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A direita moderada e o fascismo

Apesar da destruição imposta ao País pelo último governo, a direita, nas tribunas conservadoras ou nas manchetes liberais, parece agir como se o País não tivesse mais uma extrema-direita por enfrentar.
Apesar da destruição imposta ao País pelo último governo, a direita, nas tribunas conservadoras ou nas manchetes liberais, parece agir como se o País não tivesse mais uma extrema-direita por enfrentar. Por Pedro Marin | Revista Opera
Brasília (DF) 07/06/2023 Sessão plenária e virtual que votou a medida provisória (MP 1.162/2023) que que retoma o programa habitacional Minha Casa, Minha Vida. (Foto: Lula Marques/ Agência Brasil)

A afirmação de que liberais e conservadores historicamente colaboraram com a ascensão do fascismo costuma gerar protestos de frações de direita ditas “democráticas”. Nas prédicas, esses setores costumam insistir que tratam-se não só de doutrinas diferentes, mas radicalmente opostas, e atribuem esse apontamento a uma estreiteza de visão das esquerdas.

Embora seja verdadeiro que, por algum tempo, setores de esquerda tenham usado “fascista” como  um mero incremento retórico, o fundamental da observação não está no comparativo destes ideários, de fato distintos, mas sim no fato de que, buscando seus próprios objetivos, os liberais e os conservadores sempre viram no fascismo emergente, nos momentos de crise, um aliado útil. 

O histórico italiano e alemão são exemplares: as fileiras de camisas-pardas ou negras tiveram as portas franqueadas pela direita liberal e conservadora por serem adequadas ao combate à “ameaça vermelha”. Também o fenômeno foi visível na ditadura militar brasileira: supondo uma derrubada rápida de João Goulart seguida por uma normalização institucional, a direita liberal e conservadora deu entusiasmado apoio aos militares em 1964, de resto como se repetiu em toda a América Latina, sendo o Chile, transformado em laboratório neoliberal, o caso mais explícito. Faça-se justiça: em ambos os casos, setores consideráveis do liberalismo e conservadorismo depois romperam (embora bem tardiamente) com os respectivos governos fascistas, muitas vezes tendo sido neste processo, eles mesmos, alvos de perseguição. Ainda assim: efetivamente contribuíram para a ascensão fascista.

No Brasil, na crise de 2014-2016 e nas eleições de 2018, o fenômeno se repete mais uma vez. Depois de servirem como tropa de choque lavajatista a partir de 2014, e de terem combatido em bloco pelo golpe contra Dilma,  jornais conservadores e liberais, em 2018, passaram a ver em Haddad – hoje seu ministro favorito na Esplanada –, uma ameaça, que impunha uma “escolha muito difícil”. Os novos heróis do liberalismo que emergiram do golpe – como políticos do MBL ou lavajatistas como Moro – escolhiam aliar-se a Bolsonaro, na busca de “refundar o Brasil” moral ou economicamente. E enquanto os ruralistas se entusiasmavam com o novo líder, que prometia lhes dar armas para “combater o MST”, os frios e pragmáticos rentistas da Bolsa garantiam que o presidente, se eleito, “seria controlado”.

Aqueles de nós que chamávamos “fascista” tudo o que não tivesse os interesses populares em conta aprendemos, não sem amargor, a sermos mais criteriosos. Os que com tanta insistência diziam que essa comparação era injusta, por outro lado, não reforçam sua validade pelos seus atos? É certo que muitos moderados de direita se arrependeram dos votos dados em 2018. Mas demonstram hoje terem aprendido com os erros?

Um dos elementos negligenciados nos comentários sobre as derrotas impostas ao governo pelo Congresso nas últimas semanas, ou sobre a cobertura da imprensa sobre estes seis meses de governo Lula, é este: apesar da destruição imposta ao País pelo último governo, apesar da presença militar na cena política, e apesar de atos como a invasão das sedes dos Três Poderes no dia 8 de janeiro, a direita, nas tribunas conservadoras ou nas manchetes liberais, parece agir como se o País não tivesse mais uma extrema-direita por enfrentar.

Liberais e conservadores “democráticos” exigiram que Lula III fosse um governo de concertação, de amplíssima moderação, pela ameaça que o bolsonarismo representava. O Partido dos Trabalhadores, de bom grado, aderiu à exigência, fazendo profundas concessões programáticas. Os liberais e conservadores “democráticos” têm feito esse esforço de aproximação ao centro? Retrocederam, um centímetro que fosse, na aplicação de seu programa máximo? Adotaram uma maior moderação na sua crítica, sob a ponderação de que a conjuntura não é de estabilidade e normalidade institucional?

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O que se vê até o momento é que não: aproveitaram a moderação petista para exigir cada vez mais, cerrando fileiras com a extrema-direita que, em tese, se interessavam em combater, e se opondo, pelo contrário, ao próprio governo que exigiram que se amainasse em nome do combate comum ao fascismo. Lula foi mais ao centro; a direita “democrática” ficou onde estava, sabendo que à sua destra há uma força perigosa e ciente da degradação das condições de vida do povo.

Há exemplos práticos dessa colaboração. O arcabouço fiscal, proposta neoliberal adiantada por Haddad que na prática reatualiza o teto de gastos, foi tornado ainda mais fiscalista ao passar pelas mãos de Cláudio Cajado (note-se: do PP da Bahia e aliado de Lira). Sob pressão, o governo votou favoravelmente nesta proposta – considerando inclusive uma “vitória” o que lhe foi arrancado sob chantagem. Já a extrema-direita foi liberada para votar contra (os três deputados do Novo votaram contra o arcabouço, assim como cerca de dois terços dos deputados do PL de Jair Bolsonaro). Embora o arcabouço aprovado tenha sido suficientemente fiscalista para o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, considerar que “o risco de inflação sair do controle não existe mais” (é o mesmo Campos Neto que insiste em manter uma taxa pornográfica de juros, a 13,75%), jornais como a Folha de São Paulo emitem editoriais dizendo que “o novo regramento orçamentário, que tramita no Congresso com o aval das forças fisiológicas, estabelece apenas limites débeis ao avanço da despesa, sem oferecer uma perspectiva confiável de contenção da dívida pública, hoje já em patamares exagerados para uma economia emergente.” