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Bailes soul e cultura negra na mira da ditadura

Ao reprimir bailes soul nas favelas, ditadura chegou a dizer que o movimento comunista criaria um “braço dos Panteras Negras” no Brasil.
Ao reprimir bailes soul nas favelas, ditadura chegou a dizer que o movimento comunista criaria um “braço dos Panteras Negras” no Brasil. Por Bruno Ribeiro | Revista Opera
(Foto: Almir Veiga/Divulgação)

O documentário “Narciso em férias”, que aborda a prisão de Caetano Veloso durante a ditadura militar, foi aclamado pela crítica internacional e ficou entre os mais assistidos no Globoplay, em 2020. O que pouca gente sabe é que a ideia do filme, dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil, nasceu graças a um “golpe de sorte” de um pesquisador carioca, que descobriu a existência do dossiê produzido pelo regime para incriminar o compositor baiano, em dezembro de 1968.

Lucas Pedretti pesquisava o acervo do Arquivo Nacional para sua dissertação de mestrado quando chegou por acaso ao documento de 180 páginas, até então desconhecido do próprio artista. Curiosamente, ele não era o objeto de estudo do historiador, cujo trabalho versava sobre a perseguição da ditadura aos bailes de música soul no Rio de Janeiro ao longo da década de 1970. 

Para o pesquisador, no entanto, o achado confirmou o que antes era apenas palpite: que a questão racial nunca esteve apartada da repressão política, uma vez que citações a Gilberto Gil e Caetano Veloso foram encontradas, no arquivo, junto a centenas de documentos da época que tratam da preocupação do governo brasileiro com o crescimento do movimento negro no País, tido como parte de um “complô do comunismo internacional para destruir a democracia racial no Brasil”.

Já se tinha conhecimento das batidas policiais nos chamados bailes black, mas Pedretti tratou de aprofundá-lo por meio de informações novas — como a de que a ditadura espionava organizadores, DJs e frequentadores destes grandes eventos musicais que ocorriam nos subúrbios do Rio. Alguns dos entusiastas do movimento, inclusive, chegaram a ser presos e torturados — entre eles Asfilófio de Oliveira, o Dom Filó, um dos principais produtores de bailes black naquele período, e José Fernandes, morador da Rocinha que, saindo de um baile na Penha, foi levado para um quartel, onde passou o final de semana sob tortura.

A justificativa para a repressão era que os bailes de música soul acabariam por criar no Brasil um “braço dos Panteras Negras”, em referência à organização revolucionária norte-americana. Lucas Pedretti, porém, afirma que a explicação dada pelos agentes não dizia da real motivação que movia a perseguição: o simples fato de haver jovens negros reunidos. “Isso já era um problema para a ditadura, independente das mensagens transmitidas nos bailes serem políticas ou não”, diz.

A princípio, os bailes black eram vistos pela juventude como espaços de lazer. A política estava muito mais na atitude (gírias, roupas e cabelo) do que propriamente no discurso. De sexta a domingo, milhares de jovens negros se encontravam para dançar em salões e clubes espalhados por Guadalupe, Rocha Miranda, Madureira, Padre Miguel, Ramos, Bonsucesso, Bangu, Brás de Pina, Irajá, Pavuna, Duque de Caxias, Méier, Realengo, Jacarepaguá, Penha e Nilópolis, entre outros. Equipes de som como Tropa Bagunça, Atabaque, Revolução da Mente, Soul Grand Prix, Black Power e Furacão 2000 foram fundamentais à formação cultural de toda uma geração. Seus organizadores e DJs foram, em sua maioria, espionados pela ditadura. Nem mesmo artistas como Gerson King Combo, Tony Tornado e Carlos Dafé escaparam.

À medida em que as pesquisas avançavam, o historiador confirmava que não apenas os bailes eram monitorados: havia uma expressiva massa documental produzida no curso de investigações sobre a atuação de grupos antirracistas e associações culturais negras. “A lógica da ditadura era a seguinte: como não havia racismo no Brasil, qualquer mobilização que colocasse em debate o tema da discriminação ou que promovesse a valorização da cultura negra era subversiva, pois criava um problema racial até então inexistente. Então, conforme o regime militar, os movimentos antirracistas e as associações culturais de pessoas negras é que eram racistas.”

