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Losurdo: “A luta para romper o monopólio da tecnologia é revolucionária”

Como lembrança de um ano do falecimento de Domenico Losurdo, a Revista Opera traz uma entrevista deste grande pensador marxista ainda inédita em Português.
por Manos Fuera de China | Tradução de Gabriel Deslandes
Losurdo durante passagem por São Paulo, em setembro de 2017. (Foto: Pedro Marin / Revista Opera)

Como lembrança de exato um ano do falecimento do filósofo italiano Domenico Losurdo, a Revista Opera traz uma entrevista deste grande pensador marxista ainda inédita em Português. A entrevista foi realizada por Tian Shigang, da Chinese Social Sciences Today, e publicada em dezembro de 2014 no blog Manos Fuera de China. Losurdo analisa a relevância histórica das Revoluções Russa e Chinesa para o progresso da humanidade, disserta sobre a luta secular da China contra colonialismo e o imperialismo e ressalta as contribuições para o marxismo do também italiano Antonio Gramsci. Aproveitamos a data também para relembrar nossos leitores das duas entrevistas realizadas por Pedro Marin e André Ortega com Losurdo durante suas passagens no Brasil, no início e final de 2017.

Em 2005, foi publicado seu livro Fuga da História? – A Revolução Russa e a Revolução Chinesa Vistas de Hoje.[1] O que te induziu a escrevê-lo?

A primeira edição do livro foi publicada em 1999. Era o momento em que o fim da Guerra Fria era interpretado como o fracasso irremediável de qualquer tentativa de construir uma sociedade socialista, como o triunfo definitivo do capitalismo e até mesmo como o “fim da história”. No Ocidente, esse modo de ver as coisas abriu uma lacuna na própria esquerda: mesmo os comunistas, ainda que declarassem que queriam se manter fiéis aos ideais do socialismo, acrescentavam que eles não tinham nada a ver com a história da URSS, nem com a história da China, onde, segundo eles, havia ocorrido a “restauração do capitalismo”. Para me opor a essa “fuga da história”, expliquei a história do movimento comunista desde a Rússia da Revolução de Outubro até a China que emergiu das reformas de Deng Xiaoping.

Na sua opinião, em que base a URSS foi desmembrada?

Em 1947, quando a política de contenção foi anunciada, seu teórico, George F. Kennan, explicou que era necessário “aumentar enormemente as tensões (strains) a serem suportadas pela política soviética”, a fim de “promover medidas que acabassem derrubando ou abrandando o poder soviético”. Nos dias de hoje, a política dos EUA em relação à China não é muito diferente, embora a China tenha acumulado uma grande experiência política.

Além da contenção, o que determinou o colapso da URSS foram suas graves fraquezas internas. Convém refletir sobre a famosa tese de Lênin: “Não há revolução sem teoria revolucionária”. O Partido Bolchevique, sem dúvida, tinha uma teoria para a conquista do poder; porém, se por revolução se entende não só a destruição da velha ordem, mas também a construção da nova ordem, os bolcheviques e o movimento comunista careceram substancialmente de uma teoria revolucionária. Evidentemente, não se pode considerar que uma teoria da sociedade pós-capitalista a ser construída seja reduzida à expectativa messiânica de um mundo em que os Estados, as nações, o mercado, o dinheiro etc. tenham desaparecido por completo. O PCUS cometeu o grave erro de não fazer qualquer esforço para preencher essa lacuna.

Na sua opinião, que características e significados têm a Revolução Chinesa?

No início do século XX, a China fazia parte do mundo colonial e semicolonial, subjugada pelo colonialismo e pelo imperialismo. Um marco histórico foi a Revolução de Outubro, que desencadeou e promoveu uma onda anticolonialista de dimensões planetárias. Então, o fascismo e o nazismo foram a tentativa de revitalizar a tradição colonial. Em particular, a guerra desencadeada pelo imperialismo de Hitler e pelo imperialismo japonês, respectivamente, contra a União Soviética e contra a China, foram as maiores guerras coloniais da história, de modo que Stalingrado na União Soviética e a Longa Marcha e a Guerra de Resistência contra o Japão na China foram duas grandiosas lutas de classes, que impediram que o imperialismo mais bárbaro levasse a cabo uma divisão de trabalho com base na redução de grandes povos a uma massa de escravos a serviço das supostas raças dos senhores.

