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Editorial: As permanências da ditadura

A ditadura não foi uma virose duradoura, mas um câncer, do tipo que, não sendo extirpado por completo, volta a atacar um corpo agora mais combalido.
A ditadura não foi uma virose duradoura, mas um câncer, do tipo que, não sendo extirpado por completo, volta a atacar um corpo agora mais combalido. Por Pedro Marin | Revista Opera
Brasília – Tumulto e confusão marcaram sessão da Câmara do Deputados sobre 50 anos do golpe militar de 1964. (Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil)

No próximo dia 1 de abril, lembramos o 59º aniversário do golpe de Estado de 1964, odioso evento que impôs ao País 21 anos de um regime de exceção comandado pelos militares em conluio com a burguesia interna e o governo dos Estados Unidos.

Invocar a memória e lembrar dos mortos e torturados no que foram os atos mais sujos e desprezíveis do regime militar é uma inclinação e um dever moral. Mas, sob o risco de que as gerações mais novas imaginem que o protesto contra 1964 se refira só ao passado, não devemos nunca deixar em segundo plano aqueles efeitos da ditadura que se prolongam no presente. 

O primeiro e mais óbvio efeito da ditadura foi impedir que as “reformas de base” avançadas pelo governo de João Goulart se efetivassem. Se seguimos sem uma reforma agrária e urbana, é pelo fato de terem sido barradas pelo golpe militar. A concentração fundiária no Brasil, o papel que o agronegócio joga na economia nacional, os assassinatos no campo, a prevalência da escravidão e da semiescravidão, bem como os problemas de infraestrutura, violência e habitação nas cidades – todas características atuais da nossa vida – estão intimamente relacionados ao golpe de 1964 e aos 21 anos de ditadura militar aos quais o País foi submetido. De acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), entre 1985 e 2021 ao menos 1.914 pessoas foram assassinadas em conflitos no campo. De acordo com o Atlas da Violência do Ipea, de 1989 a 2019 houve 1,44 milhões de homicídios no Brasil. Qual parcela destas mortes seria evitável se as reformas de Jango tivessem se consolidado ainda na década de 60?

Outra permanência da ditadura são os efeitos econômicos do regime. O chamado “milagre econômico” (1968-1973) operado pela ditadura se sustentou em um tripé de: 1) endividamento, entrada de capital estrangeiro e queda constante do salário mínimo; 2) redução de investimentos estatais e abertura de muitos setores ao capital privado; e 3) repressão ao sindicalismo, ao movimento operário e estímulo ao êxodo rural rumo às grandes metrópoles. Entreguismo, achatamento salarial e repressão política foram assim elementos fundamentais da política econômica do regime, que provocou um aumento de 30 vezes no endividamento externo durante o período e uma queda quase pela metade do salário mínimo real entre 1964-1985. O salário mínimo real só voltou ao patamar dos dois anos que antecederam o golpe (média de R$1307,70 a valores correntes) em 2015. A média do salário mínimo real ao longo da ditadura (1964-1985) foi de R$ 995,39 em valores atuais. E a dívida externa só foi “resolvida” – isto é, capturada pela dívida interna, hoje concedendo a vultosa taxa de juros de 13,75% ao ano aos seus compradores – em 2006.

Por fim, a ditadura submeteu parte considerável do aparato de segurança pública (polícias militares) às Forças Armadas, militarizando-as e exportando inclusive as técnicas de “guerra interna” a estes órgãos, ao passo que extirpou das fileiras das Forças Armadas todo e qualquer elemento efetivamente nacionalista, de esquerda, democrático ou progressista que nelas houvesse (cerca de 7 mil militares foram perseguidos pelo regime militar). Além disso, os generais, tutelando o processo Constituinte, conseguiram uma Constituição que, no que tange às Forças Armadas, deixou intacta a organização imposta pelo regime militar. Se temos hoje uma das polícias que mais matam (e morrem) no mundo e um Exército doutrinariamente reacionário e sedento por ocupar a política, isto também podemos atribuir à nefasta ditadura.

 Leia também – Wilson Barbosa: “os militares são completamente separados do povo brasileiro” 

Apesar destas permanências da ditadura militar de 1964 no Brasil pós-redemocratização, até 2016 era possível supor, ainda que com algum grau de miopia e um punhado de ingenuidade, que o País lentamente se distanciava dos tempos de chumbo. Era possível argumentar, embora o Brasil tivesse “conservado tudo da ditadura, menos a ditadura”, que aos poucos íamos curando as marcas deixadas no corpo social brasileiro numa longa transição – lenta, gradual e segura – rumo à efetivação dos direitos democráticos. Isto é, que a doença de 64, embora não tivesse sido curada com a redemocratização, seguia sendo lentamente combatida no soro democrático da Nova República. Mas veio o golpe contra Dilma, a participação de militares no governo Temer, o governo Bolsonaro e sua redoma verde-oliva e o 8 de janeiro. Há de se reconhecer que a ditadura não foi uma virose duradoura, mas um câncer, do tipo que, não sendo extirpado por completo, volta a atacar um corpo agora mais combalido.