Ao deslocar a análise para uma abordagem que leva em conta a questão racial da repressão política, Lucas Pedretti abre caminho para percebermos as especificidades das violações cometidas contra os negros brasileiros durante a ditadura. “Observar essa violência por intermédio da perspectiva histórica nos ajuda a construir novos instrumentos para lutar contra uma violência que se inicia na escravização de mulheres e homens do continente africano e hoje se expressa no genocídio da população negra nos becos e vielas de nosso país”, afirma.

Confira a seguir a entrevista que o historiador concedeu à Revista Opera sobre sua dissertação de mestrado pela PUC-RJ, que terá a linguagem adaptada e será lançada em livro com o título “Dançando na Mira da Ditadura: Bailes Soul e Violência contra a População Negra nos Anos 1970”. A edição será do Arquivo Nacional. 

Revista Opera – A repressão da ditadura militar à cultura negra no Brasil, e em especial aos bailes de música soul, era um tema que até então não havia sido abordado com a devida atenção pela historiografia. O que despertou seu interesse pelo assunto?

Lucas PedrettiEm 2013 trabalhei na Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro. As Comissões da Verdade trabalharam no contexto de um presente marcado por graves violações aos direitos humanos cometidas por agentes do Estado. Nesse sentido, um questionamento que era feito às comissões foi como tratar da violência do Estado como se ela fosse algo pertencente ao passado exclusivamente. Ao mesmo tempo, um segundo questionamento decorria desse presente de violência, que era o seguinte: hoje as vítimas principais das violações aos direitos humanos são os jovens negros e moradores de favelas e periferias. No entanto, quando falamos das “vítimas da ditadura”, a imagem que temos é de militantes brancos, de classe média, universitários. Seria possível imaginar, então, que durante a ditadura essa camada da população, que sempre foi o alvo principal do Estado, não tenha sido atingida pelo regime ditatorial? É evidente que não. Porém, essa repressão não era tratada pelas políticas públicas de justiça de transição, e era muito pouco tematizada pela própria historiografia. 

Revista Opera – Houve alguma iniciativa da Comissão no sentido de romper com este apagamento da história e se fazer justiça?

Lucas Pedretti – Sim. Durante os trabalhos da Comissão, nós conseguimos convencer o colegiado que era importante tocar na questão racial. Nesse sentido, começamos a fazer uma pesquisa e a nos debruçar sobre os arquivos públicos dos órgãos de repressão, procurando pistas sobre o tema. E foi nesse processo que entrei em contato com parte das fontes com que trabalhei depois, na dissertação. Usamos o material para o capítulo sobre ditadura e racismo do relatório final da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, mas percebia que aquele conjunto de documentos era importante demais — e rico demais —, e que muito mais pesquisas poderiam ser feitas a partir dali. Então, decidi fazer meu mestrado sobre isso. 

Revista Opera – Podemos dizer que os bailes de música soul constituíram um movimento unificado na década de 1970 ou eram iniciativas dispersas? 

Lucas Pedretti – Os bailes foram um movimento social e cultural da maior relevância. Apenas na cidade do Rio de Janeiro e arredores, a cada final de semana, os bailes reuniram dezenas de milhares de jovens, em sua maioria negros e vindos das favelas e do subúrbio. Representavam um fenômeno cultural extremamente rico, diverso e pulsante. O fenômeno dos bailes se espalhou para muitos outros estados do Brasil, e influenciou enormemente outras manifestações culturais, como o funk carioca e o rap de São Paulo. 

Revista Opera – Você diz que os bailes de música soul chegaram a se tornar uma preocupação para o Conselho de Segurança Nacional (CSN) durante  a ditadura. Por quê?

Lucas Pedretti – A documentação mais geral que mostra a repressão da ditadura aos movimentos culturais e políticos negros — da qual os bailes são um importante capítulo — nos ajuda a compreender a forma pela qual o regime ditatorial articulou dois de seus mais importantes pilares ideológicos. Em primeiro lugar, o mito da democracia racial. Isto é, a ideia de que as relações entre indígenas, brancos e negros no Brasil teria se dado de forma harmoniosa e não-violenta, e que por isso não seria possível dizer que existia racismo no país. Em segundo lugar, a Doutrina de Segurança Nacional, que, em linhas gerais, era a ideia de que os comunistas utilizavam métodos não convencionais de guerra e infiltração, e que portanto as forças militares precisavam atentar para os inimigos internos — e não apenas externos. Assim, qualquer pessoa que se comportava de modo minimamente distinto da norma, era considerada inimiga do regime e deveria ser eliminada. 