Contudo, a luta pela emancipação dos povos em condições coloniais e semicoloniais não terminou com a conquista da independência política. Já em 1949, prestes a tomar o poder, Mao Tsé-Tung insistiu na importância da construção econômica: Washington queria que a China fosse “reduzida a viver da farinha americana”, que “acabasse sendo uma colônia americana”. Ou seja, sem a vitória na luta pela produção agrícola e industrial, a vitória militar acabaria sendo frágil e vazia. De alguma forma, Mao previu a transição da fase militar para a fase econômica da revolução anticolonialista e anti-imperialista.

O que acontece nos nossos dias? Os EUA estão transferindo para a Ásia a maior parte de seu dispositivo militar. Na Agência Reuters em 28 de outubro de 2011, pode-se ler que uma das acusações de Washington contra os dirigentes de Pequim é que eles encorajam ou impõem a transferência de tecnologia ocidental para a China. Está claro: os EUA pretendem preservar o monopólio da tecnologia para continuar exercendo sua hegemonia e até um domínio neocolonial indireto; em outras palavras, ainda hoje, a luta contra o hegemonismo também surge em termos de desenvolvimento econômico e tecnológico. É um aspecto que, infelizmente, a esquerda ocidental nem sempre consegue entender. É preciso enfatizá-lo com força: revolucionária não é apenas a longa luta com a qual o povo chinês pôs fim ao Século das Humilhações e fundou a República Popular; revolucionária não é somente a construção econômica e social com a qual o Partido Comunista Chinês libertou centenas de milhões de homens da fome; a luta para romper o monopólio imperialista da tecnologia é também uma luta revolucionária. Marx nos ensinou isso. Sim, ele nos ensinou que a luta para superar, no âmbito da família, a divisão patriarcal do trabalho já é uma luta revolucionária; seria muito estranho que a luta para acabar, a nível internacional, com a divisão do trabalho imposta pelo capitalismo e do imperialismo não fosse uma luta de emancipação. É a luta para liquidar definitivamente esse monopólio ocidental de tecnologia, que não é algo natural, mas sim resultado de séculos de dominação e opressão!

Em 2005, foi publicado seu livro Contra-história do liberalismo,[2] que obteve grande sucesso (em um ano, foi reeditado três vezes e depois traduzido para várias línguas). O que esse título significa?

Meu livro não ignora os méritos do liberalismo, que evidencia o papel do mercado no desenvolvimento das forças produtivas e salienta a necessidade de limitar o poder (ainda que para somente uma pequena comunidade de privilegiados). O Contra-história do liberalismo polemiza com a auto-exaltação e a visão apologética para aqueles que se entregam ao liberalismo e ao Ocidente liberal. É uma tradição de pensamento dentro da qual a exaltação da liberdade está ligada a terríveis cláusulas de exclusão em detrimento das classes trabalhadoras e, especialmente, dos povos colonizados. John Locke, pai do liberalismo, legitima a escravidão nas colônias e é acionista da Royal African Company, a empresa inglesa que administra o tráfico e o comércio de escravos negros. Porém, para além das personalidades individuais, o importante é o papel dos países que melhor incorporam a tradição liberal. Um dos primeiros atos de política internacional da Inglaterra liberal, nascida da Revolução Gloriosa (1688-1689), é assumir o controle do monopólio do tráfico de escravos negros.

Mais importante é o papel da escravidão na história dos EUA. Durante 32 dos primeiros 36 anos de vida nos Estados Unidos, a presidência do país foi ocupada por proprietários de escravos. E isso não é tudo. Durante várias décadas, o país se dedicou a exportar a escravidão com o mesmo zelo com que hoje pretende exportar “a democracia”: em meados do século XIX, reintroduziram a escravidão no Texas, território recém-arrancado do México após uma guerra.

