O apego ao presente, a rejeição do futuro e do passado, às vezes arranjado em formas mais coerentes (“o passado já foi, o futuro ainda não existe; só há presente”) são certamente ideias que, em formas várias e em diferentes períodos e lugares, foram populares ao longo da história. Na época histórica em que os fluxos constantes e quase instantâneos possibilitados pelo desenvolvimento das tecnologias da informação mais dobram e deformam nossas percepções do tempo, não é de se espantar que esse tipo de concepção imediatista ganhe mais estima. O presente, afinal, torna-se passado com mais rapidez; e o futuro chega sempre apressado. As ideias que fazemos do tempo, no entanto, não são só sensos-comuns cotidianos que condicionam nossas vidas individuais, nem se limitam a ser objeto de atenção de cansados e cansativos filósofos. Se abatem também sobre a política, isto é, sobre a organização de nossa vida coletiva.
É uma expressão do imediatismo na política o sobrevivismo neoliberal do “não se preocupe com isso, o que importa é ganhar dinheiro”. Mas também o são o reformismo conservador do “as coisas vão mudar pouco a pouco”; o pragmatismo acomodado do “temos que jogar o jogo”; a histeria resignante do “o que importa é tirar tal e qual diabo, depois veremos”; o realismo capitalista do “não há outra opção”; o idealismo cruel do “fim da história” e a sua inversão, o otimismo inocente do “tudo mudou hoje, essas coisas não têm mais como acontecer”. Todas essas concepções, adaptadas cada uma ao gosto dos fregueses da vez, têm em comum o fato de centrarem seus horizontes no presente, ou fixarem o presente como seus horizontes máximos de futuro. Pensando o passado quase como coisa alienígena, ou o futuro como utopia (inalcançável ou se realizando aos poucos), o ideário promovido é um no qual a política se limita a ser sobrevivência, nunca ferramenta do que desejamos conquistar – ou espada que, na mão de inimigos, pode nos alcançar.
O marxismo é uma teoria de libertação de classe. Seu horizonte é, portanto, um futuro radicalmente diferente do que aquele que há hoje. Para que tal teoria se formasse, foi necessário a seus fundadores definir, mais ou menos claramente, sua visão sobre o tempo e formular uma teoria da história. De Heráclito, Marx avançou a premissa de que tudo está em movimento, que “tudo flui e nada permanece” e que, à medida que um homem entra num rio, não só as águas não são as que já foram, mas o próprio homem deixa de ser o que era. Reconhecia, assim, o princípio de que nada é impossível de mudar; que tudo o que é no presente poderia ser outra coisa e, portanto, poderá também ser diferente no futuro, e que o movimento consiste, de fato, nas coisas mudando umas às outras continuamente. As ideias do movimento dialético são, no entanto, só parte do marxismo. A Marx foi fundamental a compreensão de que “os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”. Estabelecia, assim, que o presente não é o fundamental – estando sempre em movimento, é na verdade ele que “não existe” – mas sim a tensão, a contradição criativa ou destrutiva, entre passado e futuro; aquele sendo o que foi e nos assombrando hoje; este podendo ser o que desejarmos, mas sempre sob as limitações do passado.
Essas ideias podem ser impopulares entre os imediatistas políticos. Não devem agradar aos que rasgam qualquer definição de “libertação” de seus dicionários. Certamente são amargas aos que creem que é mais fácil um pobre tornar-se rico do que a pobreza ser extinta. Talvez sejam incompreensíveis aos que imaginam que no passado toda a humanidade era estúpida, mas que hoje, quando “tudo mudou”, todos os seres são, por razão que não explicam, iluminados.
E, no entanto, nestes tempos em que tudo se acelera, constantemente temos prova de que pensar o futuro é fundamental – porque o presente é cada vez mais insuportável – e que o passado não pode ser ignorado, porque pula aos poucos dos livros empoeirados para as transmissões televisivas. Não são tantos, afinal, os que, se referindo à guerra russo-ucraniana, lembram impressionados que “isso está acontecendo no século XXI!”, como se tratassem de coisa inconcebível?