Revista Opera – Mas, afinal, os bailes de música soul eram um espaço de formulação de consciência crítica e política ou tudo não passava de um “delírio” da ditadura?

Lucas Pedretti – Existiram bailes que tematizavam questões políticas e raciais de forma mais explícita, e há relatos de festas sendo interrompidas para que houvesse manifestações abertamente políticas e inclusive de críticas à ditadura. Mas, em geral, os bailes não eram espaços políticos no sentido estrito do termo. Isto é, eram espaços de lazer. Mas eles eram espaços políticos na medida em que seus organizadores e frequentadores eram parte de uma juventude negra que, em plena ditadura militar — que tinha o mito da democracia racial como um dos mais importantes fundamentos de sustentação ideológica —, colocou de pé um gigantesco movimento cultural de afirmação e celebração da identidade negra. Os cabelos afro eram políticos, as roupas eram políticas, os nomes das equipes eram políticos. O fato de você ter dezenas de milhares de corpos negros circulando em uma cidade extremamente racista e segregada era um ato político. O delírio da ditadura era afirmar que os bailes eram um grande complô do Movimento Comunista Internacional para criar uma versão verde e amarela dos Panteras Negras. Mas aí, quando a gente mergulha nos documentos, vê que embora essa fosse a explicação dada pelos agentes, na verdade o que os motivava era o mero fato de haver jovens negros reunidos. Isso já era um problema para a ditadura, independente das mensagens transmitidas serem abertamente políticas ou não.

Revista Opera – No período abordado pela pesquisa, o Serviço Nacional de Informações (SNI) produziu um dossiê intitulado “Racismo Negro no Brasil”, com mais de 400 páginas de informações trocadas entre órgãos de repressão. O que havia ali e qual era o objetivo dessa investigação?

Lucas Pedretti – Como a ditadura afirmava não existir racismo no Brasil, então aquelas manifestações antirracistas eram vistas como a importação de um problema que não existia por aqui. Eram os próprios negros — segundo o regime — que estavam criando o problema racial no país ao promover críticas ao racismo e ao celebrar sua própria identidade racial. Daí o nome “Racismo Negro no Brasil”. Esse dossiê, portanto, reunia diversas investigações e monitoramentos de entidades e personalidades negras. Por outro lado, como qualquer manifestação de oposição era, na verdade, a expressão da infiltração comunista, então a consequência lógica dos agentes da ditadura era que esse problema racial, importado para o Brasil, era na verdade parte de uma estratégia do Movimento Comunista Internacional para desestabilizar o regime e implantar o comunismo no país. 

Revista Opera – Em suas pesquisas você identificou organizadores ou frequentadores dos bailes de música soul que tenham sido presos ou torturados por fazerem parte desse movimento?

Lucas Pedretti – Sim. Há relatos famosos, como o do Paulão, da equipe Black Power, que já havia falado sobre sua prisão no livro “O mundo funk carioca”, do Hermano Vianna. Nos trabalhos da Comissão, nós encontramos os documentos do DOPS sobre a prisão, incluindo toda a “investigação” prévia. Trata-se de uma peça absurda, que começa com um informante dizendo que “jovens negros de nível intelectual acima da média” estariam se mobilizando para organizar eventos na quadra da Portela. E a partir daí desenrola-se uma série de “diligências” de agentes do DOPS nos bailes, até que eles levam o Paulão e os outros membros da Black Power presos, principalmente por conta desse nome — que levava a ditadura a suspeitar de serem eles uma “célula” dos Panteras Negras no Brasil. No final da documentação, há um dos aspectos que mais me chamaram atenção em toda a pesquisa. Ao descrever os presos, o DOPS sublinha a cor da pele e o salário deles. É o tipo de informação que nem mesmo consta na descrição, por exemplo, de um jovem militante do movimento estudantil. Nesse sentido, fica evidente que, para o DOPS, a raça e a classe não eram características dos suspeitos — eram, isso sim, a própria razão da suspeita.

Revista Opera – A prisão do Paulão foi um caso isolado ou a repressão chegou a interrogar outros integrantes do movimento?