É verdade que primeiro Inglaterra e, em seguida, os Estados Unidos foram obrigados a abolir a escravidão, mas o lugar dos escravos negros foi ocupado pelos coolies chineses e indianos, por sua vez submetidos a uma forma disfarçada de escravidão. Além disso, após a abolição formal da escravatura, os afro-americanos continuaram a sofrer uma opressão tão feroz que um eminente historiador americano, George M. Fredrickson, escreveu: “os esforços para preservar a ‘pureza da raça’ nos estados do sul dos Estados Unidos serviram de prelúdio, em alguns aspectos, para a perseguição desencadeada pelo regime nazista contra os judeus na década de 30 do século XX”.

Quando o regime de supremacia branca, opressão e discriminação racial contra todos os negros começa a rachar nos EUA? Em dezembro de 1952, em plena discussão sobre a integração nas escolas públicas, o ministro da Justiça dos EUA envia à Suprema Corte uma carta eloquente: “A discriminação racial joga água ao moinho da propaganda comunista e também lança dúvidas entre as nações amigas sobre a nossa devoção na fé democrática”. Washington – observa C. Vann Woodward, historiador americano reconstrói que esse episódio – corria o risco de se alienar em relação às “raças de cor” não só no Oriente e no Terceiro Mundo, mas também em seu próprio país. Só então a Suprema Corte decidiu declarar inconstitucional a segregação racial nas escolas públicas.

Nessa história, há um paradoxo. Hoje, Washington não se cansa de censurar a China por sua falta de democracia; mas deve-se notar que um elemento essencial da democracia, a superação da discriminação racial, só foi possível nos Estados Unidos graças ao desafio representado pelo movimento anticolonialista mundial, do qual a China era e é parte.

A meu ver, entre as muitas edições italianas do Manifesto do Partido Comunista, três se destacam: o de Antonio Labriola, o de Palmiro Togliatti e a sua de 1999. De acordo com você, que significado tem este trabalho fundamental de Marx e Engels para os marxistas hoje?

Na introdução à edição italiana do Manifesto do Partido Comunista, tentei reconstruir o século e meio da história desde a publicação, em 1848, desse texto extraordinário. Um confronto pode nos ajudar a entender seu significado. Oito anos antes, outra grande personalidade da Europa no século XIX, Alexis de Tocqueville, publicou o segundo livro Da Democracia na América e, em um capítulo central, afirma já no título que “as grandes revoluções serão cada vez mais raras”. Todavia, se olharmos para um século ou um século e meio após o ano (1840) em que o liberal francês faz essa afirmação, vemos que talvez seja o período mais abundante em revoluções da história mundial.

Sem dúvida: ao prever a rebelião contra o capitalismo, contra um sistema que envolve a “máquina de processamento” do proletariado e sua degradação em “instrumentos de trabalho”, em “máquina acessórias” para o capital “independente e impessoal”, o Manifesto do Partido Comunista soube olhar mais longe. Ao descrever com lucidez extraordinária e clarividência o que hoje chamamos de globalização, Marx e Engels estão bem conscientes de que esse é um processo contraditório, caracterizado (no contexto do capitalismo) por crises colossais de superprodução que envolvem a destruição de enormes quantidades de riqueza social e a miséria de enormes massas de homens e mulheres. É também um processo repleto de conflitos que podem até levar a uma “guerra industrial de aniquilação entre as nações”, o que nos leva a pensar sobre a Primeira Guerra Mundial.

Contra esse mundo, o Manifesto do Partido Comunista evoca tanto as revoluções proletárias como as “revoluções agrárias” e de “libertação nacional”, de modo que Marx e Engels adiantam um cenário que se produzirá no Terceiro Mundo, como, por exemplo, na China.

