre já demonstrava a realização desse movimento.
Diferentes mas irmãos, MBL e Bolsonaro protagonizaram o levante extremista que toma a política das plataformas como meio de propaganda fundamental. O segundo, entretanto, conseguiu articular melhor as correlações de força fundamentais no país: numa teologia armamentista, do agro à milícia, o bolsonarismo agrupou e fermentou os estamentos mais retrógrados da sociedade brasileira. Apesar de partes da mesma hidra, esses dois elementos apresentavam uma certa não-coincidência entre velho e novo, mesmo que articulados nessa novidade do digital: a distinção entre os dois não é necessariamente ideológica, mas geracional e, assim também, é uma diferença de tipos-ideais. Esses tipos correspondem a diferentes relações com o predicamento neoliberal de subjetivação — ou seja, produzir a si mesmo a partir da lógica empresarial de mercado, com seu imperativo de desempenho e concorrência.[1] Enquanto o MBL tentou produzir, em confrontos antagônicos espetacularizados nas redes, personas políticas para essa cartilha – baseadas em uma retórica anti-esquerda; essa, por sua vez, identificada com o estado, a corrupção e a depravação de valores –; o bolsonarismo oferecia tudo isso com uma ênfase no empreendedorismo de milícias, fruto de sua identificação com a tortura militar da ditadura e o racismo clássico da violência que funda a sociabilidade brasileira – atualizado pela máscara de um patriotismo neocolonial.
Essas figuras fazem parte de um movimento, e precisamos compreendê-las em sua depuração. O atual candidato coach à prefeitura de São Paulo é também um case oferecido, tentando se lançar como a ponte entre influencer neoliberal e empreendedorismo contraventor: um modelo de antagonista cínico – que é “contra o sistema” usando e abusando dele para sua vantagem própria. Hoje, as caixas de comentário dos conteúdos digitais de sua campanha, em perfis das plataformas de vídeos curtos, já demonstram, nas postagens repetidas e automatizadas, que Bolsonaro e Enéias são referências na forja marqueteira de sua identidade política.
Nessas postagens robotizadas aparece também o nome de David Goggins, um famoso ex-militar da marinha americana e best-seller com sua história de superação, sendo atleta de resistência em diversas modalidades, com recorde no Guinness Book, palestrante e, enfim, um notório coach: figura de identificação e transferência, no ideário neoliberal, como um modelo de self made man contra tudo e contra todos — notável nos livros “Can’t Hurt Me”, “Built not Born” e “Never Finished”. Essa referência é central, pois é dessa identificação que se trata boa parte da efetividade dessa campanha: resiliência (mais uma palavra do léxico neoliberal) frente à dureza, essa realmente explícita, da realidade. Imaginar-se inalcançável, imbatível, invulnerável; cumprir uma função de ideal.[2]
Leia também – Eleições em São Paulo: o xadrez e o carteado
Justamente por compreender o eleitor como “multifacetado na era do hiperconsumo”, Marçal também investe em um Weltgeist: o modelo do empresário de si, bem sucedido como coach e influenciador digital, e com alcances inquestionáveis! Oferecendo “combatividade e esperança” – ainda que cínicas –, o candidato ecoa em espaços de onde o progressismo liberal se isolou, não por falta de acesso, mas por ser muitas vezes inócuo em termos de identificação. Como disse Marin, “quando a vida é dura, bom-mocismo demais parece estupidez ou hipocrisia”, e é esse bom-mocismo que torna inócua a oposição “de esquerda”, pois liberal ao opor o candidato com seu moralismo invertido. “A combatividade de Pablo nos debates não é tão violenta quanto a vida rotineira; o comportamento ajustado, típico dos candidatos tradicionais, é que é celestial” – é essa identificação, com o comportamento ajustado de um tipo ideal de “candidato tradicional” que morreu.
Enquanto o progressismo, restrito a um delírio normativo liberal, debate as regras do bom convívio ideal, o meme – que até ontem circulava na internet como exemplo do mentiroso mor, epítome de sua própria arché – ganha nova notoriedade como candidato à prefeito da cidade de São Paulo (após ter sido o 11° deputado federal mais votado de São Paulo da última eleição, com candidatura indeferida pelo TSE por falta de documentos). Influencer, coach, caozeiro – Pablo Marçal representa um tipo de antipolítica que está aí para ficar, ao menos que seja expulsa. Sua retórica é apelativa e sua popularidade, construída através da dinâmica publicitária também necessariamente apelativa das redes, converte-se em uma forma de engajamento – palavra cara à gramática da influência digital, e fundamental para os processos de identificação hoje – que é quase autônoma, sendo automatizada pela infraestrutura digital.
As redes sociais, plataformas privadas de comunicação e venda, foram tomadas como “ágoras digitais”, ao mesmo tempo em que se naturalizou seu caráter de mercadoria, como já é de se esperar. Acreditamos que é possível construir política através delas, ao mesmo tempo que pouco encaramos o caráter antipolítico das próprias plataformas. Nas plataformas, ganham visibilidade mais facilmente aqueles que retroalimentam os fatores fundamentais dessa antipolítica em algum grau. Marçal sabe disso e entra em batalha política pelo campo da direita, disputando com o próprio bolsonarismo – como ocorreu ao ser barrado do trio de Bolsonaro durante manifestação de sábado na Av. Paulista. O pastor Silas Malafaia, organizador do evento, afirmou: “esse palhaço pensa que a gente é otário. Ele chegou no final, com o ato já encerrado, e queria subir no trio. Não. Acabou, não sobe. […] Sabe o que ele quer? Fazer cortes para a campanha dele.” Além disso, completou dizendo que o candidato quer “lacrar […], dar uma de vítima”, tendo chegado no final do evento por temer problemas com Alexandre de Moraes. “É um frouxo”, disse o Pastor. Bolsonaro aparentemente disparou: “canalha”; “vagabundo”!
Todo esse quiprocó talvez indique algo da própria dinâmica dessa antipolítica. Pensando em uma “crítica construtiva” às campanhas de esquerda, talvez Marin tenha tangenciando uma questão que é fundamental para compreendermos não só o candidato coach-influencer, mas as condições que o tornam possível: não se trata do publicitário tomando o lugar do estrategista, mas do próprio marketing se confundir com a guerra e vice versa – ou seja, uma dissolução da fronteira entre concorrência e conflito. Marçal já percebeu isso e, em um cenário de guerra e terra arrasada, aparece não enquanto um engenheiro de obra pronta, mas como empreendedor de ruínas. Para quem se encontra entre escombros, isso parece melhor do que qualquer projeto de administração do caos.
Sua campanha eleitoral, entretanto, parece uma piada mal contada: tanto investiram em sua inicial que a ironia desponta no repetitivo “faz o M”. Fica óbvio para quem não é otário que se der M, vai dar Merda. Enquanto um cinismo niilista quer jogar qualquer merda no ventilador, o progressismo é cínico ao ostentar mãos “limpas”. Resta saber com quem “o eleitor” mais se identifica.
(*) Cian Barbosa é flamenguista e morador do Rio de Janeiro. Bacharel em sociologia (UFF), doutorando em filosofia (UNIFESP) e psicologia (UFRJ), pesquisa teoria do sujeito, crítica da cultura, violência, tecnologia, ideologia e digitalização; também é integrante da revista Zero à Esquerda, tradutor e ensaísta, além de professor e coordenador do Centro de Formação. Ministra o curso “Fantasmas na Máquina – – Inteligências Artificiais, Psicanálise e Crítica da Digitalização” (de 22/09/24 a 13/10/24)