A concordância com ideias revolucionárias não é coisa que possa ser exigida. Tal qual não se pode esperar que cobras voem ou que a água seja seca, não podemos esperar que liberais, conservadores, social-democratas, reformistas e politiqueiros em geral adotem de bom grado o tipo de concepção histórica de Marx.
Mas Maquiavel – que pode até ter aconselhado os povos, mas remeteu aos príncipes e por eles foi muito bem aproveitado – teve concepções sobre o tempo e a história similares àquelas de Marx. Pai do realismo, o florentino focou sua atenção naquilo que as coisas são, não no que deveriam ou poderiam ser: coisa útil, certamente, aos que propõem se apegar ao hoje, aos que se limitam ao “possibilismo” ou que se mantêm céticos sobre a política.
Ocorre que sua crença numa “natureza humana”, não o levava a crer que, na política, as coisas não podem mudar. Maquiavel ergueu uma teoria da liderança extremamente humanista, e uma concepção da política como arte: uma na qual o líder, dentro de determinadas limitações (a fortuna), pode sim (contanto que tenha virtú) alterar os percursos da história; mais, uma na qual o líder só poderá estar seguro se, justamente, confrontar sua virtú com a fortuna. Ao rio de Heráclito talvez respondesse que, independente das mudanças, nas águas e nos homens, o que importa é construir diques: “comparo a fortuna a um desses rios impetuosos que, quando se iram, alagam as planícies, derrubam as árvores e as casas, arrastam terras de um lado para levar a outro: todos fogem deles, todos cedem a seu ímpeto sem poder detê-los em parte alguma. Mesmo assim, nada impede que, quando os tempos estão calmos, os homens tomem providências, construam barreiras e diques […]”. Aqui há também uma concepção que refuta o imediatismo: o passado é um estoque de truques utilizáveis pelo líder; o futuro cabe a ele construir (ao menos em parte, ao menos a metade). “Hoje um príncipe tem sucesso e amanhã arruína-se sem ter mudado sua natureza ou qualidade. Creio que isso se deva […] ao fato de um príncipe que se apoia exclusivamente na fortuna arruinar-se quando ela muda. […] É feliz aquele que ajusta seu modo de proceder à qualidade dos tempos e, similarmente, […] é infeliz aquele que, por seu modo de agir, está em desacordo com os tempos”.
Por que tratar de morte e vida; história e tempo; Maquiavel e Marx; futuro, passado e presente? Porque hoje, 1º de abril de 2022, vivemos mais um aniversário do detestável golpe de 1964, que levou nosso país a 21 anos de imunda ditadura militar. Porque hoje, 1º de abril de 2022, nos preparamos para mais um ciclo (circo? cerco?) eleitoral, talvez, ironicamente, o mais despolitizado dos que já houve. Porque hoje, 1º de abril de 2022, vivemos sob o governo mais militarizado da história da República. A euforia resignada com as eleições de outubro está de acordo com os tempos? A nossa memória sobre 1964 está suficientemente ajustada ao nosso presente? Estão nossos líderes levando o fato do governo Bolsonaro estar repleto de generais suficientemente a sério?
Muitos lembram 1964 como “coisa do passado”, irrepetível, quase como se a ditadura que este criara não tivesse se conservado em quase tudo no presente “democrático” em que vivemos – abrindo brechas até na Constituição de 1988. É curioso que 1964 seja para nós uma espécie de “paradigma” da intervenção militar na política; que pensemos em 1964 como a forma por excelência do intervencionismo militar. À época dos golpes militares de tendência fascista na América Latina – Brasil, Chile, Bolívia – muitos eram os autores que os chamavam de “golpes de novo tipo” ou “intervenções de novo tipo”, dando prova de que as intervenções e golpes de antes haviam sido muitas, ainda que diferentes. Interessante rememorar também que, às vésperas daquele 1º de abril, eram muitos os líderes de incontestável relevância que não acreditavam que um golpe fosse possível; e mais ainda havia daqueles que, apoiando o golpe, imaginavam que os militares logo convocariam novas eleições. As ilusões permaneceram, reprimidas, por 21 anos.
