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O mito de que a liberdade da Índia foi conquistada pela não-violência impede o progresso

A luta violenta na Índia era o preço pago pelos “terroristas” para que os não-violentos pudessem se sentar à mesa para negociar com os imperialistas
Justin Podur
O líder anticolonial indiano Mahatma Gandhi. (Foto: Av Elliott & Fry. / Domínio Público)

Se há uma falsa afirmação sobre a luta “não-violenta” que capturou mais fortemente a imaginação do mundo, é a afirmação de que a Índia, sob a liderança de Gandhi, derrotou o poderoso Império Britânico e conquistou sua independência por meio do método não-violento.

A luta pela independência da Índia foi um processo repleto de violência. O mito da não-violência foi imposto posteriormente. É hora de voltarmos à realidade. Usando trabalhos recentes sobre o papel da violência na luta pela liberdade da Índia, é possível compilar uma cronologia do movimento de independência em que a luta armada teve um papel decisivo. Algumas dessas fontes: The Last Heroes (Os últimos heróis), de Palagummi Sainath, A Revolutionary History of Interwar India (História revolucionária da Índia entre guerras), de Kama Maclean, Gentlemanly Terrorists (Terroristas cavalheiros), de Durba Ghosh, Royal Indian Navy Mutiny (Motim da Marinha Real Indiana), de Pramod Kapoor, de 1946: Last War of Independence, de Pramod Kapoor, o livro editado por Vijay Prashad, The 1921 Uprising in Malabar, e The Patient Assassin, de Anita Anand.

A não-violência jamais poderia derrotar uma potência colonial que havia conquistado o subcontinente por meio de níveis de violência quase inimagináveis. A Índia foi conquistada palmo a palmo pela Companhia Britânica das Índias Orientais por meio de uma série de guerras. Embora a Companhia Britânica das Índias Orientais tenha sido constituída em 1599, a maré virou contra a independência da Índia em 1757, na batalha de Plassey. Seguiu-se um século de domínio invasivo da Companhia – abordado no livro The Anarchy (A Anarquia), de William Dalrymple – com a política da Companhia e a imposição de fomes tendo assassinado dezenas de milhões de pessoas.

Em 1857, soldados indianos que trabalhavam para a Companhia se uniram a alguns dos poucos governantes indianos independentes que ainda não haviam sido destituídos para tentar expulsar os britânicos. Em resposta, os britânicos assassinaram um número estimado (por Amaresh Mishra, no livro War of Civilisations) de 10 milhões de pessoas.

O governo britânico assumiu o controle da Companhia e passou a governar a Índia diretamente por mais 90 anos.

De 1757 a 1947, além dos dez milhões de mortos somente na guerra de 1857, outros 30 milhões ou mais foram mortos pela fome, de acordo com os números apresentados pelo político indiano Shashi Tharoor no livro Inglorious Empire: What the British Did to India.

Um estudo de 2022 estimou outras 100 milhões de mortes em massa na Índia em decorrência do imperialismo britânico, somente do período entre 1880 a 1920. Médicos como Mubin Syed acreditam que essas fomes foram tão grandes e que ocorreram por um período tão prolongado que foram capazes de exercer pressão seletiva sobre os genes das populações do sul da Ásia, aumentando o risco de diabetes, problemas cardíacos e outras doenças que surgem quando há calorias em abundância, já que os corpos do sul da Ásia se adaptaram à fome.

No final, a luta pela independência contra os britânicos incluiu todos os métodos característicos da luta armada: organização clandestina, punição de colaboradores, assassinatos, sabotagem, ataques a delegacias de polícia, motins militares e até mesmo o desenvolvimento de zonas autônomas e um aparato governamental paralelo.

Uma cronologia da violenta luta pela independência da Índia

Em seu artigo de 2006, “India, Armed Struggle in the Independence Movement” (Índia, luta armada no movimento pela independência), o acadêmico Kunal Chattopadhyay dividiu a luta por independência em uma série de fases:

1905-1911: Terrorismo revolucionário. Um período de “terrorismo revolucionário” começou com o assassinato de um funcionário britânico da presidência de Bombaim em 1897 por Damodar e Balkrishna Chapekar, que seriam ambos enforcados. De 1905 a 1907, os combatentes da independência (considerados “terroristas” pelos britânicos) atacaram bilheterias de trens, correios e bancos e jogaram bombas, tudo para combater a divisão de Bengala em 1905. Em 1908, Khudiram Bose foi executado pelos imperialistas por “terrorismo”.

