Aos poucos, figuras que antes apontavam uma série de restrições para um golpe no Brasil – Bolsas de Valores, Estados Unidos, as instituições, militares democratas, o Papa, Cristo mesmo o Próprio – vão escancarando um certo desespero, e agora, às portas das eleições, falam na necessidade de mobilizações populares. Frases do tipo “é preciso deixar claro”, “sem meias palavras”, “não podemos nos iludir” começam a aparecer em comentários sobre os militares.
É um reflexo natural guardar um certo rancor, tendo em vista que desde 2016 estamos apontando nesta direção, que publicamos um livro no começo deste governo dando centralidade a esse problema e que, apesar dos apoios, recomendações e acolhimento de alguns – leitores, comunicadores, jornalistas e até alguns acadêmicos e políticos –, nossa denúncia, “Carta no Coturno – a volta do Partido Fardado no Brasil” permaneceu mais ou menos na marginalidade (e hoje, paradoxalmente, está mais marginal do que nunca). Na introdução daquele livro pedi perdão aos leitores por eventuais faltas de detalhes e pormenores, dizia que não pretendíamos escrever “um tratado completo sobre a questão dos militares no Brasil”, mas sim uma “caixa de ferramentas para compreendê-la no momento atual e nos dias vindouros”: “Ele é escrito com a pressa, ainda que também com o cuidado, de quem avança pela retaguarda das linhas inimigas a fim de obter delas o essencial para agir”. Desde o final do ano passado venho escrevendo um novo livro, com o objetivo suprir algumas das faltas que havia ali. Eis que o tempo urge e a pressa de novo vem bater violentamente em nossas portas.
Portanto, sobre a discussão do golpismo, adianto alguns pontos:
1 – Neste momento, dado o volume das ameaças militares abertas, muitos se atentam à questão. Houve outros momentos em que as atenções se voltaram aos generais – durante a pandemia, por exemplo, e especialmente em setembro passado. Apesar disso, sempre que os militares se calam instala-se uma dinâmica de esquecimento, de volta à normalidade. É necessário compreender que é a conjuntura, com seus componentes internos e internacionais, somada à posição privilegiada dos militares – não só como instituição armada, e sim como instituição armada hegemônica e, atualmente, com a máquina do governo em mãos – que lhes colocam como elemento central da política brasileira hoje. Deixar de considerá-los porque se calam momentaneamente, deixar de lado a preocupação em troca do silêncio, é ser útil ao poder militar.
2 – Igualmente, é necessário reconhecer que o elemento fundamental de sua posição privilegiada é a força real, ou seja, a capacidade de mobilizar violência. Contentar-se com qualquer resposta ao problema que não tenha igualmente este elemento como fundamental, dar os militares por vencidos por qualquer movimento institucional, rezar as missas de Bolsas de Valores, declarações de empresários ou notas de governos estrangeiros imaginando que elas sirvam para exorcizar os fardados também é útil ao Partido Fardado. Estes demônios são nossos, a nós cabe o combate, todos os outros podem negociar à posteriori e a força real só pode ser imobilizada ou batida por outra força real.
3 – Há de se abandonar a fixação por formas específicas de atuação militar. Ela é ruim quando promove o esquecimento da situação dada em troca da atenção a um cenário imaginado. Um exemplo: tornou-se comum usar a expressão “golpe militar clássico” para se referir ao golpe de abril de 1964, sempre acompanhada por afirmações de que “um movimento desse tipo não é possível hoje”. Curiosamente, 1964 foi interpretado à época como um “golpe de novo tipo”, “a nova forma golpista predominante”, como uma ação excepcional, não como forma “clássica”. Mas, mesmo que este não fosse o caso, imaginar um cenário específico para dá-lo como improvável, e usar disso para se esquecer da posição real de poder do Partido Fardado é coisa perigosa. É preciso insistir que as formas de atuação do Partido Fardado são muitas, e que as ameaças de golpismo aberto, ainda que possam se efetivar, são também úteis para que os fardados forcem negociações de todo tipo e tracem outros cenários, com efeitos, no entanto, não muito diferentes do golpe – ou seja, uma situação de conservação de seu poder. Devemos nos fixar na situação dada – o poder de facto dos militares – e na conclusão lógica disso – as várias possibilidades que tal poder lhes oferecem. É seu poder em si que deve ser combatido, não as formas pelas quais este poder pode se expandir. Não faz sentido se escandalizar com declarações de militares sobre urnas eletrônicas e não se escandalizar com o fato do principal candidato nas pesquisas eleitorais ter como emissário no contato com militares o ex-ministro da Defesa Nelson Jobim (MDB), figura que constituiu verdadeiro preposto militar dentro dos governos Lula e Dilma, ora ou outra inclusive aparecendo por aí fardado, apesar de civil.
4 – Reconhecer os militares como fator central também significa deixar de lado o foco excessivo dado à figura carismática – totem? – que lidera o governo. Isso já é uma tradição deseducadora: assim foi e é com a historiografia sobre o Estado Novo (1937-1945), com foco excessivo na figura pessoal de Vargas; assim foi com o governo Jânio, cuja renúncia no Dia do Soldado de 1961 trouxe à frente do processo político uma Junta Militar que imporia o parlamentarismo como condição para que João Goulart assumisse.
