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1964: cinco lições do golpe militar para o presente

Forçar esquecimento sobre golpe de 1964 não é melhor estratagema que o da criança que fecha os olhos para evitar o escuro; só revela temor frente os militares
Pedro Marin
Na fotografia publicada em 30 de março de 1968, dois dias após o assassinato do estudante Edson Luís, policiais militares aparecem de prontidão nas ruas centrais da cidade do Rio de Janeiro. (Foto: Fundo Correio da Manhã – Arquivo Nacional)

O Governo Federal decidiu, naquilo que lhe toca, por deixar com que o 60º aniversário do golpe militar de 1964 passasse como gostam os golpistas: em silêncio. Os mais comprometidos com a covardia tentam justificar essa inclinação própria, que nada é senão réplica da do governo, argumentando cinicamente que cabe à “sociedade civil” recordar 1964 – fingindo que o Estado que o governo em questão administra não é continuação histórica daquele que foi assaltado pelos fardados (e com o qual os fardados mataram e torturaram); que o presidente que lidera o governo não surgiu da luta dos trabalhadores contra a ditadura; que as Forças Armadas que tomaram o país de assalto em 64 não são as mesmas que aterrorizam o governo hoje. No fingimento, revelam muito: na hora mais escura, não valem um grama de confiança no que tange à ação – são afinal os que, na clareza do dia, preferiram justificar o calar. A ordem unida não é sequer perdoar; é, simplesmente, esquecer.

Esse esquecimento ordenado não se torna menos problemático ao se enroupar de estratégia política. Pelo contrário: é mais grave. Quando é obra “natural”, a desmemória pode ser tomada como sintoma, indício, de que traumas passados deixaram de assustar. Quando é receitada, posto goela abaixo, revela simplesmente que aquilo que se busca esquecer é doença viva, chaga ainda aberta; é meio. O estratagema não é mais útil do que o da criança que fecha os olhos por medo do escuro. Dizem não querer “remoer o passado” quando seu temor é o de serem moídos no presente.

Embora 1964 não deva ser tomado como modelo paradigmático do golpismo militar brasileiro – foram muitos os golpes, com muitas formas –, a lembrança do Golpe Militar pode ainda nos trazer lições úteis hoje. A seguir, cinco delas.

1 – Quem ignora o passado anda com a guarda baixa

O golpe de 1964 não foi um ato intempestivo, imprevisível e historicamente desligado do passado. Três anos antes de Olympio Mourão Filho decidir marchar de Minas Gerais rumo ao Rio de Janeiro, João Goulart já era alvo do golpismo, quando, após a renúncia de Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961, Dia do Soldado, as cúpulas das Forças Armadas decidiram barrar o retorno de Jango, então vice-presidente e sucessor legal de Jânio, ao Brasil, inclusive mediante a ameaça de abater o avião do vice-presidente caso este adentrasse o território nacional.

Jango só pôde ser empossado após acatar a implantação do parlamentarismo no país, perdendo parte considerável do poder que o povo lhe havia outorgado nas eleições de 1960. Mas mesmo essa possibilidade de concessão mútua só foi aberta pela demonstração de força de Brizola, que a partir do Rio Grande do Sul ergueu a Cadeia da Legalidade, armando o povo e convertendo parte do Exército à defesa da legalidade.

Três anos após a concessão ao parlamentarismo, em 1963, o país retornava ao presidencialismo. Aqui, também, o que contou foi a demonstração de força, especialmente do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), que, por meio de uma torrente de greves, pressionou o Congresso Nacional no sentido da reversão.

Era esperado que o movimento levasse a uma resposta por parte daquelas mesmas Forças Armadas que ameaçavam a vida de Jango caso ele retornasse. Mas o golpe de 1964 não se ligava só à tentativa de 1961. De fato, foi o pináculo de uma longa trajetória de intervencionismo, tutela e golpismo militar na história do Brasil.

Além da tentativa de 1961, entre 1945 e 1964 o Brasil viveu seis tentativas golpistas, das quais duas foram bem-sucedidas: o golpe preventivo contra Getúlio, em 1945; a República do Galeão, em 1954, que o levou ao suicídio; a tentativa golpista contra Juscelino Kubitschek, em 1955, impedida pela ação de Henrique Teixeira Lott; a revolta de Jacareacanga, em 1956; a revolta de Aragarças, em 1959. Estas tentativas todas se inserem no contexto de intervencionismo pós-Segunda Guerra, que tem entre suas características a ligação dos militares à União Democrática Nacional (UDN), em oposição cerrada ao trabalhismo. Não por acaso, figuras que tiveram papel de destaque em todas elas participariam do golpe de 1964.

