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Ucrânia: de Odessa a Donetsk, sangue por sangue

Catalina e Alexander sobreviveram ao massacre de Odessa, na Ucrânia. Se conheceram na luta clandestina contra organizações nazistas. Foram presos, torturados e, enfim, libertados durante uma troca de prisioneiros.
Catalina e Alexander sobreviveram ao massacre de Odessa, na Ucrânia. Se conheceram na luta clandestina contra organizações nazistas. Foram presos, torturados e, enfim, libertados durante uma troca de prisioneiros. Por Julio Zamarrón | El Salto – Tradução de Pedro Marin para a Revista Opera
Catalina e Alexander, sobreviventes do massacre da Casa dos Sindicatos de Odessa de 2014. (Foto: Julio Zamarrón / El Salto)

Enquanto a mídia nos informa sobre o avanço do exército russo em Odessa, este último mês marcou o nono aniversário do massacre na casa dos sindicatos na mesma cidade. O massacre, que ocorreu em 2 de maio de 2014, foi realizado por diferentes facções de extrema direita próximas ao Setor Direita e a batalhões neonazistas como o Aidar ou o Azov. Naquele dia, eles incendiaram a Casa dos Sindicatos de Odessa. Vídeos do dia mostram como as pessoas que tentaram escapar das chamas foram baleadas ou espancadas até a morte. A contagem oficial para aquele evento foi de mais de 42 mortos e mais de 200 feridos.

Catalina e Alexander vivenciaram essa situação em primeira mão. Nós os encontramos na República Popular de Donetsk, que atualmente está anexada à Rússia e permanece muito próxima da linha de frente. Andando por suas ruas, ouvimos a artilharia, indo e vindo. Catalina e Alexander são um casal. Eles se conheceram durante a luta de um comando urbano clandestino após o Massacre da Casa dos Sindicatos de Odessa. Ambos foram capturados, presos e libertados após cinco anos numa troca de prisioneiros. Vamos nos encontrar em um hotel no centro da cidade. Embora seja um prédio civil, foi recentemente bombardeado pela artilharia ucraniana.

Catalina tem 43 anos, é tradutora de vários idiomas e tornou-se politicamente ativa em 2013, em manifestações contra o Euromaidan. Ela nasceu em Odessa e é uma mulher de aparência imponente que transmite muita força. Ao lado dela está Alexander, com um olhar um pouco mais perdido. Ele transmite a sensação de ter tido muitas experiências, e não exatamente boas. Ele diz que é um homem comum, um engenheiro, e que começou sua luta na mesma época que sua esposa.

Como foi o início de 2014 e como você vivenciou o golpe de Estado?

Alexander: O que senti durante o golpe foi que, com a chegada do novo governo e dos neonazistas, chegava o derramamento de sangue e a morte. Desde o Maidan, uma névoa caiu sobre todo o país. Senti algo em meu interior me dizendo que tínhamos de lutar contra esse ressurgimento fascista.

Sei que você vivenciou em primeira mão o massacre da Casa dos Sindicatos de Odessa. O que você lembra desses momentos?

Alexander: Estávamos na Casa dos Sindicatos naquele dia ensolarado. No centro da cidade, na Praça Grega, os nacionalistas se reuniram como se fosse uma simples reunião de ultras [torcedores organizados] do time FC Metalist. Logo começaram as agressões e os eventos sangrentos nas avenidas. Eles se aproximaram da praça e foram a pé até a Casa dos Sindicatos, onde o massacre começou. No início, estávamos na praça onde a Casa está localizada quando vimos essa multidão de nacionalistas com paus, pedras, armas, coquetéis molotov etc., chegando. Rapidamente nos refugiamos, pensando que estaríamos seguros lá dentro, que a polícia chegaria, cercaria o local e impediria que os nazistas atacassem a Casa dos Sindicatos. Achamos que eles nos protegeriam… mas a polícia não fez nada. Nós estávamos lá… vimos pessoas caindo das janelas, pessoas sendo queimadas vivas. Quando caíam, os nacionalistas batiam nos feridos com paus. Foi um verdadeiro inferno.

Como você conseguiu escapar e sair vivo?

