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Arcabouço fiscal: o governo Lula prepara sua própria forca

Mil vozes podem dizer, que o arcabouço fiscal “é melhor do que o teto de gastos”. Nenhuma dessas súplicas muda o fato de que ambas designam o Estado, antes de tudo, como um acumulador de ouro e prata, não como um indutor de produtividade.
Mil vozes podem dizer, que o arcabouço fiscal “é melhor do que o teto de gastos”. Nenhuma dessas súplicas muda o fato de que ambas designam o Estado, antes de tudo, como um acumulador de ouro e prata, não como um indutor de produtividade. Por Pedro Marin | Revista Opera
18.04.2023 – Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante assinatura do marco fiscal elaborado pela equipe econômica para o Congresso Nacional. Palácio do Planalto – Brasília – DF. (Foto: Ricardo Stuckert/PR)|

Num livro clássico, “História da riqueza do homem”, o jornalista marxista estadunidense Leo Huberman conta que, nos séculos 17 e 18, havia um amplo debate sobre qual era o fator responsável por tornar um país rico. À época, havia aqueles que consideravam que a riqueza de um país era decorrente da quantidade de ouro e de prata que conseguia acumular. Daí que, em muitos países, tenha se iniciado uma corrida pela acumulação dos metais, que incluiu, em muitos casos, decretos que proibiam o seu uso para além das fronteiras nacionais.

Uma outra teoria logo emergiu para dar lugar a essa, afirmando que, no que tangia à riqueza de um país, o que importava não era fundamentalmente seu estoque de ouro ou de prata, mas as relações comerciais que o país, a partir deste estoque, conseguia manter, e se estas relações contribuíam para engrandecê-lo economicamente. Em resumo, a forma de enriquecimento de um país não estava no acúmulo dos metais em si, mas no fato deste país ser capaz de comercializar produtos mais complexos do que aqueles que comprava; e se tinha a capacidade de produzir mais do que consumia. O próprio aumento do estoque de metais na Europa, afinal, não era decorrente de alguma graça divina, mas do fato das potências europeias terem conseguido estabelecer empreendimentos coloniais na América, África e Ásia.

Embora a simplicidade dessas doutrinas mercantis não fosse suficiente já então para explicar o que faz um país rico – e certamente não são suficientes hoje –, elas revelam, ainda naqueles tempos, duas formas absolutamente distintas de pensar a economia. Em uma das formas, a primeira, a riqueza é medida de forma estática; ela é um estoque parado que deve crescer. Na outra forma, a segunda, a riqueza tem uma forma dinâmica; o que importa não é o estoque fixo de riqueza em determinada forma, mas as relações econômicas e produtivas reais que o país mantêm, e se são ou não proveitosas para este país em termos futuros, e de podem crescer, mesmo que isso implique gastar o estoque parado de riquezas.

Aquele que buscasse simplesmente acumular o máximo de ouro e prata possível, aumentando seu estoque indefinidamente, teria uma gorda poupança, mas poderia ser ultrapassado por um outro país que, talvez sem tão grande poupança, investisse na complexificação de sua produção e comércio. Em resumo: a “riqueza” do ouro e da prata não era intrínseca aos metais, à forma, mas à capacidade desses metais de, como riqueza investida, garantir a um determinado país uma posição “dominante” nas relações comerciais, seja pela produção de novos produtos, seja pela capacidade de produzir com mais eficiência, seja pela abertura de novas relações comerciais. O que importa perceber é que a produção de riqueza, a “riqueza das nações”, paradoxalmente, exige o gasto.

Em 2016, sob o governo Temer, foi aprovada a Emenda Constitucional 95, o “teto de gastos”. Pelo teto de gastos, as despesas e investimentos do governo ficavam congelados por 20 anos, só podendo “crescer” na mesma medida da inflação – ou seja, na prática não podendo ter crescimento real. Como o País já tem um déficit social, produtivo e de infraestrutura bastante profundo, com a desindustrialização se aprofundando cada vez mais, e como a população, em 20 anos, inevitavelmente cresceria, na prática o teto de gastos significava uma redução dos já enxutos (e necessários) gastos e investimentos públicos. Era uma medida tão radical que, há ao menos dois anos, o “teto” vinha sendo furado. Por isso, foi dada ao ministro Haddad, pela Emenda Constitucional da transição, a tarefa de propor uma nova regra fiscal até agosto deste ano. O ministro pisou no acelerador de sua proposta, a apresentando em 30 de março e entregando-a ao Congresso no dia 18 de abril. Na última quarta-feira (17), a Câmara dos Deputados aprovou a urgência do projeto de arcabouço fiscal do governo Lula, proposto por Haddad e alterado pelo relator, deputado Cláudio Cajado (PP-BA). Com a aprovação da urgência, se espera que o projeto do novo regime fiscal do governo Lula seja votado diretamente no Plenário, sem ser discutido nas comissões, ainda nesta quarta-feira (24).