Além da onda pós-Segunda Guerra, há ainda os acontecimentos das décadas de 20 e 30, a saber: a Revolta dos 18 do Forte, em 1922; a Revolta Paulista e a Comuna de Manaus, de 1924; a Coluna Prestes, entre 1925 e 1927; a Revolução de 1930 e a instauração do Estado Novo, em 1937. Do ponto de vista dos militares, esse período obedece a uma ânsia da baixa oficialidade e dos graduados por uma modernização efetiva do País – mais conservadora ou mais progressista – após a instauração de República e os governos militares dos primeiros anos republicanos que, apesar de consolidarem um novo regime político, mantiveram as estruturas políticas e econômicas do final do Brasil Império intactas – especialmente o federalismo de facto do Brasil, com o domínio das oligarquias regionais não só sobre os rumos da economia do país, mas também sobre a política.

Por fim, há os movimentos no primeiro período republicano: a proclamação da República, com o subsequente governo do generalíssimo Deodoro da Fonseca; o golpe de Três de Novembro, em 1891, que levou o vice de Deodoro, Floriano Peixoto, à presidência; a Segunda Revolta da Armada, em 1893-1894; e a presidência de Hermes da Fonseca, entre 1910 e 1914, marcada em parte pelo pendor modernizante e centralista que se veria entre os militares dos anos 20 e pelo intervencionismo nos estados.

Tomando os 75 anos que separam a proclamação da República, em 1889, e o golpe militar de 1964, teremos uma média de uma tentativa golpista a cada cinco anos, e um golpe bem sucedido a cada 15 anos. Quem, em 1964, estivesse disposto a “esquecer” a longa trajetória de intervencionismo militar naquele século, incluindo sua onda mais recente, que fizera do próprio Jango um alvo três anos antes, inevitavelmente estaria com a guarda baixa no 1 de abril de 1964. Os que em 2024 procuram dissociar as tentativas golpistas recentes desta longa trajetória incorrem no mesmo erro.

2 – O golpismo seduz também com o legalismo

A correta visão de que 1964 consolidou um regime de exceção permanente, com sucessivos governos militares puro-sangue que se revezaram no poder durante 21 anos, adotando a prática sistemática da tortura e assassinato como ferramenta de sustentação, é uma visão posterior ao golpe. Embora fosse possível prever, naquela conjuntura, que este seria o futuro do golpismo, quase a totalidade das experiências anteriores de golpe de Estado não haviam levado a este tipo de regime – com exceção do Estado Novo. A regra geral do golpismo havia sido, até então, a mera substituição do governo de turno, com a posse de um novo presidente ou a convocação de novas eleições.

De fato, o golpe de 1964 foi preparado e desferido sob o manto do legalismo. Um de seus principais articuladores, o general Humberto Castello Branco – que havia passado sua vida militar inteira batendo-se contra a politização na caserna – não só usou o manto legalista, como fez do legalismo parte integrante da estratégia golpista, usando-o inclusive após o golpe. Lira Neto lembra em sua biografia Castello – a marcha para a ditadura que “no dia seguinte, 20 de março [de 1964], com efeito, passou a rodar pelos corredores dos quartéis do país uma circular reservada, com a observação ‘Vedada à imprensa’, e assinada por Castello Branco. […] A circular, lida no auditório da ECEME pelo comandante da instituição, Jurandir Bizarria Mamede, seguia à risca a estratégia traçada havia muito por Castello: abraçar a defesa da legalidade, conferindo aos inimigos o rótulo de antidemocráticos. […] Às vésperas de liderar um golpe militar que instituiria um regime de arbítrio no país, Castello defendia no texto que caberia ao Exército dar plena garantia aos poderes constitucionais para, assim, evitar uma iminente ditadura.” De fato, dizia o texto até que, “não sendo milícia, as Forças Armadas não são armas para empreendimentos antidemocráticos. Destinam-se a garantir os poderes constitucionais e a sua coexistência […] É preciso aí perseverar, sempre ‘dentro dos limites da lei’. Estar pronto para a defesa da legalidade, a saber, pelo funcionamento integral dos três poderes constitucionais e pela aplicação das leis, inclusive as que asseguram o processo eleitoral, e contra a revolução para a ditadura e a Constituinte, contra a calamidade pública a ser promovida pelo CGT e contra o desvirtuamento do papel histórico das Forças Armadas”. A frase da carta de Castello lembra-nos do que disse Tomás Paiva em conversa fechada com seus subordinados pouco antes de assumir o comando do Exército em 2023, vazada à imprensa: “Prestamos continência à autoridade; se não, não é Exército, não é Força Armada, vira milícia, vira bando”.[1]