Alexander: Fomos evacuados pela equipe de bombeiros, se é que se pode chamar isso de evacuação. Quando saí da Casa, fui baleado, espancado e ferido pelos neonazistas. Como resultado, tive vários ossos quebrados. Então a polícia concordou em nos colocar em seu ônibus e nos levou para a delegacia de polícia. Foi assim que fui salvo.

Catalina: Fui salva por um milagre, havia vários jornalistas filmando e eles tiveram piedade. Lembro-me de uma grande câmera que estava gravando ao vivo, eles (os cinegrafistas) disseram que iam resgatar as mulheres que estavam lá e, com a ajuda dos bombeiros, algumas de nós, mulheres, conseguimos sair sem sermos agredidas. Fomos salvas porque eles estavam transmitindo ao vivo.

Você já tinha presenciado esse nível de violência em sua vida?

Alexander: Nunca antes em nosso país, na URSS ou na Ucrânia, eu havia visto um nível de violência tão grande. Isso mudou nossa maneira de pensar e perceber o mundo. Entendemos que algo precisava ser feito para combater a situação e esses grupos neonazistas.

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Após esse evento, você iniciou uma nova etapa em sua vida: a luta clandestina como membro de um comando urbano. Como foi dar esse passo?

Alexander: Amamos nossa terra natal e queremos viver em um país normal e pacífico. Quando vimos a violência nacionalista, a violência com que estavam atacando a população, as humilhações, como estavam aniquilando pessoas normais, eu e outros decidimos lutar contra esse fascismo. Conheci alguns homens e mulheres, como minha esposa, formamos um grupo e começamos a vida na clandestinidade. Nosso primeiro objetivo era destruir os escritórios de recrutamento de grupos neonazistas como Azov ou Aidar, que ajudavam os batalhões nacionalistas. Não tínhamos nada. Fazíamos tudo sozinhos, tínhamos de aprender à medida que avançávamos. Foi assim que aprendemos a fabricar explosivos para destruir esses centros que estavam ajudando a matar a população civil aqui no Donbass.

Você fala sobre centros de recrutamento, quem os organizava? E como você conseguiu resistir por mais de meio ano?

Alexander: Isso inclui os centros da organização Setor Direita ou centros voluntários do Azov ou Aidar. No que diz respeito à nossa vida, ela se tornou mais difícil e complicada, não tínhamos apoio centralizado, éramos apoiados pela população local de Odessa. Ficamos na clandestinidade por sete meses, até sermos capturados pelo serviço de segurança ucraniano. Nunca recebemos nenhum apoio da polícia e nunca mudamos de residência. De manhã, eu vivia como um cidadão comum e, à noite, lutava contra os nazistas.

Catalina: Éramos moradores de Odessa, nascemos e vivemos lá durante toda a nossa vida. As pessoas com quem interagíamos eram nossos vizinhos, mas quase todas as pessoas do serviço secreto que estavam nos procurando para nos capturar eram de fora. Nós nos sentíamos seguros em nossa cidade, mas eles se sentiam alheios.

Alexander: Gostaria de lhe contar uma história que me lembro sobre o transporte público em Odessa. Depois de um ataque, fotos da minha esposa apareceram em todos os bondes e ônibus de Odessa, com a legenda “procurada por terrorismo”. Milhares de pessoas a viram, muitas a conheciam, mas ninguém a denunciou aos serviços de segurança ucranianos. Ficou claro que Odessa é contra o fascismo ucraniano.

Catalina olha para nós e continua com outra anedota.

Catalina: Eu estava tranquila porque, anos atrás, uma cartomante me disse que eu viveria muito tempo. Mas me lembro de outra ocasião em que vi na Internet, depois de destruir um centro de voluntários/recrutamento, um vídeo do proprietário do centro procurando os responsáveis e assistindo a um vídeo meu realizando o ataque, mas a maior pista que eles tinham para me identificar era que eu estava usando jeans! Eles estavam muito perdidos.

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Como foi sua prisão?

Alexander: Por mais que tentassem nos encontrar, os serviços de segurança em Odessa não conseguiram nos localizar, então uma nova equipe foi enviada de Kiev para realizar uma nova investigação. Com a ajuda dessa equipe, fomos pegos. Fui preso em meu apartamento e levado para os escritórios dos serviços de segurança ucranianos. De lá, fui levado para o porão, onde tive uma conversa muito “intensa” com os funcionários do serviço de segurança. Em seguida, fui transferido para a prisão, onde passei cinco anos, até a troca de prisioneiros que me devolveu a liberdade.