Esses “terroristas” de Bengala eram fonte de grande preocupação para os britânicos. Em 1911, os britânicos revogaram a divisão de Bengala, eliminando a principal queixa dos terroristas. Eles também aprovaram o Criminal Tribes Act (Lei das Tribos Criminosas), combinando suas inquietações sobre a continuidade de seu domínio com suas sempre presentes preocupações raciais. O ministro do Interior do Governo da Índia é citado no livro Gentlemanly Terrorists, de Durba Ghosh:

“Há um sério risco, a menos que o movimento em Bengala seja contido, de que os dacoits (bandidos) políticos e os dacoits profissionais de outras províncias possam se unir e que o mau exemplo dado por esses homens em uma província não guerreira como Bengala possa, se continuar, levar à imitação em províncias habitadas por raças lutadoras, onde os resultados seriam ainda mais desastrosos”.

Ghosh descreve mais alguns desses casos:

“Em Bengala, o Caso de Conspiração de Alipore, o Caso de Conspiração de Midnapore, o Caso da Gangue de Howrah e outros julgamentos de conspiração permitiram que o governo detivesse as pessoas envolvidas com grupos políticos secretos e clandestinos. Baseando-se em uma legislação de segurança centenária que incluía o Regulamento III de 1818, o governo também aprovou a Lei de Emenda à Lei Criminal Indiana de 1908 e a Lei de Defesa da Índia em 1915 para controlar a violência política contra o Estado”.

Mas, como argumenta Ghosh, a resposta imperialista não foi apenas a aprovação de leis draconianas. Pelo contrário, eles fizeram concessões – cada vez maiores – em relação à independência e a outras demandas dos “terroristas”, e tentaram recompensar desproporcionalmente seus interlocutores “não-violentos” do Congresso. Bengala foi reunificada; os britânicos mudaram sua capital de Calcutá para Deli para se afastar do movimento terrorista naquela província.

Lutas revolucionárias de 1914 a 1918: Com o fim do movimento Swadeshi de 1905 a 1907, teve início o que foi chamado, simplesmente, de “Movimento Terrorista”, de 1907 a 1917. Os terroristas começaram com um ataque ao tenente-governador de Bengala, Andrew Fraser, em Midnapore, em 1907. Durante a Primeira Guerra Mundial, o movimento Ghadar tentou derrubar o domínio britânico várias vezes – uma rebelião (frustrada) em fevereiro de 1915 liderada por Rash Behari Bose e outro ataque (frustrado) em Calcutá planejado para o dia do Natal de 1915. Os revolucionários de Bengala invadiram depósitos de armas, obtiveram ajuda militar da Alemanha, travaram uma batalha campal contra os britânicos em setembro de 1915 em Chasakhand e até mesmo operaram internacionalmente em lugares como os EUA e o Japão. Os líderes revolucionários Chittapriya Ray Chaudhuri e Jatindranath Mukherjee morreram nessa batalha.

A resposta dos britânicos aos movimentos terroristas em suas possessões coloniais foi aprovar leis de guerra: a Defence of the Realm Act (Lei de Defesa do Reino) na Irlanda e a Defence of India Act (Lei de Defesa da Índia). Mas também fazer concessões.

Ponto de virada em 1919: O massacre de Amritsar de 1919 foi um massacre de centenas de manifestantes que discordavam do desejo da Grã-Bretanha de estender indefinidamente as medidas de guerra por meio da Lei Rowlatt de 1919. Após o massacre, os britânicos se envolveram em uma orgia de violência racial e humilhação ritual, fazendo os indianos se arrastarem de joelhos pelas ruas, por exemplo. Depois de 1919, Gandhi também liderou uma campanha não-violenta, o movimento de não-cooperação. O que é menos conhecido, e é documentado por Durba Ghosh, é que o movimento terrorista estava em contato constante com Gandhi e os Nehrus (Motilal e Jawaharlal) durante todo esse período. Os britânicos aprovaram a repressiva Lei Rowlatt de 1919, mas também aprovaram a primeira Lei do Governo da Índia e as Reformas de Montagu Chelmsford, prometendo o autogoverno em um futuro distante.