Se a carta de Castello encontra eco no áudio vazado de Paiva, o procedimento seguinte do general lembra-nos, também, do de Villas-Bôas nos idos de 2018, quando, ao lançar seu tuíte ameaçando as instituições, fez circular a versão de que a mensagem não era ameaça alguma, mas tentativa de manter a hierarquia e a coesão interna no Exército. É que, após enviar sua carta aos quartéis em março de 1964, “Castello enviou o documento ao Ministério da Guerra e, como da outra vez, mandou junto com ele uma carta, de teor pessoal, ao ministro [da Guerra] Jair Dantas Ribeiro. ‘Não se trata de um papel para lançar confusão, nem buscar solidariedade ou estabelecer polêmica’, tentava Castello convencer o ministro. ‘[É] apenas para mostrar a gravidade que rodeia a conduta militar e para esclarecer subordinados’, argumentou.” 

Mesmo com a quartelada consolidada, no dia 1 de abril de 1964, os golpistas ainda adornavam sua fachada com o legalismo. O “Manifesto dos generais da Guanabara”: “[…] afirmava que, pela Constituição, as Forças Armadas tinham por missão ‘defender a pátria’ e ‘garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem’. Por fim, vinha a exortação a todos os ‘camaradas do Exército Brasileiro, sem distinção de postos ou graduações’: ‘Coesos e unidos, restauraremos a legalidade, como é nosso dever, assegurando a plena vigência do regime democrático’, prometia o manifesto, datado do dia 1º de abril”, escreve Lira Neto.

Em tempos em que qualquer nota de doçura na voz de um general é festejada como prova inconteste de sua brava aderência à democracia e à legalidade – como se a memória de Teixeira Lott fosse motivada pela inclinação do general a teatralidades, e não pelo fato de ter movido 25 mil tropas para barrar o golpismo –, convém lembrar que o legalismo não é arma que os golpistas desprezem.

3 – Muitos cenários devem ser considerados; os piores não devem ser desprezados

Nem todas as forças que patrocinaram ou aderiram ao golpe militar de 1964 eram desejosas de um regime de exceção permanente tal como o que seguiu. De fato, muitos apostavam que, após o golpe, o país seria conduzido a novas eleições. Esta era a posição de uma parte relevante do empresariado que apoiou o golpe, e especialmente dos governadores Carlos Lacerda, do Rio de Janeiro, que há muito ensaiava a presidência; Magalhães Pinto, de Minas Gerais; e Ademar de Barros, de São Paulo.Ironicamente, se em 2022 havia quem duvidasse da possibilidade de um avanço golpista argumentando que sustentar um regime de exceção hoje seria impossível, em 1964 havia quem apoiasse o golpe certo de que ele levaria à convocação de novas eleições. Erraram uns e outros: até aqui, segundo o que apurou a Operação Tempus Veritatis da Polícia Federal, o roteiro golpista desenhado pelos generais e Bolsonaro no contexto eleitoral de 2022 previa a convocação de novas eleições, de forma que os que apostavam que “um golpe hoje pode até passar, o problema é sustentar” apostavam no vazio. Em 1964, por sua vez, a aposta no chamamento de novas eleições levaria alguns dos apoiadores do golpe, como o próprio Lacerda, ao exílio.

Como já escrevi antes, o golpismo é um fenômeno que pode tomar formas variadas, e, por mais que seja detidamente planejado, o estágio operacional do golpe está, tal qual a guerra, influenciado por variáveis, acasos e imprevistos vários. Não foram só os resultados do golpe de 1964 que foram imprevisíveis a muitos de seus apoiadores; também sua operação não ocorreu de acordo com o planejado. A marcha empreendida por Olympio Mourão Filho rumo ao Rio de Janeiro na madrugada do dia 31 de março foi de tal forma inesperada que Castello Branco sequer acreditou na informação, dada por Magalhães Pinto num telefonema naquela manhã. Após constatar que era verdadeira, tentou convencer o governador de Minas e o general Luís Carlos Guedes, comandante da IV Infantaria Divisionária de Belo Horizonte, a forçar um retorno de Mourão, cuja ação precipitada, pensava Castello, levaria o golpe à derrota. No golpe de 1964, o plano do próprio conspirador foi ignorado!