O que você quer dizer com “intensa”? Você foi torturado?

Alexander: Eles me batiam com bastões de ferro, batiam em todo o meu corpo, me insultavam. Eles jogavam futebol e eu era a bola. Depois de ser libertado em Donetsk, tive que me submeter a uma cirurgia devido às consequências da tortura sofrida pelo serviço de segurança ucraniano.

Catalina: Fui capturada mais tarde, também em meu apartamento, enquanto pensava em como fugir da cidade. Pensei que, se saísse, eles me prenderiam na fronteira. Não tive tempo de fazer nada, a polícia chegou, revistou minha casa e me levou para suas instalações nos escritórios de segurança. Tive sorte porque não fui torturada fisicamente, embora as humilhações psicológicas tenham sido significativas. Eles não me deixaram dormir por dias, não me deixaram deitar nem descansar. Os interrogatórios eram constantes, sem advogado, cheios de ameaças e coerção. Eu não conseguia pensar normalmente. Eles me disseram que atacariam meus pais e parentes, que eu desapareceria para sempre e que ninguém encontraria meu corpo. É algo que você tem que viver para entender. Eu via em seus escritórios as insígnias dos batalhões nazistas, eles achavam que era normal colaborar com eles. Eu sabia que eles podiam fazer o que quisessem comigo e que ficariam impunes.

Como a história continua, como era a prisão?

Alexander: Uma prisão não é lugar para uma pessoa comum, é um lugar para criminosos, e nós não somos criminosos. Vivia em uma cela de oito metros quadrados compartilhada com três homens, com dois beliches, um de cada lado, uma pequena mesa, um vaso sanitário e uma pia. Dois metros quadrados por pessoa, o mesmo que um túmulo. No verão, morríamos de calor e, no inverno, de frio. De alguma forma, sobrevivemos a isso. Apesar de os telefones serem proibidos, encontramos uma maneira de nos comunicar. E foi assim que se passaram quase cinco anos de nossa vida. Em dezembro de 2019, fomos trocados por outros prisioneiros e transferidos para Donetsk. Lá eles nos ajudaram muito, havia assistência médica, ajuda com o trabalho, procedimentos burocráticos e de residência. Enquanto estávamos na prisão, recebemos o apoio de parentes e mulheres que participavam dos comícios anti-Maidan em Odessa e nos traziam comida, porque a comida na prisão não era comestível.

Catalina: Eu estava na mesma prisão, na seção feminina. Havia três mulheres em minha cela, que tinha o mesmo tamanho das celas masculinas: oito metros. No verão, era muito quente e, no inverno, às vezes eles ligavam a calefação. Meu pai morreu enquanto eu estava na prisão, então só restaram minha mãe e aquelas mulheres para me ajudar. A atitude dos guardas ou funcionários da prisão era normal. Eles eram pessoas normais, entendiam que não éramos criminosos, mas prisioneiros políticos. Eles só faziam o trabalho de manter os prisioneiros em suas celas, nunca houve tortura na prisão.

Continuamos conversando com eles para ter uma ideia de como deve ser uma prisão em território ucraniano para um prisioneiro político após o golpe de Estado de 2014.

Alexander: A primeira coisa que me ajudou na prisão foi a convicção da vitória, ainda hoje estou convencido de que derrotaremos o fascismo. Como eu disse antes, as mulheres idosas e as mulheres que participaram das manifestações anti-Maidan nos ajudaram e nos alimentaram. Lembro-me de uma mulher idosa que não tinha dinheiro suficiente para sua vida cotidiana, mas se sustentava, e tirou de seu próprio bolso para trazer duas garrafas grandes de água e dois pães para mim na prisão.

Catalina: Lembro-me de uma anedota do inverno. As tradições ortodoxas celebram o batismo em 19 de janeiro. Há uma tradição de tomar banho em um rio ou no mar. Como estamos no inverno, a água é fria, mas a tradição é muito popular entre a população. Bem, aconteceu que o padre da prisão encheu uma pequena piscina no pátio da prisão. Primeiro os homens fizeram entraram, depois o padre perguntou se na ala feminina alguém queria se banhar, estava muito frio. Somente eu decidi tomar esse banho. Mas eu não tinha um traje de banho na prisão, então fui para a piscina com uma camiseta e uma calça, tomei banho e voltei para a cela completamente molhada. Lembro-me dos olhares perplexos dos outros, que me olhavam como se eu fosse louca.

