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“Evitar derramamento de sangue” – Uma armadilha histórica

Jango não evitou o derramamento de sangue: adiou-o, e concedeu a seus inimigos a iniciativa de derramá-lo.

Jango não evitou o derramamento de sangue: adiou-o, e concedeu a seus inimigos a iniciativa de derramá-lo. Por Pedro Marin | Revista Opera
Manaus – Quadra 34 do Cemitério Parque Tarumã, onde estão enterrados os dententos mortos na rebelião do Complexo Penitenciário Anísio Jobim. (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Evitar derramamento de sangue. A frase benevolente e heróica, tem sido, em suas diversas variantes, uma constante na história política do mundo. No Brasil, se tornou um mantra: João Goulart, frente ao golpe de 1964, não resistiu para “evitar derramamento de sangue.” Nestes tempos em que o País vai aos poucos vestindo a máscara de 1964 (ou melhor; se desfazendo da máscara de 1985), as palavras misericordiosas voltam a ser repetidas para justificar a falta do pensamento estratégico e a inação, aqui suplantados pelas inclinações morais. Ou seja: à covardia de enfrentar a barbárie se dá o adjetivo da virtude; a coragem moral passa a se manifestar não como uma prática, mas como uma ideia difusa.

Imaginem que este princípio homérico tomasse a cabeça de Robespierre no século 18. Negaria-se a guilhotinar os monarcas, e a monarquia seguiria guilhotinando o povo francês, pouco a pouco, como João Cabral de Melo Neto versou em “Morte e Vida Severina”: a morte “que se morre de velhice antes do trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida).”

Imaginem agora que, para “evitar derramamento de sangue”, o Exército Vermelho não tivesse deixado descarnar os corpos de 231 de seus soldados para libertar Auschwitz: a máquina de matar alemã seguiria viva, triturando em suas engrenagens seis mil vidas por dia.

Tomemos por fim o exemplo de um pacifista, a quem não se pode acusar ter predileção moral pelo sangue derramado. Imaginem que James Bevel e Martin Luther King não tivessem realizado as marchas de Selma, em 1965, pelo temor de deixarem pegadas de sangue. Não teriam os negros conquistado o direito ao voto nos EUA naquele ano.

Agora faremos o mesmo exercício, mas ao contrário: imaginemos que Goulart tivesse seguido os conselhos de Brizola e resistido. Suponhamos que, ao empreender resistência ao golpe, tivesse derramado sangue e vencido e, com isso, aplicado seu programa. Não haveriam 356 mortos e desaparecidos durante a ditadura. Tendo realizado a reforma agrária, haveríamos talvez evitado a morte de mais de três mil camponeses que tombaram desde então.* Vamos supor, ainda, que seu programa econômico possibilitasse que 1 mil deixassem de morrer por ano. Seriam 54 mil brasileiros vivos, ao invés de soterrados estupidamente.**

Fica demonstrado, primeiro, que programas e ideias não são, quer quando aplicados ou impedidos, só palavras: há uma linha clara que divide a política de extermínio da do bem-estar, independente do que foi necessário para dar-lhes cabo ou barrá-las. O poder concretiza as ideias; negue-se a dispor vidas por um programa justo e o injusto as ceifará.

Em segundo lugar, demonstra-se assim que os momentos em que derramar o sangue floreia como uma possibilidade estratégica são normalmente os momentos que levarão, independente do que façamos, ao derramamento de sangue. Quando a história nos impõe o caminho das pedras, impõe também o destino sangrento. Se a seiva rubra será deixada no caminhar em troca de um destino pacífico ou se o caminho se estenderá limpo e a chegada imunda: esta é a questão. Fato é que haverá sangue.

Jango não evitou o derramamento de sangue: adiou-o, e concedeu a seus inimigos a iniciativa de derramá-lo. Acima de tudo, por ser justo e imaginar que não tinha direito ou condições de se responsabilizar pelas mortes, deixou que injustos e irresponsáveis decidissem quem, quantos e como iriam morrer. E assim morreram os inocentes, muitos, das formas mais torpes e pelos motivos mais banais. E seguem morrendo; sem o simbolismo do sangue, talvez sem as chagas, mas aquilo que se negou impedir segue vivo, matando de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia. Lembremos, no presente e no futuro, das lições do passado: aos justos convictos a necessidade estratégica é também uma imposição moral.

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*Notícia de 2012 dá conta de 1196 mortos no campo entre 1961 e 1985  (https://abr.ai/2JYAsCm). Dados da CPT demonstram que desde 1985 foram mais 1833 (https://bit.ly/2yeRsj1). No total, são 3029 corpos que jorraram sangue no campo.

**A cifra pode parecer muito grande quando, de fato, é ainda pequena. Tome-se em conta que, ao ano, 302 mil pessoas morrem em hospitais por falhas que poderiam ter sido evitadas (https://bit.ly/2GPjCnU), e que somente nos últimos 11 anos o total de mortes violentas no País foi de 553 mil (https://bit.ly/2ybOtrI).

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