A proposta de Haddad

Tal qual o “teto de gastos”  – embora de maneira menos radical –, a proposta do arcabouço fiscal de Haddad parte do pressuposto de que é fundamental restringir os gastos do Estado para que o governo se mantenha em “superávit primário” – isto é, que o governo arrecade mais do que gasta. Mil vozes podem repetir, com razão, que o arcabouço fiscal de Haddad “é melhor do que o teto de gastos”. Nenhuma dessas súplicas muda o fato de que ambas designam o Estado, antes de tudo, como um acumulador de ouro e prata, não como um indutor de produtividade ou, mesmo, de melhores condições de vida para seu povo; e que, de fato, o arcabouço, se por um lado designa o Estado como um estoquista de riquezas, por outro restringe a sua participação na economia nacional.

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Para isso, a proposta do governo Lula previa que o crescimento das despesas do governo se limitaria a 70% do crescimento da receita primária (arrecadação com impostos e transferências). Isto é, mesmo que o governo aumentasse a arrecadação num determinado ano em 10 bilhões, só poderia usar 7 bilhões adicionais em gastos e investimentos*.

A proposta também previa uma alteração na definição do cumprimento da meta do resultado primário das contas públicas. Essa meta é o saldo entre o que se arrecada e o que se gasta em determinado ano, sem contar o pagamento de juros da dívida. A proposta de Haddad previa uma “banda” de 0,5% para o cumprimento da meta, de forma que uma meta de resultado primário definida em 1% de superávit em um determinado ano seria considerada cumprida se ficasse entre 0,75% ou 1,25%. Caso esse cumprimento mínimo não se desse, no entanto, haveria uma limitação maior dos gastos do governo no ano seguinte: ao invés dos 70%, o governo só poderia gastar 50% daquilo que arrecadou.

A proposta previa, ainda, uma segunda regra, que na prática limita a primeira: que o crescimento anual de gastos do governo deveria atingir um mínimo de 0,6%, e um máximo de 2,5% acima da inflação. Isto é: os investimentos públicos devem crescer, inevitavelmente, pelo menos 0,6%, mas só podem crescer até 2,5%, independente do crescimento da arrecadação do governo. Como o economista David Deccache esclareceu numa simulação, se desde 2003 o governo aumentasse seus gastos de acordo com esse teto (2,5%), o país teria perdido 8,8 trilhões de reais em investimentos e gastos públicos. “Perderíamos praticamente um PIB em gastos públicos em vinte anos. Isso significa que o nosso Estado seria muito menor. Teríamos menos universidades e hospitais públicos, menos investimentos públicos, menos salário mínimo, menos servidores públicos – e com menores salários – e, provavelmente, um crescimento do PIB ainda menor que o observado. Lembrem: cenário otimista. E na pandemia, teríamos o Armagedom, literalmente”, escreveu. Isso, como pontua o economista, considerando o cenário mais otimista, no qual o governo vai até o teto dos gastos (2,5%) e não o mais pessimista, no qual cumpre simplesmente o piso (0,6%). Os professores Antônio José Alves Júnior e João Sicsú fizeram projeção similar na CartaCapital, levando em consideração a regra dos 70% do crescimento da arrecadação e o máximo de 2,5% de aumento de gastos, em comparação com as despesas realizadas entre 2003 e 2022, conforme gráfico abaixo. A linha azul representa as despesas do governo entre 2003 e 2022. A linha laranja, quanto essas despesas representariam, no mesmo período, se aplicada a regra dos 70%. A linha cinza, por fim, levando em consideração a regra do teto de 2,5% de crescimento de gastos.