Ambos começam a parecer cansados, há bombardeios do lado de fora e a hora do toque de recolher está se aproximando. Por isso, decidimos fazer o trecho final da entrevista.

Como foi a libertação?

Alexander: Foi de repente, depois de cinco anos de prisão, fomos levados a uma audiência com o juiz. Ele nos informou que estávamos em uma lista de prisioneiros que seriam trocados e, quase uma semana depois, isso aconteceu. Para a troca, todos os prisioneiros que participariam foram reunidos em uma instalação em território ucraniano. No dia seguinte, eles nos colocaram em um ônibus e nos levaram para a linha de contato do front. E então passamos por uma tenda para fazer um check-up, de um lado estava a Ucrânia nazista e do outro a República Popular de Donetsk (RPD). Atravessar ali foi o sopro de ar fresco que eu estava esperando há cinco anos.

Catalina: Para mim, foi bem parecido. Eu não conseguia acreditar. Foi quando nos trocaram, uma semana depois, que eu realmente acreditei nas palavras do juiz. Fiquei feliz quando subimos no outro ônibus, no território da RPD, e fomos para a cidade de Donetsk.

Como mulher, quais são as dificuldades adicionais que você encontrou?

Catalina: Parece-me que, como mulher, as coisas são dificultadas de duas maneiras: na prisão ou na luta clandestina. Se diz que a guerra é coisa de homem, mas nem todos os homens têm a coragem de defender sua pátria. Eu tinha ouvido as histórias de minha avó sobre a grande guerra patriótica, e decidi seguir o exemplo dela e seguir seu caminho.

Quais são suas expectativas, como vocês veem a situação atual dessa guerra?

Alexander: Estou feliz por morar em Donetsk e por pertencer a este belo país, a Rússia. Tenho certeza de nossa vitória nesta guerra. Espero e acredito que o mundo mudará para melhor. Não apenas na Rússia, mas também na Europa, deve surgir um futuro melhor para nós.

Catalina: Também estou feliz por viver na Rússia e nesta cidade maravilhosa. Assim como meu marido, tenho certeza da vitória, apesar de estarmos passando por momentos difíceis. Sou otimista e acredito que venceremos todos os obstáculos.

Alexander: A população da Ucrânia não concorda com o governo e com o que está acontecendo, mas não está armada, não está organizada. Agora estamos com medo pelas pessoas que participaram dos protestos anti-Maidan e nos ajudaram. Os batalhões neonazistas têm impunidade para fazer o que quiserem sob o governo de Zelensky. Os oposicionistas em território ucraniano estão em uma situação de perigo real.

Quais são as convicções para lutar em defesa de ideias, mesmo arriscando a própria vida?

Alexander: Eu não podia ficar sentado em casa enquanto os nazistas matavam e humilhavam as pessoas. Eles baniram nossa cultura e nos impuseram uma cultura completamente estranha. Queriam mudar nossa vida e banir nosso idioma. Não consegui suportar isso e decidi lutar contra os nazistas. Mas nunca atacamos o povo de Odessa, nunca matamos ninguém. Só agimos contra os centros de voluntários que colaboraram com os nazistas e eles sim de fato matavam civis. Aqui em Donetsk, juntei-me aos voluntários na zona de repressão militar especial. Luto por minha pátria contra o nazismo, como meu avô fez quando lutou contra a Alemanha nazista, essa é a conexão entre nossas gerações. Para terminar, quero dizer que é preciso lutar por sua pátria, por você mesmo, por seus filhos. Se confiarem, vocês vencerão.

Catalina: Eu também não queria aceitar o golpismo. Todos nós sabemos o que aconteceu em outras ex-repúblicas soviéticas. Todos nós sabíamos que, com o golpe, teríamos os mesmos resultados. Quando começamos a ver os símbolos da extrema direita nos muros da cidade e os nazistas nas ruas, senti que tinha de tomar partido. Espero que, com o tempo, muito mais pessoas nos ouçam e nos entendam. Que entendam que não é verdade o que é dito na mídia. Eu sabia que minha atividade clandestina poderia me levar para a cadeia, mas decidi fazer o que sabia que tinha de fazer.

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