A obsessão com uma forma específica do golpismo por parte dos que planejam resistir pode se desdobrar em um erro de cálculo grave: considera-se a forma improvável ou impossível, e a partir daí toda a resistência é imobilizada – é o que muitos, perigosamente, faziam em 2022.

4 – A burocracia é meio por excelência do golpe, não da resistência

O governo João Goulart, embora não tenha caído no primeiro erro desta lista (o de ignorar o passado) foi incapaz de resistir ao golpismo. Há uma longa discussão historiográfica acerca das possibilidades de resistência de Jango, dos efeitos que uma decisão pela resistência teriam nos golpistas, dos resultados aos quais uma possível guerra civil levaria. Todas estas questões estão, por óbvio, no campo da suposição, mas podemos fazer três considerações estratégicas fundamentais acerca delas: primeiro, pelo fato do golpismo ser um ofício arriscado, a mera demonstração de resistência pode bastar para conter os golpistas. Isto é: a resistência não necessariamente levaria a uma conflagração geral, e muito provavelmente levaria a um recuo dos golpistas – como o próprio Castello Branco temeu ao saber da marcha de Mourão Filho. Segundo, o fato de que a burocracia, durante um golpe, tende à inércia. Caso haja resistência, pode seguir inerte ou aderir a ela; mas, caso não haja, inevitavelmente acabará aderindo ao golpe. Se os que podem resistir não o fazem, o golpe vence. Terceiro, o fato de que, na longa trajetória brasileira, todos os golpes que foram neutralizados o foram pelo movimento de uma força real, capaz de violência, no momento operacional do golpe.

O fato é que João Goulart, nos preparativos para a resistência ao golpe, deu importância demais à burocracia, particularmente à militar. Nos anos Jango, foi construído um dito “dispositivo militar”, por meio da colocação de figuras confiáveis em cargos-chave das Forças Armadas. Além do “dispositivo”, comandado pelo chefe da Casa Militar de Jango, general Assis Brasil, ter demorado a identificar muitos golpistas e ter sido incapaz de expurgá-los, seus organizadores pareciam ignorar que, como escreveu Maquiavel, “nos tempos de paz […] todos correm a seu encontro, todos prometem e cada um quer morrer por ele, enquanto a morte está distante, mas em tempos adversos […] encontram-se poucos”. Uma parte considerável dos “confiáveis” do dispositivo militar, no momento em que vislumbraram a possibilidade de se verem isolados em meio aos golpistas, acabaram por aderir ao golpe – incluindo Amaury Kruel, ex-chefe do Gabinete Militar e ex-ministro da Guerra de Jango, que em abril de 1964 comandava o II Exército, peça chave para decidir a derrota ou a vitória do golpe.

Embora, no que tange à resistência ao golpismo, a burocracia não possa ser ignorada, tampouco pode ser o elemento chave, precisamente porque se encontra em posição de influenciar o governo durante todo o processo golpista (antes, durante, depois), ao passo que pode se beneficiar tanto de sua manutenção quanto de sua derrocada. Colocando em outros termos: embora pareça paradoxal, os interesses mais objetivos da burocracia, ao menos enquanto o golpe não consolidou uma nova institucionalidade, são mais desligados da defesa ou da derrocada do governo do que os de outros agrupamentos sociais. No caso dos militares, esses interesses são ainda mediados pelo apego à coesão, respeito hierárquico e espírito de corpo.

5 – O golpismo também negocia

Embora a tutela e o golpismo militar tenham nas armas e na capacidade de obliteração a sua sustentação material, isso não implica que o uso das armas e da guerra aberta sejam suas únicas vias de atuação. A manifestação do poder militar não se dá só pela espada desembainhada, pelo ato de violência, mas pela espada embainhada, pela capacidade de violência. O poder político do Partido Fardado decorre do fato de ter a violência como reserva, não como ato contínuo. Não raro, portanto, a demonstração de força golpista ao longo da história intercalou-se com a negociação. Este foi também o caso em 1964.

