Enquanto a China realizava exercícios militares de fogo real na costa de Taiwan, simulando uma operação de “reunificação pela força” após a visita cerimonial da presidente da Câmara Nancy Pelosi à ilha, o fervor bipartidário por uma nova Guerra Fria com a China e a Rússia tomou conta de Washington.
“Líderes de ambos os partidos”, reportou o colunista do Washington Post, Josh Rogin, “compreendem que os Estados Unidos têm uma missão e um interesse em […] responder seus adversários tanto na Europa quanto na Ásia”. Os EUA demonstraram que poderiam lidar com a China e a Rússia ao mesmo tempo, diz ele. O Senado votou, por 95 votos favoráveis e um contra, para incluir a Suécia e a Finlândia na OTAN. A Lei de Prevenção da Invasão de Taiwan tem apoio bipartidário. E políticos de ambos os partidos lutaram para dar ao Pentágono ainda mais dinheiro do que este havia requisitado.
A Guerra Fria constitui uma zona de conforto para os Estados Unidos. Nós vencemos a última. Nós somos os mocinhos. É a democracia contra o autoritarismo. E nós temos as maiores e melhores forças armadas. Quem poderia se opor?
Mas as perguntas obscuras permanecem. Uma nova Guerra Fria – que enfrente Rússia e China ao mesmo tempo – serve realmente à segurança dos estadunidenses? Ela avança a prometida “política externa para a classe média” do presidente Biden? Será que a maior parte dos estadunidenses não prefere que o país controle seu desejo por aventuras estrangeiras e se foque em colocar a casa em ordem?
A ameaça existencial para a nossa segurança hoje é o clima extremo causado pelas mudanças climáticas, que já estão custando mais vidas e bilhões de dólares em destruição por incêndios florestais, enchentes, pragas e secas. A varíola dos macacos (monkeypox) nos lembra que os ataques mais letais que nos atingiram vieram das pandemias globais. Encher o Pentágono de dinheiro não ajuda. Não seria melhor se as jornadas do emissário presidencial especial John F. Kerry tivessem tanta atenção quanto a performance de Pelosi em Taiwan? Não é possível responder às mudanças climáticas e às pandemias sem a cooperação da Rússia e da China, e ainda assim, após a visita de Pelosi, os chineses encerraram as conversas sobre estas questões.
A equipe de política externa de Biden se concentrou em alinhar bases e aliados para cercar e conter a Rússia e a China. Mas a guerra na Ucrânia revelou a fraqueza militar da Rússia. Enquanto isso, as sanções cortaram o acesso a alimentos, fertilizantes e minerais russos vitais para países em todo o mundo e podem contribuir para uma recessão global.
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A China de fato é um “competidor pareado”, como o Pentágono a chama. Mas sua força é sua economia, não suas forças armadas. Ela é a principal parceira comercial de países ao redor de todo o globo, da América Latina à Ásia, passando pela África. Quando Pelosi passou pela Coreia do Sul após sua visita a Taiwan, o presidente sul-coreano não a recebeu. O presidente Yoon Suk-yeol, depois soubemos, estava em uma “estadia”, assistindo a uma peça. Tal desprezo por parte de um aliado leal, que abriga quase 30 mil soldados dos EUA, é certamente um reflexo do fato de que a China é a principal parceira comercial da Coreia do Sul. Os Estados Unidos fariam bem em se concentrar – como a China faz – no desenvolvimento de novas tecnologias que definirão os mercados do futuro ao invés de gastar mais de 1 trilhão de dólares em itens como uma nova geração de armas nucleares que nunca poderão ser utilizadas.
Os novos Cold Warriors (Guerreiros da Guerra Fria, em tradução livre) afirmam que a mobilização de forças ao redor da China e da Rússia é defensiva. Mas como Stephen Walt argumenta na Foreign Policy, essa posição ignora o “dilema da segurança”: o que um país considera como medidas inocentes para aumentar sua segurança, outro pode ver como uma ameaça. As administrações dos EUA continuaram afirmando o “direito” da Ucrânia de ingressar na OTAN como uma medida de segurança contra a ameaça representada pela Rússia. A Rússia viu a possível acomodação de forças da OTAN e de mísseis estadunidenses na Ucrânia como uma ameaça. O comentário de Biden de que Putin “não pode permanecer no poder”, ecoado por políticos dos EUA, e o histórico de apoio dos EUA às mudanças de regime em todo o mundo não foram exatamente tranquilizadores.
Embora Washington aceite formalmente que Taiwan é uma província da China, continua armando a ilha e enviando mais forças para o Pacífico. Pelosi descreveu sua visita como uma “declaração inequívoca de que os Estados Unidos estão com Taiwan, nosso parceiro democrático, enquanto defende a si mesma e sua liberdade”. Pequim vê isso como um ataque à sua soberania nacional, uma violação de nossa posição oficial e uma provocação destinada a estimular movimentos de independência em Taiwan.
Os Cold Warriors pressupõem que a maior parte do planeta está do lado deles. Realmente, nossos aliados da OTAN se uniram contra a Rússia após sua invasão à Ucrânia, mas dois terços da população mundial, de acordo com a The Economist, vivem em países que se recusaram a sancionar os russos. Boa parte do mundo desenvolvido mantém uma postura cética – ou ainda pior – quanto às declarações dos Estados Unidos sobre a democracia e uma “ordem internacional baseada em regras”. Esse fato já torna as sanções menos efetivas – as compras chinesas de petróleo e gás russos, por exemplo, aumentaram 72% desde a invasão da Ucrânia. Isso também reflete a crescente força do “soft power” chinês e o declínio da força militar dos EUA.
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As grandes potências declinam em grande parte devido à fraqueza interna e ao fracasso em se ajustar às novas realidades. Em uma era de perigosa conflitividade partidária, a adoção bipartidária de uma nova Guerra Fria compõe um contraste marcante. Mas os velhos hábitos não respondem aos novos desafios. Dificilmente esse será o caminho para a construção de uma democracia vibrante nos Estados Unidos.