Por fim, a proposta de Haddad deixava algumas despesas fora destas regras. Estas incluíam:

– Transferências constitucionais; créditos extraordinários;
– Transferências aos fundos de saúde dos estados, do Distrito Federal e dos municípios para pagamento do piso da enfermagem;
– Despesas com projetos socioambientais ou mudanças climáticas custeadas com recursos de doações ou de acordos judiciais ou extrajudiciais;
– Despesas das universidades públicas e dos hospitais federais e das instituições federais;
– Despesas das instituições federais de educação, ciência e tecnologia, vinculadas ao MEC;
– Despesas de instituições científicas, tecnológicas e de inovação custeadas com receitas próprias, de doações ou de convênios, contratos ou outras fontes, celebrados com os demais entes federativos ou entidades privadas;
– Despesas com recursos transferidos pelos estados e municípios para a União e que sejam destinados à execução direta de obras e serviços de engenharia;
– Despesas com eleições;
– Despesas com o aumento de capital de empresas estatais não financeiras e não dependentes;
– Despesas relativas à cobrança pela gestão de recursos hídricos da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA);
– Gastos com gestão de florestas do Instituto Chico Mendes;
– Repasse de recursos ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb);
– Precatórios relativos ao Fundeb.

As mudanças do relator

Antes do regime de urgência sobre o arcabouço fiscal ser aprovado na Câmara, o projeto do ministério da Fazenda passou pelas mãos do relator, deputado Cláudio Cajado (PP-BA).

Aliado de Lira, Cajado trabalhou para piorar o já problemático texto do ministério da Fazenda, restringindo ainda mais a independência do governo nos seus gastos e investimentos. Primeiro, colocou o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica), responsável pelo financiamento da educação básica, e o piso salarial da enfermagem sob o arcabouço. Assim, esses investimentos ficam limitados às regras propostas por Haddad, disputando espaço no orçamento com outros gastos.

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Além disso, Cajado também estabeleceu sanções (os chamados “gatilhos”) caso a meta do resultado primário seja descumprida. Num primeiro ano de descumprimento, o governo ficaria proibido de criar cargos que impliquem no aumento de despesas, de criar auxílios ou novas despesas obrigatórias, de conceder benefícios tributários ou de alterar a estrutura de carreiras.

Num segundo ano de descumprimento, o governo fica proibido de reajustar despesas com servidores, fazer contratação de pessoal ou abrir novos concursos públicos – exceto para repor cargos vagos. Também o Bolsa Família não poderá ter aumento real (acima da inflação) caso as metas sejam descumpridas.

O governo contra si mesmo (e o povo)

A aprovação do teto de gastos do governo golpista de Michel Temer, seis anos atrás, ocorreu sob ampla mobilização popular e repressão. Tudo indica que o “arcabouço fiscal” do governo Lula será aprovado na Câmara sem muita movimentação dos de baixo. A despeito de ser um substitutivo da regra de Temer (“melhor” do que ela na mesma medida em que é realizável, quando o teto de gastos não era), as principais centrais sindicais e movimentos sociais no Brasil não mobilizaram suas bases contra o arcabouço fiscal. Mesmo os deputados do PT foram empurrados a aprovar o arcabouço; no último dia 15, o presidente Lula afirmou que não admitirá “racha” no partido quanto à matéria, pedindo que os parlamentares do partido não apresentassem emendas ao projeto. Na semana anterior, o deputado Lindbergh Farias (PT-RJ) teria tido seu nome vetado na CPI do 8 de janeiro como uma “punição” por ter criticado a proposta do ministro Haddad. A postura do PSOL, que votou contra a urgência do arcabouço dizendo precisar de mais tempo para avaliar a proposta, também desagradou o governo, e estimulou setores do PT que buscam boicotar o prometido apoio do partido à campanha de Guilherme Boulos (PSOL-SP) para o governo do Estado de São Paulo no ano que vem.

Num cenário em que o teto de gastos de Temer já estava absolutamente desacreditado, ao invés de pressionar por uma regra fiscal radicalmente distinta (ou mesmo regra nenhuma), e de estimular para tanto a pressão dos movimentos sociais, sindicatos e da própria base parlamentar do PT, o governo Lula propõe a reatualização do teto, e para tanto imobiliza as próprias bases. Assim, restringe sua própria capacidade de investimentos, e prepara a própria forca quando tiver de manejar a economia em um cenário de crise – os “gatilhos” de Cajado só servem para o governo dar tiros no pé (ou no coração). O arcabouço fiscal, como o teto de gastos, só tem um objetivo: tirar o pobre do orçamento e restringir a presença do Estado na economia. Precisamente os objetivos contrários dos propostos por Lula ao longo de sua campanha.

* O texto foi alterado às 01:36 de 24/05/23, para corrigir a informação de que “mesmo que o governo aumentasse a arrecadação num determinado ano em 10 bilhões, só poderia usar 7 bilhões adicionais em investimentos”. Na realidade, são gastos e investimentos.

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