Estas são, digamos, algumas recomendações básicas para a interpretação do problema. Seguem algumas para uma preparação preventiva:
5 – Sendo o fator chave da imobilização de uma força real a mobilização de outra força real, numa etapa “preventiva” é necessário apostar na mobilização e organização permanente das massas, tendo entre seus motes de mobilização e agitação, especificamente, o enfrentamento das ameaças golpistas. Este é o fundamental para que um punhado de generais sequer ouse ousar. Qualquer tentativa de repetir o 7 de setembro do ano passado, de imobilizar as massas, de boicotar atos, é inadmissível, e útil ao Partido Fardado. Para enfrentar ameaças golpistas, mais vale um ato de movimento real do que mil notas de associações de juízes, empresários, deputados, senadores ou o que quer que seja.
Leia também – A exceção tem suas próprias regras (ou: um golpe é possível?)
6 – Isso não significa que não haja um papel a ser cumprido pela institucionalidade. Atualmente, PT e PSB somam sete governadores, dos 27 estados da federação. O PDT governa outros dois. Há de se pressionar por um posicionamento conjunto, no mínimo destes nove governadores – e que poderia abarcar outros, naturalmente – decididamente contra qualquer aventura golpista. Deve-se cobrar, naturalmente, que estes mesmos governadores comprometam-se a usar de seu poder e recursos para mobilizar a população de seus estados – e muni-la de tudo que seja necessário – no caso de uma mobilização golpista. A medida tem alguns efeitos positivos para além dos efeitos declaratórios: por um lado, enquadra as Polícias Militares estaduais preventivamente; por outro, escancara aqueles governadores que sequer retoricamente estão dispostos a enfrentar as ameaças golpistas. Não se deve confiar cegamente naqueles governos que eventualmente componham tal frente; e aqueles que não a compuserem devem ser tomados de antemão como inimigos, como golpistas. O mesmo pode ser repetido em frentes parlamentares e de prefeitos.
7 – As organizações populares e os militantes devem prestar especial atenção, neste momento, aos temas da autodefesa e da vigilância. Mesmo que não houvesse ameaças golpistas, a dinâmica eleitoral, desde 2018, já impõe essa necessidade – como demonstram tragicamente uma série de episódios, sendo a morte do dirigente petista Marcelo Arruda, em Foz do Iguaçu, somente o caso mais recente. Deve-se começar pelo mais simples, pelo mais trivial e básico, mas nunca se esquecer das necessidades mais arrojadas; e se deve reforçar a lógica de ceder no individual pela segurança coletiva. Não é um ato de covardia não fazer-se alvo individual de ações de ganguismo em qualquer esquina em troca de garantir a segurança coletiva para o combate a este mesmo ganguismo. Não ser alvo individual, solitário, é medida de segurança do coletivo, do grupo.
E se estas ações preventivas parecerem bastar? E se não bastarem?
8 – É necessário retornar aos primeiros pontos: todas essas ações preventivas, mesmo que efetivadas, não devem ser tomadas como alívio; não se deve baixar a guarda. A mobilização golpista, como insisto, tem como fundamentos a velocidade da ação e a lentidão ou a inexistência de reação. E, enquanto se preservar a institucionalidade assegurada pelos militares na Constituição de 1988, não se dissipará o desejo tutelar destes.
9 – O golpismo é audaz, mas covarde. Um grama de coragem pode ser capaz de imobilizá-lo: se, numa etapa preventiva, a mobilização contínua das massas é fator fundamental, no momento do golpe pequenos atos de heroísmo podem avolumar-se, dando a guarida necessária para mobilizações maiores. No golpe contra Chávez, em 2002, a mobilização dos moradores das favelas caraquenhas foi o fator que tornou possível a um pequeno grupo de militares agir e reverter o golpe, libertando Chávez de seus sequestradores e trazendo-o de volta à cadeira presidencial. Em 1961, a coragem de Brizola e o lançamento da Cadeia da Legalidade foi o que converteu o III Exército, que passou ao lado legalista. Somadas essas forças, a posse de Jango foi garantida. Igualmente, o movimento preventivo de algumas tropas pelas mãos de Henrique Teixeira Lott em 1955, que ocuparam prédios públicos, foi suficiente para impedir que uma ampla articulação golpista avançasse; bem como o ato desesperado do suicídio de Getúlio em 1954. Compreender que o elemento fundamental do golpe é a velocidade da ação e a inação dos que poderiam enfrentá-lo é compreender que, para impedir um golpe, mais vale uma reação fraca no momento certo do que muita força no momento errado.
10 – Não se deve contar com a ação miraculosa das fileiras militares, especialmente com generais ditos “arrependidos” ou “democráticos”. Não significa dizer que não haja militares, especialmente nos escalões mais baixos do oficialato, que vejam na ação de seus superiores uma desonra à farda. Ocorre que estes só se manifestarão ou se mobilizarão se houver guarida social para que o façam. Quanto aos outros: não é de herói a fibra de quem toma o próprio povo por inimigo. Quem o faz não deixa de merecer só a farda; não merece o próprio solo que pisa: o mancha mais do que ele mancha o coturno. É um traidor, um criminoso, aquele que defende uma Pátria imaginada contra o povo que de fato a constitui.
O tempo urge, a pressa bate à porta. Que seja a única.