Além disso, é preciso lembrar que, em 1919, os britânicos também travaram uma guerra malsucedida com o Afeganistão e invadiram, sem sucesso, a nova União Soviética. Esses conflitos militares violentos estabeleceram o contexto para as mudanças que os imperialistas seriam forçados a fazer na Índia.

Luta revolucionária no período entre guerras

Na história dos anos 1920, a face mais visível da luta indiana foi o movimento de não-cooperação de Gandhi. Mas também houve um levante no sul da Índia, em Malabar, em 1921, que os britânicos procuraram direcionar para uma orientação comunal e acabaram esmagando por meio da força.

As décadas de 1920 e 1930 foram um período de constantes atos de luta armada. Na década de 1920, a Hindustan Republican Association se envolveu em “roubos patrióticos”, como um em Kakori, após o qual quatro dos líderes foram enforcados e outros três condenados à prisão perpétua. Em 1929, Bhagat Singh e Batukeswar Dutt jogaram uma bomba na Assembleia Legislativa Central.

Em 1925 e 1930, os britânicos aprovaram duas leis que alteravam a lei criminal de Bengala. A emenda de 1930 entrou em vigor no dia 25 de março. No dia 18 de abril, o Exército Republicano Indiano, com Surya Sen e 60 terroristas, realizou um ataque ao arsenal de Chittagong:

“A invasão foi um ataque planejado de forma elaborada, no qual os revolucionários conseguiram ocupar os principais locais coloniais, incluindo o clube europeu, o arsenal da polícia e o escritório de telefones e telégrafos. Os invasores cortaram todas as comunicações com oficiais em outras partes da Índia, reuniram armas e esperavam aterrorizar os britânicos enquanto eles desfrutavam de uma noite de sexta-feira em seu clube.”

Também em 1930, Odisha assistiu a uma revolta tribal contra os britânicos, na qual os aldeões lutaram contra a polícia – Sainath cita conversas com alguns dos veteranos dessa revolta em Last Heroes (Últimos heróis), capítulo 2.

Em 1931, os britânicos enforcaram Bhagat Singh, Shivaram Rajguru e Sukhdev Thapar. Eles assassinaram Chandra Sekhar Azad em um parque em Allahabad. Também aprovaram a Lei de Supressão de Atentados Terroristas de Bengala em 1932, mas o terrorismo continuou.

Em 1935, os britânicos fizeram uma grande concessão, outra Lei do Governo da Índia, que expandiu as liberdades e prometeu aos líderes do Congresso que eles acabariam se tornando os governantes (na linha do tempo do imperialismo britânico). A contrapartida era que esses líderes indianos reprimissem os terroristas. Entre as armas britânicas estava a não-violência, incluindo o movimento de Desobediência Civil. Os líderes do Congresso sabiam, no entanto, que sem algum terrorismo, sua influência sobre os britânicos seria zero. Portanto, eles jogaram seu próprio jogo, apoiando discretamente os terroristas em alguns momentos, denunciando-os publicamente em outros, enquanto conduziam a desobediência civil dentro de uma estrutura de regras que envolvia a pena de prisão para os atores não-violentos e assassinato e enforcamento em mãos britânicas para os terroristas que não jogassem o jogo da desobediência civil. A luta violenta era o preço pago pelos “terroristas” para que os não-violentos pudessem se sentar à mesa para negociar com os imperialistas.