Lucas Pedretti – Não foi o único caso, não! Para além do Paulão, temos o relato do Asfilófio de Oliveira, o Dom Filó, um dos mais importantes organizadores de bailes da época. À frente de uma equipe chamada Soul Grand Prix, ele é sequestrado após um baile e levado para o DOI-CODI, onde é questionado sobre os “milhões de dólares” que um negro norte-americano estaria enviando ao Brasil. Esses são casos “famosos”, digamos assim. Mas são muitos os relatos de festas sendo invadidas por policiais, policiais à paisana nos bailes, batidas na porta das festas. Sem falar, é claro, das duras que os jovens levavam nos seus deslocamentos para as festas, nos ônibus, ou caminhando pela cidade. Algumas dessas duras acabavam em prisões arbitrárias (normalmente justificadas pela lei de vadiagem), e alguns jovens passavam a noite ou o final de semana em delegacias, arbitrariamente detidos. Nessas ocasiões, podiam ser submetidos a tratamentos cruéis e degradantes — como por exemplo, algo comum, o corte de seus penteados afro — ou torturas, como o famigerado pau-de-arara.

Revista Opera – Sobre a necessidade de compreender a questão racial no contexto do regime ditatorial: você diria que houve uma especificidade naquele período ou a repressão era a continuidade da velha tradição racista brasileira?

Lucas Pedretti – Na verdade, a gente precisa entender que o aparato repressivo que foi se institucionalizando após 1964 aprendeu muito com a “expertise” das forças policiais que já existiam. Todas as técnicas de violência historicamente utilizadas contra a população negra e moradora das favelas e periferias foi herdada pelos órgãos de repressão da ditadura, e o regime “aperfeiçoou” essas técnicas. A gente tem relatos, por exemplo, de um policial militar falando que foi chamado para atuar no DOI-CODI porque tinha “experiência de interrogar preso em favela”. Mas a partir de 64, mais ainda de 67 em diante, o regime começa a reorganizar a arquitetura institucional da segurança pública no país. 

Revista Opera – E como se deu essa reorganização policial?

Lucas Pedretti – Ela teve alguns elementos principais, como a subordinação das polícias às Forças Armadas; a determinação da justiça militar como foro responsável pelo julgamento de crimes cometidos por militares, mesmo que contra civis; e a criação dos “autos de resistência”, uma figura administrativa que garante a impunidade de policiais que matam “suspeitos”. Há, ainda, uma série de outros aspectos, como a criação de forças de elite nas polícias militares e civis. Mas o que interessa é chamar atenção para o fato de que a ditadura reorganiza as polícias com base em dois elementos principais: a militarização de um lado e a garantia de impunidade de outro. Não à toa, é nesse cenário que vão prosperar os grupos de extermínio e esquadrões da morte, que vão levar o terror para as periferias e favelas do Rio de Janeiro e do Brasil. 

Revista Opera – Você vê paralelo entre a repressão policial aos bailes de música soul nos anos 70 e aos bailes funk nos dias atuais? De que forma?

Lucas Pedretti – Os paralelos são evidentes. É possível buscar paralelos antes — como o que foi a criminalização da capoeira ou do samba em outros momentos da história do Brasil — ou atualmente — como o funk. O ponto é: corpos negros (especialmente se forem jovens), celebrando sua identidade e construindo formas autônomas de cultura, expressão e lazer, são vistos como perigosos por um Estado que é historicamente racista. 

Revista Opera – Você diria que a repressão da ditadura acelerou o fim dos bailes de música black ou isso se deu por outros motivos?

Lucas Pedretti – Há pessoas que sugerem isso, de uma aceleração do fim dos bailes por conta da repressão, mas eu não sei dizer com certeza. Como historiador da ditadura, meu foco era entender a dinâmica da repressão sobre determinados setores da sociedade, tendo como foco de análise esse fenômeno cultural e social dos bailes soul. Mas é importante marcar que os bailes soul — ou Movimento Black Rio, como ficou conhecido — foi um movimento extremamente rico, complexo, dinâmico e importante. A repressão sozinha não seria capaz de acabar com esse movimento, nem se o regime quisesse muito. Nesse sentido, acho importante chamar atenção pra isto: trata-se de mais uma demonstração de como essa juventude negra tem a capacidade de inventar formas de re-existência que são mais potentes que qualquer esforço de apagamento e silenciamento por parte do Estado. É por isso que o samba sobrevive, o soul sobrevive, o funk sobrevive.

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