Desde que vivo, ouço de minha mãe que a única coisa certa na vida é a morte. Costumo pensar, tendo-a portanto como inevitável, o que faria se, quase morrendo, escapasse por sorte. São as mortes estúpidas, é claro, que me vêm à cabeça.
Pescando nas pedras escorrego, e vejo por microsegundos, confundida com a água onde sangrarei como um porco, a silhueta fúnebre… mas recupero o equilíbrio numa passada e me salvo. Pensarei sobre a silhueta por alguns minutos, talvez, e a esquecerei. Não pensarei em caixões, velas e cemitérios.
Aguardo o trem e, distraído, talvez conversando, não percebo que ele já chega – por pouco o demônio metálico não me pega pela cabeça. Talvez as pernas tremam momentaneamente, e anote no cérebro que o mundo é sempre muito perigoso – para ele, o melhor remédio é manter a atenção sempre. Tomada a nota, logo esqueço do ceifador sinistro, dos choros dos familiares, das rosas.
Mas que faria eu se, à beira da morte, escapasse somente para saber que ela logo vem me tomar em seus braços? Que pouco a pouco ela me carrega, que é ela quem seca minhas lágrimas? E que, afinal, nessa luta só ela é vencedora – e já me sinto cansado.
Me pergunto se não é assim que se sente o general Eduardo Villas Bôas. Gaúcho de Cruz Alta, galgou como um potro livre a hierarquia militar, de 1967 – ano em que entra para a Escola Preparatória de Cadetes do Exército – até 2011, quando chega à patente máxima da instituição. Quatro anos depois, tornou-se Comandante do Exército Brasileiro. Foi nessa posição, em 2016, quando começou a sentir os primeiros sintomas de uma doença degenerativa neuromotora, a ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica), que, sem cura, progressivamente enfraquece os músculos até que as capacidades de andar, falar, e respirar sejam tomadas por completo.
Mas o comandante não se abateu. Da posição de Comandante do Exército, conseguiu ainda uma outra posição – não muito clara, apesar de sob holofotes – se convertendo num garganteiro da República que, via Twitter, faz seus pronunciamentos políticos. Em 3 de abril de 2018, quando o Supremo se preparava para decidir sobre o Habeas Corpus para o ex-presidente Lula, o general fez sua grande estreia: “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais.”
A peleja do general contra o tempo prosseguiu. Villas Bôas sabatinou candidatos, deu entrevistas em que relembra-nos sobre a separação do Exército e da política, e recebeu do atual presidente, Jair Bolsonaro, a garantia de que suas conversas “morrerão entre eles“.
Mas a morte é coisa certa. No último dia 2, Villas Bôas foi internado no Hospital das Forças Armadas, em Brasília, com dificuldades respiratórias. No dia 6, foi transferido para o Sírio Libanês, em São Paulo, e chegou a ficar na UTI. Ele disse certa vez que ouviu de um médico uma coisa muito importante: viver cada dia, um dia após o outro, sem se prender no passado e sem se fixar no futuro. De fato, Villas Bôas parece querer aproveitar o máximo seus dias – mas não consegue seguir a última parte do conselho. Teve alta no sábado (12), e na quarta (16), às vésperas de mais um julgamento no STF que pode alterar a situação do hoje preso ex-presidente Lula, o ex-comandante voltou a fazer pronunciamentos via Twitter. Disse que “vivemos um novo período em que as instituições vêm fazendo grande esforço para combater a corrupção e a impunidade”, e que “é preciso manter a energia que nos move em direção à paz social, sob pena de que o povo brasileiro venha a cair outra vez no desalento e na eventual convulsão social.” Citando Ruy Barbosa, o anticomunista e ex-ministro da Fazenda de Deodoro da Fonseca que, de tão afeito aos Estados Unidos – votou contra a doutrina Drago, que fazia frente à aplicação da doutrina Monroe -, inspirou-se em sua bandeira para o desenho da flâmula brasileira. Sob a égide de Ruy Barbosa, o jurista, Villas Bôas ameaçou o Supremo Tribunal.
Cá está a razão das perguntas que me faço sobre a morte: Villas Bôas não escorregou no lodo, não se distraiu na plataforma; foi internado, abatido por uma doença que o destrói dia-a-dia. E a despeito de sua dificuldade de usar um computador – o ex-general não digita mais -, quatro dias depois de receber alta, fez questão de se pronunciar nas redes sociais. É ao que você, caro leitor, saído há pouco do hospital e às portas da morte, dedicaria seu esforço?
Talvez Villas Bôas tenha se inspirado pela visita, produto de cancelamento da agenda presidencial, que recebeu de Jair Bolsonaro. Jair Bolsonaro, que, aliás, na mesma quarta, recebeu pela manhã três ministros do STF que decidirão sobre a questão da segunda instância: Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli.
Toffoli que, por sua vez, em agosto, disse à Veja que entre abril e maio o Brasil esteve à beira de uma crise institucional que envolvia a rejeição de políticos, empresários e militares a Bolsonaro, declarando ainda que um dos generais próximos do presidente chegou a consultar um ministro do STF sobre a possibilidade de mover suas tropas a despeito da ordem presidencial.
No cozido brasileiro, agora temperado com a disputa entre o presidente e seu partido, a cozinha cheira mal, com algumas perguntas que ficam no ar: o que Bolsonaro discutiu com Villas Bôas na quarta? E com os ministros do Supremo? Quem foi o general “próximo do presidente” que consultou o STF sobre a possibilidade de um golpe? Estaria o País de novo à beira de uma “crise institucional”? E que áudios afinal têm o tal Delegado Waldir do presidente, a quem não vacilou em chamar de “vagabundo”?
Enquanto o caldo engrossa, além da morte, cá mais uma certeza: no Brasil, ao contrário do que tanto se pensou e a despeito do silêncio midiático e das instituições, o Partido Fardado está bem vivo. Talvez por isso Villas Bôas, afinal, não se dedique a pensar sobre a morte. Nem sempre ela é inevitável.