No capítulo 4 de Lost Heroes, Sainath conversa com o fabricante de bombas Shobharam Gaharwar, ativo no Rajastão e em outros lugares nas décadas de 1930 e 1940, que confirmou a onipresença da atividade de fabricação de bombas durante a luta pela independência:

“Éramos muito demandados naquela época! Eu estive em Karnataka. Em Mysore, Bengaluru, em todos os tipos de lugares. Veja, Ajmer era um centro importante para o movimento Quit India, para a luta. Assim como Benares [Varanasi]. Havia outros lugares como Baroda, em Gujarat, e Damoh, em Madhya Pradesh. As pessoas olhavam com esperança para Ajmer, dizendo que o movimento era forte nessa cidade e que seguiriam os passos dos combatentes da liberdade aqui. É claro que haviam muitos outros também”.

Quit India 1942 e desilusão: Para o livro Lost Heroes, Sainath conversou com veteranos da luta armada em Punjab e também no sul, na luta do povo de Telangana, liderada por Sundarayya. Conhecido como Levante de Telangana de 1946, foi uma luta que durou vários anos em uma área imensa e, além de batalhas com proprietários de terras feudais, policiais e capangas contratados, ele relata:

“Em seu auge, o Levante de Telangana se espalhou por quase 5 mil vilarejos. Afetou mais de três milhões de vidas em cerca de 25 mil quilômetros quadrados. Nos vilarejos sob seu controle, esse movimento popular estabeleceu um governo paralelo. Isso incluiu a criação de comitês gram swaraj (ou comunas de vilarejos). Cerca de um milhão de acres de terra foram redistribuídos entre os pobres. A maioria das histórias oficiais data o levante liderado pelos comunistas como tendo ocorrido entre 1946 e 1951. Mas grandes agitações e revoltas já estavam em andamento no local desde o final de 1943.”

Outro estado do sul, Tamil Nadu, foi palco de uma imensa luta antifeudal ao mesmo tempo que se desenvolvia o movimento Quit India de 1942. Sainath conversou com o veterano R. Nallakannu:

“Nós lutávamos com eles à noite, jogávamos pedras – essas eram as armas que tínhamos – e os expulsávamos. Às vezes, havia batalhas campais. Isso aconteceu várias vezes durante os protestos que ocorreram na década de 1940. Ainda éramos meninos, mas lutávamos. Dia e noite, com nosso tipo de armas!”

Em um vilarejo de Odisha, em agosto de 1942, os ativistas assumiram o controle e se declararam magistrados, começando a administrar a Justiça. Eles foram rapidamente presos, mas, uma vez encarcerados, começaram imediatamente a organizar os prisioneiros, como disseram a Sainath:

“Eles nos mandaram para uma prisão para criminosos. Nós aproveitamos ao máximo… Naquela época, os britânicos estavam tentando recrutar soldados para morrer na guerra contra a Alemanha. Por isso, fizeram promessas àqueles que estavam cumprindo longas penas como criminosos. Eles prometeram que qualquer pessoa que se alistasse para a guerra receberia 100 rúpias. Cada um de seus familiares receberia 500 rúpias. E eles seriam libertados após a guerra.

Fizemos campanha com os prisioneiros criminosos. Vale a pena morrer por 500 rúpias, por essas pessoas e suas guerras? Vocês certamente estarão entre os primeiros a morrer, dissemos a eles. Vocês não são importantes para eles. Por que deveriam ser a bucha de canhão deles?

Depois de um tempo, eles começaram a nos ouvir. Eles costumavam nos chamar de Gandhi, ou simplesmente de Congresso. Muitos deles desistiram do esquema. Eles se rebelaram e se recusaram a ir”.

Em Bengala Ocidental, Bhabani Mahato organizou a logística para os combatentes clandestinos na luta do movimento Quit India. O ativista Partha Sarati Mahato contou a Sainath como foi o processo:

“Apenas algumas famílias mais abastadas do vilarejo deveriam preparar refeições para o número de ativistas escondidos lá [na floresta] em um determinado dia. E as mulheres que faziam isso eram solicitadas a deixar a comida cozida em sua cozinha.

Elas não sabiam quem vinha e pegava a comida. Tampouco sabiam quem eram as pessoas para quem estavam cozinhando. A resistência nunca usou pessoas da aldeia para fazer o transporte. Os britânicos tinham espiões e informantes no vilarejo. O mesmo acontecia com os zamindars (governantes) feudais que eram seus colaboradores. Esses informantes reconheceriam os habitantes locais que levassem os carregamentos para a floresta. Isso colocaria em risco as mulheres e a clandestinidade. Eles também não podiam ter alguém identificando as pessoas que eles enviavam – provavelmente ao cair da noite – para coletar os alimentos. As mulheres nunca viam quem estava levando as refeições.

Dessa forma, ambos estavam protegidos da exposição. Mas as mulheres sabiam o que estava acontecendo. A maioria das mulheres do vilarejo se reunia todas as manhãs nos lagos, córregos e tanques – e as envolvidas trocavam anotações e experiências. Elas sabiam por que e para que estavam fazendo aquilo, mas nunca especificamente para quem.”

O Toofan Sena

Em 1943, o Toofan Sena, o braço armado do prati sarkar (ou governo provisório) de Satara, declarou independência do domínio britânico no estado indiano de Maharashtra. Sainath descreve o alcance dessa zona autônoma:

“Com sua sede em Kundal, o prati sarkar – um amálgama de camponeses e trabalhadores – funcionava de fato como um governo nas quase 600 aldeias sob seu controle, onde efetivamente derrubou o domínio britânico. O pai de Hausabai, o lendário Nana Patil, liderava o prati sarkar. Tanto o sarkar quanto o sena surgiram como desdobramentos de desilusão em relação ao movimento Quit India de 1942.

Nana Patil, assim como outros líderes, inclusive o capitão Bhau, lideraram um ousado roubo de trem em 7 de junho de 1943. ‘É injusto dizer que saqueamos o trem’, disse o capitão a Sainath. ‘Foi o dinheiro roubado pelos governantes britânicos do povo indiano que pegamos de volta.’ O capitão Bhau também se opôs à noção de que o prati sarkar era um ‘movimento clandestino’.

‘O que você quer dizer com governo clandestino?’, rosnou o capitão Bhau, irritado com meu uso do termo. ‘Nós éramos o governo aqui. O Raj Britânico (Governo da Coroa na Índia) não podia entrar. Até a polícia tinha medo do Toofan Sena’… Ele organizou o fornecimento e a distribuição [de grãos alimentícios], estabeleceu uma estrutura de mercado coerente e administrou um sistema judicial. Também penalizava agiotas, penhoristas e proprietários de terras colaboradores do Raj”.

Outro membro do Toofan Sena relatou a Sainath como eles puniam os informantes:

“Quando descobríamos um desses agentes da polícia, cercávamos sua casa à noite. Levávamos o informante e um colega dele para fora da aldeia.

Amarrávamos os tornozelos do informante depois de colocar uma vara de madeira entre eles. Ele era então mantido de cabeça para baixo e espancado com varas nas solas dos pés. Não tocávamos em nenhuma outra parte de seu corpo. Apenas as solas dos pés”. Não havia marcas visíveis no corpo dos pés para cima. Mas “ele não conseguiu andar normalmente por muitos dias”. Um poderoso desestímulo. E assim surgiu o nome patri sarkar [observação: em marati, a palavra ‘patri’ significa ‘vara de madeira’]. ‘Depois disso, nós o carregávamos nas costas de seu associado, que o levava para casa.”

O Exército Nacional Indiano

Em 1938, o Congresso Nacional Indiano viu Subhas Chandra Bose se tornar presidente. Ele era imensamente popular, com uma base de poder independente. Embora respeitasse Gandhi, não estava comprometido com a não-violência. Ele foi expulso do partido em 1939. Em 1941, durante a Segunda Guerra Mundial, Bose formou o Exército Nacional Indiano (ENI), apoiado pelo Japão Imperial, com o objetivo de libertar a Índia à força. No mesmo ano, Nehru foi transferido para a cadeia de Lucknow, onde passou um tempo com muitos terroristas presos. Quando o movimento de Gandhi “Quit India” foi esmagado, em 1942, em poucos meses, Bose e o ENI continuaram lutando, e Bose foi morto em 1945.

Preso por causa do jornalismo, H.S. Doreswamy, de Bengaluru, descreveu seu encontro com prisioneiros do Exército Nacional Indiano, cujo massacre ele testemunhou em 1943:

“Certa vez, quando estávamos na prisão em Bengaluru (1942-43), era meia-noite e um grupo de prisioneiros foi trazido. Eles entraram gritando slogans, e pensamos que eram mais do nosso povo. Mas não eram. Eram militares indianos. Disseram-nos que eram oficiais, mas não sabíamos ao certo. Não sabíamos suas patentes.

Havia quatorze deles, de diferentes estados. Eles haviam decidido deixar o exército britânico indiano e se juntar ao Exército Nacional Indiano (ENI) de Netaji Bose. Eles tentaram deixar o país. Estavam a caminho da Birmânia [atual Myanmar] quando foram presos. Todos os quatorze. Foram levados para Bengaluru e submetidos a uma corte marcial. E condenados à morte por enforcamento.

Nós interagimos com eles. Eles escreveram, com seu sangue, uma carta para todos nós. Ela dizia: ‘Estamos muito felizes por vocês estarem aqui, 500. Este país, este Bharat Mata, requer o sangue de muitas pessoas. Nós também somos parte integrante desse esforço. Também nos comprometemos a dar nossas vidas pela causa deste país’. Foi isso que eles escreveram… ‘Ouvimos dizer que todos eles foram postos em uma fila e mortos a tiros – todos eles – de uma só vez… Eles sabiam disso. Que estavam indo para a morte. Mas estavam muito alegres. Foi por isso que nos deram aquela carta escrita com sangue, endereçada a todos nós'”.

Quando os britânicos tentaram executar os oficiais da ENI por traição no simbólico Forte Vermelho, em Deli, acabaram gerando uma revolta. Em 1946, um motim naval centrado em Mumbai foi reprimido a um custo enorme para os britânicos: seu Império Indiano havia se desintegrado. Em seu livro sobre o motim naval, Pramod Kapoor observa que, embora o movimento “Quit India” tenha sido lançado em 1942, a independência ocorreu muito rapidamente após o motim naval de 1946. Uma análise da cronologia sugere que o motim foi mais decisivo do que a campanha não-violenta para a conquista da independência.

Os britânicos rapidamente dividiram o subcontinente, envenenaram o poço e o entregaram aos interlocutores escolhidos pelo Congresso Indiano.

Como disse H.S. Doreswamy: “Quando os britânicos deixaram o país, eles o fizeram com três fórmulas. Primeiro, formar o Paquistão e o Hindustão. Segundo, manter as pessoas dos dois países divididas em linhas comunais. E terceiro: esses 562 estados principescos eram livres para participar ou não dessa União Indiana.” A trama dos estados principescos foi frustrada pelo governo pós-independência, mas a trama comunal e a trama da divisão foram bem-sucedidas. O mesmo aconteceu com o patrocínio do mito de que a independência indiana surgiu de uma série de campanhas não-violentas, e não dos mesmos processos de libertação nacional por meio da luta armada, que ocorreram na Índia e em todos os outros lugares do mundo que enfrentaram uma situação semelhante.

Os danos causados pelo mito da não-violência

O mito da não-violência ajudou a preservar o feudalismo. Assim como a escravidão e a segregação nos EUA, o colonialismo na Índia foi derrubado pela violência. Mas, assim como nos EUA, o mito da não-violência causou danos reais à política da Índia. O sucessor espiritual de Gandhi, Vinoba Bhave, viajou pelo país tentando convencer os proprietários de terras a realizar uma reforma agrária voluntária (compare isso com as violentas reformas agrárias promulgadas na vizinha China, descritas no livro Fanshen por William Hinton).

A campanha de Vinoba Bhave foi uma campanha não-violenta de reforma agrária que manteve o feudalismo praticamente intacto na Índia. Ironicamente, Vinoba Bhave era conhecido por ter ameaçado os proprietários de terras com violência – declarando explicitamente que, ao ceder voluntariamente algumas terras, os proprietários de terras poderiam se salvar de uma futura revolução violenta. Mais uma vez, vemos líderes não-violentos colocando os pobres na posição de suplicantes, pedindo migalhas aos ricos com base em alguma possibilidade distante de revolução, em vez de trabalhar para organizar os pobres para essa revolução.