Não quero dizer, por essas razões, que 2022 acabará em golpe. Como lembrei, foram muitas as formas das intervenções, e hoje até os militares, para promulgar seus princípios antidemocráticos e avançar sua fome de poder, indicam que participarão das eleições. Mas estamos nos assegurando disso, ou estamos deixando que a História e o tempo se assegurem? Há diques para os rios?
Vimos, com a guerra da Rússia na Ucrânia, como se formam enchentes; com que facilidade o inconcebível se torna real. Também o testemunhamos com a pandemia – não só com a emergência do vírus em si, mas especialmente com o fato de que 600 mil brasileiros foram sacrificados sem que muitas palhas se movessem. Como o presente é coisa maleável; como o futuro é tão incerto quanto necessário; como o passado é facilmente esquecido, mas sempre dá jeitos de se fazer presente entre nós.
Assegurar-se significa ser capaz de defender-se; só há soberania nas decisões quando se é suficientemente forte para tomá-las sem submeter-nos a outros. Mas até o momento, em preparação para as eleições, o que vemos é um movimento de dupla natureza: as ruas, fatores de poder, quando a muito custo foram ocupadas no ano passado, logo foram desmobilizadas e esvaziadas; as candidaturas, em cenário em que são fortes por si, submetem-se a estúpidas alianças (Lula-Alckmin) com outros, formando-se, por baixo dessas, mais outras várias cadeias de alianças submissas. Procura-se a força nos inimigos, se faz pouco caso de aliados.
Dizia eu, em 2019, que “no campo internacional, a emergência da Rússia e da China como potências capazes de disputar o tabuleiro geopolítico com os Estados Unidos (como foi demonstrado na Síria, no caso da Rússia, e nos gigantescos aportes econômicos da China na América Latina e África) vão desenhando, no horizonte do futuro, ameaças concretas ao domínio unilateral dos Estados Unidos. […] Sendo tão fundamental para os Estados Unidos garantir seu domínio sobre nosso hemisfério, sem dúvidas o Brasil é um alvo estratégico – se não pela sua dimensão, riqueza, população e fronteiras, que seja pelo caminhão de dinheiro chinês despejado aqui.” Hoje, três anos depois, essas “ameaças concretas” não são coisas desenhadas no horizonte do futuro, mas no terreno presente; à pólvora e sanções, não a lápis. Significa dizer que, mesmo que as intervenções não ocorram, o cenário tende a estimulá-las; mesmo que Lula se eleja e tome posse, o espaço para uma política externa “altiva e ativa” é menor; que, enfim, as pressões serão maiores, e quem busca adaptar-se aos tempos, garantir-se frente às ameaças, não pode contar com outra coisa, no Brasil, senão com a mobilização popular. Não precisamos remeter a 1964, ou a 1961, para provar o ponto: bastará olhar a 2016 e ao resultado da inação, das alianças, da busca desesperada por votos.
Amanhã, 2 de abril, a campanha Povo na Rua, Fora Bolsonaro, organiza manifestações nacionais. É uma oportunidade de manter viva na mente a memória de 1964 e, quem sabe, construir alguns diques neste 2022.
ATO NACIONAL DIA 2 DE ABRIL – CHEGA DE FOME, VIOLÊNCIA E DESEMPREGO! POVO NA RUA! DITADURA NUNCA MAIS!
Porto Alegre – Praça da Cemin / 14h
São Paulo – Praça da Sé / 9h
Rio de Janeiro – Praça Agripino Grieco (Méier) / 9h
Belo Horizonte – 9h
Salvador – Praça da Piedade / 9h
Recife – Praça do Derby / 9h
João Pessoa – Praça do Citex / 8h
Fortaleza – Paróquia Jesus, Maria, José / 15h
Natal – Midway Mall / 9h
Goiânia – Praça do Bandeirante / 9h
Sergipe – Calçadão da João Pessoa em frente a CAIXA / 9h