Quanto à China, uma última consideração pode ser feita. O Manifesto Comunista prevê o surgimento de uma economia globalizada caracterizada por “novas indústrias, cuja introdução se torna uma questão de vida ou morte para todas as nações civilizadas, indústrias que já não produzem matérias-primas locais, mas matérias-primas procedentes das regiões mais remotas, e cujos produtos são consumidos não só no interior do país, mas em todas as partes do mundo”. Portanto, embora tenha como referência a Europa, o texto de Marx e Engels acaba dando dicas valiosas para países do Terceiro Mundo que querem alcançar um desenvolvimento econômico independente.

Quais foram, na sua opinião, as contribuições de Antônio Gramsci à teoria marxista?

Eu acho que as contribuições do trabalho desse grande pensador foram, pelo menos, quatro:

a) Gramsci pôs em evidência a importância da “hegemonia” para a conquista e preservação do poder político. Em um texto de 1926, explica: o proletariado só demonstra sinais de ter uma consciência de classe madura quando ele percebe sua classe de pertencimento como o núcleo dirigente de um bloco social muito maior, sendo chamado a conduzir a revolução até a vitória.

b) Em segundo lugar, Gramsci está plenamente ciente da complexidade envolvida no processo de construção do socialismo. No começo, será “o coletivismo da miséria, do sofrimento”. Mas ele não pode ficar nisso. O socialismo tem que empreender o desenvolvimento das forças produtivas. Nesse quadro deve ser colocada a importante posição tomada por Gramsci sobre a NEP (Nova Política Econômica, introduzida no final do “comunismo de guerra”). A realidade da URSS daquela época nos coloca na presença de um fenômeno “nunca visto na história”: uma classe politicamente “dominante” que se encontra “globalmente em condições de vida inferiores às de certos elementos e estratos da classe dominada e submetida”. As massas, que continuam a sofrer uma vida de privações, estão desorientadas pelo espetáculo do “nepman [o homem do NEP] vestindo seu casaco de pele, que tem à sua disposição todos os bens da terra”, mas isso não deve ser motivo de escândalo ou rejeição, pois o proletariado, o mesmo que não pode conquistar o poder, também não pode mantê-lo se não for capaz de sacrificar interesses particulares e imediatos aos “interesses gerais e permanentes da classe”. Trata-se, é claro, de uma situação transitória. O que Gramsci sugere aqui pode ser útil para a esquerda ocidental entender a realidade de um país como a China de hoje.

c) Gramsci nos dá algumas indicações valiosas sobre outro aspecto. Devemos imaginar o comunismo como a dissipação total não só dos antagonismos de classe, mas também do Estado e do poder político, bem como das religiões, nações, a divisão do trabalho, o mercado, qualquer fonte potencial de conflito? Questionando o mito da extinção do Estado e sua dissolução na sociedade civil, Gramsci observa que a própria sociedade civil é uma forma de Estado; também salienta que o internacionalismo não tem nada a ver com ignorar as peculiaridades e identidades nacionais, que persistem por muito tempo após a queda do capitalismo; quanto ao mercado, Gramsci considera que seria apropriado falar de “mercado determinado”, em vez de mercado no abstrato. Gramsci nos ajuda a superar o messianismo, que dificulta seriamente a construção da sociedade pós-capitalista.

d) Finalmente, apesar de condenar o capitalismo, os Cadernos do Cárcere evitam a interpretação da história moderna e das revoluções burguesas como um tratado sobre “teratologia”, ou seja, um tratado que lida com monstros. Os comunistas devem aprender a criticar os erros, por vezes graves, de Stálin, Mao e outros líderes, sem reduzir esses capítulos da história do movimento comunista à “teratologia”, a uma história de monstros.

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Fontes:

[1] – ¿Fuga de la historia? La revolución china y la revolución rusa hoy, tradução de Alfredo Bauer, Cartago, Buenos Aires, 2001.

[2] – Contrahistoria del liberalismo, tradução de Marcia Gasca, Eds. de Intervención Cultural, Mataró, 2007.

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