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O homem da Nova República: força e hegemonia no governo Lula

Em 2003, subiam a rampa ideário e homem; em 2023, sobe o homem, mas a ideia rareia. Sem mobilizar organização popular, governo Lula não poderá formar consenso.
O presidente Lula sobe a rampa como presidente do Brasil. 01.01.2023. (Foto: Mídia NINJA)

20 anos atrás, na primeira posse de Lula, subia a rampa o homem – o pequenino migrante nordestino, o operário grevista, o organizador de partido –, mas subia também, com ele, o espírito da Nova República. Subia a rampa a expectativa de que o regime democrático liberal fosse mantido, apesar das ameaças; a esperança de que os direitos sociais inscritos na Constituição de 1988 fossem efetivados; a sanha de que as disputas políticas não fossem nunca mais resolvidas às balas e paus-de-arara, mas sim pela normalidade do voto; a promessa de que o andar de cima e o de baixo, separados no Brasil por longa tradição de radical espoliação, pudessem se concertar aos poucos rumo a uma grandeza comum. Lula era empossado, e assim coroaria todo esse ideário, que havia se manifestado na saída da ditadura, nos anos 80, sem que se tivesse ainda efetivado nos governos neoliberais dos 90, como hegemônico. Subia a rampa o homem, e com ele o espírito da Nova República.

A hegemonia é, antes de tudo, o domínio da força, embora não seja (nem apareça) como o domínio pela força. Ela é constituída de uma combinação de violência e ideologia, de coerção e consenso: bloqueio à força de determinados caminhos e oferecimento de rotas alternativas. A hegemonia se efetiva em forma plena quando estes primeiros caminhos deixam de parecer possíveis e estas rotas passam a parecer normais. Neste caso, o bloqueio à força daqueles caminhos se torna ato marginal, perde importância. Esta transição, de uma organização social que se baseia fundamentalmente na violência – na força –, para uma organização em que este aspecto quase não aparece e o consenso é que reina é um dos elementos que, para Gramsci, diferenciam o velho Estado, todo repressivo, e o novo Estado, que busca também produzir consenso. O que nunca pode ser ignorado é que, embora a hegemonia pareça se assentar (e de certa forma de fato se assente) majoritariamente no consenso, este consenso está, por sua vez, assentado na coerção; e que, embora em determinados momentos o que antes demandava enorme quantidade de força passe a não demandar mais nenhuma, sendo garantido pelo consenso, estes momentos só são alcançados por enorme quantidade de força, que antes abriu a vereda para que se consolidassem como hegemônicos, em forma aparentemente somente ideológica. É dizer: o “novo Estado” de Gramsci só pôde estruturar todo o seu aparato ideológico, de consenso, sobre o aparato de força, de violência, do “velho Estado”. Para que um certo conjunto de ideias, valores ou expectativas se conformem como hegemônicas, se tornem “normais”, é necessário que antes se assentem no movimento real de uma força social, política e/ou militar. Quando Lula subia a rampa pela primeira vez, o espírito que o homem encarnava havia antes sido carne nas greves do ABC e no Movimento pelas Diretas. É o que não compreendem os que repetem desde 2018 a divisa “mais livros, menos armas”, como se aqueles fossem uma espécie de antídoto a estas. Ao contrário, o antídoto para que o povo brasileiro não se organizasse em armas, para que por elas fosse dominado, foi sempre, desde 1500, o contínuo projeto de deseducação do povo. Por outro lado, a divisa supõe que as armas impostas pela extrema-direita estejam vazias de livros. Estão cheias. A onda que derrotou a hegemonia normalista durante os anos 2015-2016 foi aberta por profetas da ordem de Luiz Felipe Pondé, Reinaldo Azevedo, Leandro Narloch,  e especialmente Olavo de Carvalho, que invadiram as livrarias do país e a internet, criando o arcabouço teórico e cultural de uma direita que hoje planeja seus atentados. É um erro terrível supor que os inimigos são brutos desmiolados, que se multiplica quando se espera, ao mesmo tempo, que os amigos ou os aliados de hora sejam só intelectuais sensíveis.