É verdade que, após terem seus planos frustrados no 8 de janeiro – e não me refiro aqui à bem-sucedida destruição dos prédios do STF, Congresso e Presidência da República, mas à proposta de impôr uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para respondê-la –, os golpistas deram um passo atrás.

 Leia também – Clemente, o imorrível 

Os militares acenam com uma dita despolitização das Forças Armadas, com uma disposição a retomar um “diálogo normal” com o governo Lula, e prometem, inclusive, que não haverá comemorações do golpe de 1964 nos quartéis. É o próprio comandante do Exército, General Tomás Miguel Ribeiro Paiva, quem assume que trata-se somente de dar um passo atrás para, depois, dar dois à frente. No dia 18 de janeiro, o general fez um discurso público (e bastante difundido) tido como legalista e democrático para a tropa, mas em reunião fechada no mesmo dia afirmava, sobre a possibilidade do governo Lula impor reformas às Forças Armadas: “Faz parte da cadeia de comando segurar para que isso não ocorra. Agora fica mais difícil, mas nós vamos segurar, porque o Brasil precisa das Forças Armadas. Da nossa postura, da nossa coesão, da nossa manutenção dos valores, da crença na hierarquia e disciplina, do nosso profissionalismo, depende da força política do comandante e dos comandantes de Força para obstar qualquer tipo de tentativa de querer nos jogar para o enquadramento.”

“Segurar para que isso não ocorra”, obstar “qualquer tentativa de querer nos jogar para o enquadramento” segundo o general, “depende da força política do comandante e dos comandantes de Força”. Depende de acenos e discursos públicos, de silêncios nos quartéis, de amigáveis relações com o presidente, de coletivas de imprensa bem-sucedidas. Embora mude a tática, os fins são os mesmos: segurar, obstar, impedir – em resumo, decidir, como militar, o que fora de uma ditadura cabe somente aos civis.

Se vê que o silêncio autoimposto nos quartéis neste 1 de abril pouco tem de valoroso ou honesto. Opor-lhe o brado das ruas é, portanto, fundamental: não se pode mais uma vez contemporizar com os que insistem, no presente, a nos puxar à força ao passado.

Neste 1 de abril, o Ato Nacional pela punição de Bolsonaro e contra a Ditadura Militar ocorre em 27 cidades:

SUDESTE

São Paulo – SP: 14h – Largo General Osório, 66 (Antigo DOPS)
Ribeirão Preto – SP: 10h – Esplanada do Teatro Pedro II
Rio de Janeiro – RJ: 10h – Arcos da Lapa
Belo Horizonte – MG: 9h – Praça 7 de Setembro
Juiz de Fora – MG: 11h – Cine Teatro Central
Poços de Caldas – MG: 14h – Rua Assis Figueiredo, em frente ao Itaú
Viçosa – MG: 7h30 – Feira Livre (aula pública)
Itaúna – MG: 10h – Praça da Matriz

NORDESTE

Salvador – BA: 10h – Campo da Pólvora
Fortaleza – CE: 9h – Praça do Ferreira
Natal – RN: 9h – Praça do Relógio
São Luís – MA: 9h – Praça Duque de Caxias
João Pessoa – PB: 8h30 – Parque da Lagoa
Campina Grande – PB: 9h – Calçadão da Cardoso Vieira
Petrolina – PE: 9h – Praça do Bambuzinho
Recife – PE: 9h30 – Monumento Tortura Nunca Mais
Caruaru – PE: 9h – Câmara Municipal
Imperatriz – MA: 19h – Sindicato dos Trabalhadores Rurais
Maceió – AL: 9h – Calçadão do Centro

SUL

Curitiba – PR: 9h – Boca Maldita
Florianópolis – SC: 9h – Em frente ao UCE (centro)
Porto Alegre – RS: 15h – Glênio Peres
Pelotas – RS: 14h – Esquina Democrática
Rio Grande – RS: 10h – Largo Dr. Pio

CENTRO-OESTE

Goiânia – GO: 10h – Mon. aos Mortos e Desaparecidos da Ditadura Militar, Av. Assis Chateaubriand, Setor Oeste – próximo ao Bosque dos Buritis

NORTE

Belém – PA: 9h – Escadinha da Est. das Docas
Manaus – AM: 19h – Praça Santos Dumont, 15 – Centro – Próx. ao hospital Santa Júlia

* A publicação foi alterada às 19h34 do dia 31/03 para atualização da lista de atos.

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