O já citado Amaury Kruel, por volta da meia-noite do dia 1 de abril, em um telefonema para Jango, teria estabelecido algumas condições, como conta Lira Neto: “‘Presidente, o senhor é capaz de prometer que vai se desligar dos comunistas e decretar medidas concretas nesse sentido?’ indagou Kruel, à queima roupa. ‘General, procure compreender, sou um homem político. Não posso deixar de lado as forças populares que me apoiam’, respondeu Jango, repetindo a mesma argumentação que usara nos dois telefonemas anteriores. ‘Então, presidente, lamento. Mas não posso fazer mais nada’, disse Kruel, categórico, desligando o telefone”. Pouco tempo depois, Kruel assinava proclamação pública, enviada à imprensa, informando que tomara atitude “com o objetivo de salvar a Pátria em perigo, livrando-a do jugo vermelho” e de “romper o cerco do comunismo, que ora compromete e dissolve a autoridade do Governo da República”. Este era Kruel, o confiável, o legalista, o último a se dobrar.

Mas também camaradas mais decididamente golpistas tentaram, ao longo da marcha golpista, estabelecer negociações e arrancar concessões. Lira Neto recorda outra tentativa, feita por volta das cinco da tarde do dia 31 de março: “Nessa mesma hora, o general Peri Bevilácqua, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, entregava a Jango um documento elaborado de comum acordo entre ele e os chefes do Estado-Maior da Aeronáutica, brigadeiro Corrêa de Mello, e do Exército, Castello Branco. O texto dizia que ainda era possível restabelecer a ‘unidade moral’ entre o presidente e as Forças Armadas, desde que Jango fizesse a opção imediata entre governar com o apoio dos sindicatos ou dos militares. Bevilácqua sugeriu ainda que Jango impedisse a realização da greve geral anunciada pelo CGT, intervindo no movimento sindical.”

De novo, é impossível dar como certo o que teria ocorrido caso Jango tivesse concedido a essas pressões. Teriam os golpistas freado seu movimento? Teriam avançado com mais furor? Só é possível supor. É possível, no entanto, fazer uma leitura estratégica da dinâmica de poder estabelecida pelas negociações: do ponto de vista dos golpistas, o primeiro efeito conquistado pela proposta de conciliação seria o de trazer para si aqueles militares que, indecisos ou covardes, não haviam se comprometido com nenhum dos lados. Dividido entre duas posições inconciliáveis e, no entanto, indeciso, o dito legalista, pressionado por seus camaradas, se dispõe a arrancar concessões do presidente, imaginando nisso buscar uma garantia de sua própria segurança na indecisão, sem perceber que, na prática, auxilia aquele que, armado, faz exigências, muito mais do que aquele que, mal armado, é demandado a conceder. Sugerir uma concertação, neste cenário, é uma forma do golpista trazer o indeciso à sua esfera; e do indeciso, buscando manter-se astutamente na sua posição, auxiliar o golpista. Um segundo efeito deste tipo de proposta é, no caso de ser aceita, prejudicar a base de sustentação e resistência do golpeado, semeando a indecisão em suas fileiras.

Assim, o efeito prático de uma concessão de Jango seria a destruição de sua própria base social frente aqueles que o ameaçavam. Se a negociação era estabelecida entre um armado e um mal armado, os capítulos seguintes se dariam entre um armado e um desarmado. Do ponto de vista da sobrevivência de Jango no cargo, a concertação poderia, caso assim desejassem os que faziam exigências, dar resultados. Do ponto de vista da sobrevivência de seu projeto político, a concertação significaria, por definição, sua morte. Negou-se a conceder, mas também a resistir; e assim foram Jango, seu governo, seu projeto político, as aspirações centenárias do povo brasileiro; tudo foi tragado pelo fogo dos generais que, dispondo-se às negociações num primeiro momento, impuseram, no seguinte, a tortura e o silêncio, o assassinato e a submissão; em uma palavra, a espada desembainhada, por fim, durante 21 longos anos.

Dentre todas as lições aqui anotadas, mais vale ao governo Lula esta última. Não porque sejam descartáveis as outras, mas porque parece ser a esperança de que conceder frente aos fortes evitará seus avanços que fazem o presidente errar em todos os outros pontos.   

Notas:
[1] A pesquisadora Ana Penido, ligada ao Observatório da Defesa e Soberania Nacional e ao Instituto Tricontinental, foi quem me chamou atenção a esse trecho do áudio de Tomás Paiva, o que imediatamente me trouxe à recordação a carta de Castello.
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