Em 2003, subiam a rampa o ideário e o homem; em 2007, o ideário era já hegemônico. Em 2023, o homem sobe a rampa, mas o ideário rareia. Estão na memória os anos em que a radicalidade da direita se manifestava em fraudes midiáticas e inserções na TV; voltaram agora as bombas, os coturnos, as vivandeiras dentro e fora dos quartéis. É passada a certeza da manutenção do regime democrático liberal – uma presidenta sofreu um golpe; a validade das urnas foi colocada sob dúvida; as eleições foram manipuladas, com a anuência do Congresso, por vultosas quantias, em verdadeiro esquema de compra de votos; os eleitores foram barrados e enquadrados a caminho das urnas pela Polícia Rodoviária Federal; e mesmo quando os resultados eleitorais vieram, foram instalados, em protesto, bloqueios em rodovias de todo o País, que escalaram para a “noite de fúria” em Brasília. Os direitos sociais inscritos na Constituição foram tão vilipendiados nos últimos anos, tão brutalmente atacados, que o atentado passou a ser inscrito mesmo na Carta, na forma da Emenda Constitucional 95, o Teto de Gastos. E o sonho de que o andar de cima e o de baixo pudessem se concertar já não é mais possível: aquele passou à contínua demolição deste a partir de 2016, e ambos o recordam. Mais importante que tudo isso: há agora o ressurgimento de um movimento de massas de extrema-direita, que se liga ao componente militar, e que disputa a conformação de uma nova hegemonia no Brasil, algo inédito desde o udenismo dos anos 50 e 60. As ruas não são mais, como eram em 2002, um monopólio da esquerda.

A hegemonia novo-republicana está de fato morta, embora ainda viva a Nova República, ou um arremedo dela; não compreendê-lo é buscar colar os cacos do que foi antes festa. De fato, é o que Lula busca fazer: “Vinte anos atrás […] a mudança que pretendíamos era simplesmente concretizar os preceitos constitucionais”, disse em seu discurso de posse. “Hoje, nossa mensagem ao Brasil é de esperança e reconstrução. O grande edifício de direitos, de soberania e de desenvolvimento que esta Nação levantou, a partir de 1988, vinha sendo sistematicamente demolido nos anos recentes. É para reerguer este edifício de direitos e valores nacionais que vamos dirigir todos os nossos esforços. […] A democracia será defendida pelo povo na medida em que garantir a todos e a todas os direitos inscritos na Constituição.” A afirmação é de toda correta, cabendo apenas observar que nunca, desde 1988, os direitos de todos e todas estiveram garantidos, não podendo, portanto, todos e todas defenderem a democracia em medida muito grande; e também que nunca, desde 1988, tais direitos foram tão brutalmente atacados.

Para restabelecer a hegemonia da Nova República – se é que isso é possível –, mais do que reerguer algumas de suas formas, mais do que recuperar alguns dos direitos constitucionalmente vilipendiados nos últimos anos, é necessário organizar força capaz de sustentá-la, sob o “risco”, inclusive, de que tal força, uma vez mobilizada, busque ir além da Nova República. Não só porque este espírito novo-republicano perde valor, depois de tantos ataques, nas contas do povo; mas também porque partes expressivas das classes dominantes e da burocracia estatal (especialmente militar) passaram a valorizar e a organizar a sua força para estes ataques. Não só os que em tese se beneficiam da manutenção da Nova República perdem a crença em seu espírito; também os que creem não se beneficiar suficientemente dela buscam, hoje, destruí-la à força. Usam para tanto as “armas” do consenso, em editoriais e rádios, mas também armas literais, em atentados e ameaças militares. E têm à sua disposição, desta vez, uma massa que não se pode ignorar. É necessário respondê-los à altura. Confirma esta opinião, por um lado, a ex-presidenta Dilma Rousseff, quando diz que “temos de nos organizar para conseguir apoiar que as medidas legislativas e políticas que o governo venha a tomar tenham apoio, tenham sustentação, e que não ocorra nenhuma ruptura que nós não possamos enfrentar. […] Porque a gente diz que ‘ditadura nunca mais’, que daqui pra frente é ‘democracia sempre’. ‘Democracia sempre’ sem uma estrutura de organização popular não se mantém, sinto informar.” E também o confirma o ex-vice e futuro senador Mourão, quando afirma que Lula “chegou com espírito de revanche e sem entender que venceu uma eleição no photochart, portanto sem um apoio francamente majoritário“. De fato, como pode a “convivência republicana” dar espaço à reconstrução do “edifício da Nova República” quando um homem como Mourão, ex-vice de Bolsonaro e senador eleito, se sente confortável para, num jornal, mobilizar o imaginário dos 58 milhões que votaram em Bolsonaro no segundo turno contra um governo que tomou posse há menos de uma semana? É Lula de fato quem está tomado pela vontade de revanche? Por outro lado, como reconstruir a hegemonia novo-republicana, ou ainda construir nova hegemonia, quando o binômio força e consenso, no governo, é representado por José Múcio, no ministério da Defesa, e Juscelino Filho, no das Comunicações? Convém rememorar, seis anos após o impeachment de Dilma – apoiado por Juscelino e que abriu as portas dos quartéis para os militares e seus representantes – que golpe é guerra. A ex-presidenta parece convencida de que de fato é.

