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Carta no Coturno: A entrevista de Villas Bôas e os bombeiros da história [Parte 5]

Não se trata portanto de uma "luta de intenções" entre os militares "democratas" e os que buscam o poder; trata-se de uma luta real, concreta, política.

por Pedro Marin | Revista Opera
(Foto: Exército Brasileiro)

O que segue é a quinta parte da série de artigos “Carta no Coturno.” A leitura dos artigos anteriores é recomendada: primeira parte, segunda parte, terceira parte, quarta parte.


Após Roma arder no episódio que ficou conhecido como o Grande Incêndio de Roma (64 d.C), irromperam boatos sobre o planejamento de Nero, então imperador, na ignição do desastre. Tácito escreveu: “Nem por indústria humana, nem por larguezas do imperador, nem por sacrifícios aos deuses, foi conseguido afastar a má fama de que o incêndio tinha sido mandado.”

Na Nova Roma brasileira (e agora também temos, nós mesmos, um tipo de Nero), 2018 d.C, são muitos os bombeiros da história, que desejam afastar a ideia de que os militares cada vez mais conquistam poder. General Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército, é também uma espécie de bombeiro. O general concedeu nesta semana uma entrevista à Folha de São Paulo, na qual fica evidente – como havia já dito em artigos anteriores – que Villas Bôas é o tipo de bombeiro que, fruto da piromania, leva a vida criando incêndios e apagando-os. Diz ele: “Estamos tratando com muito cuidado essa interpretação de que a eleição dele representa uma volta dos militares ao poder. Absolutamente não é […] institucionalmente há uma separação.” Depois, reconhece que a associação entre o governo Bolsonaro e os militares será “inevitável”, “até porque a população de certa forma estava pedindo isso […] uma reclamação sobre a questão dos valores. As Forças Armadas são consideradas um repositório de valores mais conservadores.”

Lembrei-vos do Grande Incêndio. Até hoje há discussão em relação à participação de Nero; argumenta-se que os incêndios eram comuns naqueles tempos, que Nero sequer estava em Roma quando do fogaréu, que o clima em julho era especialmente seco. Mas há um fato indisputável: frente à boataria, Nero culpou os cristãos, e passou a perseguí-los. Escreveu Tácito: “Assim pois, com o fim de extirpar o rumor, Nero inventou uns culpáveis, e executou com refinadíssimos tormentos os que, aborrecidos pelas suas infâmias, chamava o vulgo cristãos. […] A sua execução foi acompanhada por escárnios, e assim uns, cobertos de peles de animais, eram rasgados pelos dentes dos cães; outros, cravados em cruzes eram queimados ao cair o dia como se fossem luminárias noturnas.”

Na política as intenções só têm valor na medida em que, dando fruto a uma estratégia, vençam as resistências que a elas se opõem e se concretizem. De forma que é provável que Nero não tenha sido mandante do Grande Incêndio, sendo possível também que este tenha sido fruto de um acidente natural; mas não foi acidental a perseguição que se seguiu aos cristãos.

De igual maneira, é certo que haja dentro das Forças Armadas setores que não desejem a instituição de um poder militar no Brasil, mas é mais certo ainda que haja setores que o querem, e que estes setores cada vez mais capturam o poder para si. Não se trata portanto de uma “luta de intenções” entre os “democratas” e os que buscam o poder; trata-se de uma luta real, concreta, política. A equação política, com todas as suas posteriores variáveis, é entre a força daqueles que querem avançar e a força daqueles que querem impedir o avanço.

E se Villas Bôas é um “democrata”, como tantos bombeiros fazem questão de pontuar, é mais importante pontuar que sua força é pouca, tímida, e que se acovarda e concede: ele mesmo reconhece que quando tuitou suas notas na véspera da votação no STF sobre a prisão de Lula, “estivemos realmente no limite […] sentimos que a coisa poderia fugir ao nosso controle se eu não me expressasse.” Mais: se for verdade que Villas Bôas é um “democrata”, é também verdade que seu sentimento é inócuo, já que não lhe permite mantê-lo longe do “limite”, e ainda mais que inócuo, já que deixará seu posto no governo que toma posse em janeiro.

Insisto há algum tempo: o esforço de alguns generais em “ficar fora da política” não é uma negação deles em relação ao poder, mas em relação aos riscos do poder. Não querem fazer parte desta trupe, mas o fato, sabido pelos generais, é que farão, que serão associados ao governo eleito. Se Nero foi ou não responsável pelo Incêndio, repito: o fato é que o incêndio lhe impeliu à ação. Se o governo Bolsonaro estremecer, ruirá o verniz democrático deste senhores: serão impelidos a agir, porque, uma vez correndo riscos, buscarão o controle do destino: tanto no que se refere aos danos quanto ao que se refere às benesses. Para o incêndio basta a fagulha, e o clima no Brasil tem sido especialmente seco nestes tempos.

Adquira já “Golpe é Guerra – Teses para enterrar 2016”, de Pedro Marin:

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