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Frei Betto: só come quem paga

O mundo produz comida suficiente para alimentar 12 bilhões de bocas. E somos 8,2 bilhões. Portanto, não há falta de alimentos. Há falta de justiça.

Frei Betto
Palestinos, incluindo crianças, esperam para receber alimentos distribuídos por uma organização de ajuda humanitária em Deir Al Balah, Gaza, em 10 de novembro de 2024. (Foto: Omar Ashtawy / apaimages)

Nas sociedades pré-industriais os alimentos tinham mais valor de uso que de troca. Mesmo os servos dos feudos medievais dispunham de um pedaço de terra para cultivar ao menos o necessário às suas famílias. Hoje, alimento com valor de uso só existe nas etnias indígenas tribalizadas na selva. Fora disso, têm apenas valor de troca: quem pode comprar, se alimenta; quem não pode, fica condenado à fome. É a lógica do capitalismo, no qual os privilégios do capital estão acima dos direitos humanos.

Em raros países, como Cuba, a alimentação é um direito do cidadão e um dever do Estado. A toda família cubana é garantida, mensalmente, uma cesta básica. Outros países, como o Brasil, adotam políticas sociais para assegurar que ninguém passe fome. O Bolsa Família assegura uma renda básica para mais de 21 milhões de famílias em todos os 5.570 municípios do país. O programa beneficia 54,37 milhões de pessoas, das quais 25 milhões são crianças e adolescentes de zero a 18 anos incompletos.

O mundo produz comida suficiente para alimentar 12 bilhões de bocas. E somos, atualmente, 8,2 bilhões de habitantes. Portanto, não há falta de alimentos. Há falta de justiça, de partilha. 

Hoje, 733 milhões de pessoas ao redor do globo não têm acesso a calorias e nutrientes suficientes, e 2,8 bilhões, que não podem pagar por uma dieta saudável, sobrevivem em insegurança alimentar. 

Na reunião do G20 no Rio, em novembro último, Lula lançou o Pacto Global contra a Fome e a Pobreza. O tema sempre lhe foi sensível, pois Lula não veio da pobreza, veio da miséria. Dos 12 filhos de sua mãe, dona Lindu, quatro morreram de fome.

O Pacto visa acionar mecanismos de cooperação entre países, projetos, instituições financeiras e fundos econômicos para desenvolver ações que minorem essa grave violação ao direito humano fundamental – o acesso à alimentação. 

Além de transformar o alimento em uma mercadoria com valor de troca, o capitalismo criou mecanismos para controlar toda a cadeia produtiva alimentar como fator de lucros acumulados em mãos privadas. As três maiores gestoras de investimentos do mundo são BlackRock, Vanguard e State Street. Três empresas estadunidenses. Em 2022, as três possuíam US$ 19,7 trilhões em ativos – equivalente a 10,5 PIBs do Brasil. Elas controlam as ações de 21 das 31 corporações que comandam o comércio de alimentos no mundo, entre as quais Coca-Cola, Pepsico, Tyson Foods (carnes) e Bunge (grãos).

A BlackRock detém mais de 5% das ações da Nestlé. As fatias podem parecer pequenas, mas suficientes para exercer pressão. As ações dão direito a voto, o que abre espaço para incidir sobre as diretrizes de uma corporação.

Essas corporações controlam todo o sistema alimentar globalizado: agrotóxicos, sementes, fertilizantes, máquinas agrícolas, farmacêutica animal, processadoras de grãos (tradings), indústria da carne, fabricantes de ultraprocessados e supermercados.

Como enfatiza o cientista político italiano Riccardo Petrella, líder do movimento Slow Food, a BlackRock quer o mundo a seus pés: “Reconfigurar [o mundo] à luz do gigantismo significa principalmente fortalecer a concentração de poder que os últimos 50 anos confirmaram ser perversa. A concentração, especialmente a financeira, ocorre de acordo com os princípios, objetivos e interesses dos sujeitos financeiros e tecnocráticos mais ricos. Os direitos fundamentais à vida e ao bem-estar dos povos da África, América Latina e Ásia são cada vez mais ignorados.”

Segundo dados do relatório financeiro da empresa em 2022, o mercado total de ações e títulos no mundo é estimado em US$ 130 trilhões. Para efeito de comparação, as dez maiores economias do planeta somavam US$ 67,2 trilhões em 2023, ou seja, a metade disso.

Hoje, o capital financeiro em circulação no mundo é muito maior que o chamado “capital produtivo”, dedicado a atividades de comércio, serviços e indústria. Dessa maneira, é fundamental entender a influência das maiores gestoras de investimentos sobre as empresas integradas aos processos produtivos.

Para manter-se poderosa no mercado financeiro, uma corporação precisa sempre entregar melhores resultados. Isso leva a uma pressão por redução de custos, o que significa violações laborais, redução de salários e demissões. E também fraudar o pagamento de impostos, seja legal (elisão) ou ilegalmente (evasão). Bem como pressão sobre governos e parlamentos para que reduzam impostos, cortem direitos dos trabalhadores e promovam ajustes fiscais que afetam prioritariamente as políticas sociais.

O sistema alimentar controlado por corporações é, hoje, responsável por muitos problemas de escala global. Uma das principais preocupações é a ocorrência de doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes, câncer e hipertensão, provocadas pelos ultraprocessados.

A pressão pela redução de custos de produção leva à substituição de ingredientes integrais, como farinhas, gorduras, leite e ovos, por fragmentos e derivados, como soro de leite, isolados proteicos e gorduras hidrogenadas. Somados a aditivos, esses fragmentos resultam em produtos que têm composição nutricional pior e cujos efeitos à saúde física e mental no longo prazo ainda não são totalmente conhecidos. Porém, o que se sabe é suficiente para afirmar que os ultraprocessados são um fator associado a doenças e morte precoce.

Investimentos das maiores gestoras do mundo podem dar ainda mais impulso a que essas corporações tenham posições oligopólicas, excluindo concorrentes menores, e provocando milhares de falências ao longo das últimas décadas. Quem passou dos 50 anos de idade deve se perguntar: onde estão as quitandas, os mercadinhos e os armazéns de nossa infância? 

Além disso, as corporações reduzem cada vez mais os preços dos ultraprocessados. No Brasil, 2022 marcou o momento histórico no qual eles se tornaram, na média, mais baratos que alimentos in natura e minimamente processados.

Muitas empresas do sistema alimentar globalizado estão associadas direta ou indiretamente ao colapso climático que afeta o futuro da humanidade e de milhares de espécies animais e vegetais. As emissões de gases de efeito estufa e a pecuária estão entre as maiores causas de aquecimento global. Monoculturas de grãos (soja, milho, etc.) e criação de gado são duas das principais explicações para o desmatamento e a grilagem de terras. No Brasil, em 2022, a quase totalidade da derrubada de matas e florestas esteve relacionada a essas duas atividades.

Diante disso, o que fazer? Valorizar a agroecologia e a agricultura familiar; comprar nos Armazéns do Campo, caso o seu município tenha um; promover compras comunitárias; organizar hortas coletivas; pressionar políticos e empresas que favorecem o comércio de ultraprocessados. É o mínimo.

(*) Frei Betto é escritor e assessor da FAO para a Soberania Alimentar e Educação Nutricional, autor de “Comer como um frade – divinas receitas para quem sabe por que temos um céu na boca” (José Olympio), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

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