Se o primeiro dia de Lula empossado fosse uma indicação do que virá pelos próximos 48 meses, se o passado 1 de janeiro pudesse ser considerado uma pequena célula tronco posta no esgarçado tecido social brasileiro, que crescesse num mesmo sentido ao longo de todo o governo, expulsando o terrível cancro que se apoderou do corpo do País nos últimos anos, poderíamos vaticinar, desde agora, que este será um grande governo.

A previsão não seria justa só pelos simbolismos do dia da posse: do povo passando a faixa a um presidente dele advindo, do presidente derrubando lágrimas pela fome após um que ria sem vergonha da morte, do Brasil bem representado na imensidão vermelha na capital federal – vestida de vermelha e de pele vermelha – numa metáfora cabível à cor do Pau que ao País deu nome e cujos inimigos, de verde e amarelo, buscaram extirpar pela força (os de ontem às machadadas, os de hoje a tiros). Nem seria justo o vaticínio só pelas palavras pronunciadas por Lula, especialmente em seu discurso no Congresso, onde denunciou nos mais duros termos o governo anterior, comprometeu-se a pôr fim à fome, a retomar obras paradas e investimentos em programas como o Minha Casa, Minha Vida e o Bolsa Família, a investir no desenvolvimento industrial, na educação, na saúde, a alcançar o desmatamento zero da Amazônia e a revogar as injustiças do governo anterior contra os povos indígenas, a promover a valorização do salário mínimo, a fortalecer a integração sul-americana e o BRICS e a buscar a revogação da “estupidez” chamada teto de gastos. Não; se fôssemos prever a grandeza do governo com base neste primeiro dia, seria pelas medidas nele assinadas pelo presidente, dentre as quais figuram o reestabelecimento do Fundo Amazônia e a revogação de medidas aprovadas por Bolsonaro que facilitavam o garimpo ilegal; uma medida provisória assegurando aos pobres o auxílio de 600 reais pelo Bolsa Família; a determinação de que a Controladoria Geral da União (CGU) revise os sigilos impostos por Bolsonaro em relação a seu governo; e principalmente a retirada de estatais (Correios, EBC, Petrobras, etc.,) dos programas de privatização.

Mas, apesar de toda emoção que o simbolismo possa trazer, apesar de toda a aprovação que as palavras possam evocar, apesar de toda a bravura que as medidas possam reter, o dia da posse dificilmente poderá representar, quatro anos adiante, um bom retrato do terceiro mandato de Lula, a não ser que seja permitido ao povo, mais do que subir a rampa, barrar os caminhos – antes pela força, para que possa ser consenso – a seus inimigos. A começar por aqueles muitos que já compõem o governo: cada cargo deste significa, nesta nova conjuntura, mil frentes do governo abertas aos golpes mais violentos. E a conjuntura é nova, precisamente, porque há mais de mil dispostos a tais golpes. Demonstra-o claramente o ministro da Defesa, José Múcio, ao declarar que os atos em frente aos quartéis são “democráticos”.

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