O mito da não-violência não produz sociedades não-violentas. Um dos argumentos centrais da não-violência, que remonta pelo menos a Gandhi, é que os meios não-violentos levam a fins melhores. Noam Chomsky colocou isso da seguinte forma no seu debate de 1967 com Hannah Arendt:

“Parece-me, pelo pouco que sabemos sobre esses assuntos, que uma nova sociedade surge das ações tomadas para formá-la, e as instituições e a ideologia que ela desenvolve não são independentes dessas ações; na verdade, elas são fortemente influenciadas por elas, são moldadas por elas de muitas maneiras. E é de se esperar que as ações cínicas e perversas, independentemente de sua intenção, inevitavelmente condicionem e prejudiquem a qualidade dos objetivos alcançados. Novamente, em parte, isso é apenas uma questão de fé. Mas acho que há pelo menos alguma evidência de que melhores resultados resultam de melhores meios.”

Como o argumento da não-violência de Gandhi baseava-se na noção de que os meios e os fins são inseparáveis e que a escolha de meios violentos levaria a fins violentos, deve-se concluir que a importância central da não-violência na luta pela liberdade indiana levou a Índia a ser um país particularmente não-violento após a independência. O autor comunista italiano Domenico Losurdo, em seu livro Não-violência: a história por trás do mito, responde a essa questão: “longe de ser a personificação do ideal de não-violência, a Índia é hoje um dos países mais violentos do mundo. Os confrontos armados entre os diferentes grupos religiosos e étnicos são generalizados; em particular, os massacres de muçulmanos e cristãos são recorrentes.”

A inseparabilidade de meios e fins é um argumento contra a não-violência. A não-violência é um meio que envolve implorar concessões aos poderosos e convidá-los a praticar a violência sem consequências para eles mesmos: isso leva a uma sociedade com uma elite que se sente completamente impune para praticar violências horríveis enquanto enfrenta oponentes que tentarão, na pior das hipóteses, derreter seus corações por meio de um exemplo de sofrimento. Isso transforma os opressores em pessoas piores, embriagadas pelo poder e sem sentir nenhuma consequência.

A descolonização é um processo violento, e a Índia não foi exceção

Como Losurdo conta em seu livro, a não-violência é um ideal que foi desenvolvido no Reino Unido e nos EUA para garantir que a resistência à escravidão fosse ineficaz – para manter a resistência a uma das instituições mais vis já inventadas dentro de limites controláveis. Os pacifistas cristãos e os quakers a desenvolveram porque não queriam participar da violência da escravidão. Pouquíssimos deles foram levados a lutar violentamente contra a escravidão.

Os inimigos indianos de Gandhi argumentaram que são essas raízes cristãs e anglo-americanas que dão origem à não-violência gandhiana, e não as noções hindus de ahimsa (“ausência de dano”, não-violência) ou satyagraha (força da verdade). No final, os indianos não se comportaram como sábios de outro mundo. Eles fizeram o que todos os povos colonizados fazem: travaram uma luta armada pela independência.

Sem o mito da não-violência, quais são as lições da verdadeira luta pela independência da Índia e como elas se encaixam em nossa compreensão da mudança social? Está claro que algumas lutas – por melhores salários ou condições de trabalho, melhores serviços municipais ou outras lutas por igualdade em uma comunidade – podem ser levadas adiante no plano da não-violência. O colonialismo, baseado na opressão racial e na desumanização, não pode, e a Índia não é uma exceção. Assim como o próprio colonialismo, a ausência de uma solução não-violenta para o colonialismo é trágica, mas quanto mais cedo a realidade for reconhecida pelos defensores da mudança social, melhor.

Justin Podur é um escritor que vive em Toronto e é colaborador do Independent Media Institute. Você pode encontrá-lo em seu site podur.org e no Twitter @justinpodur. Ele leciona na Universidade de York, na Faculdade de Mudanças Ambientais e Urbanas.

(*) Tradução de Raul Chiliani.

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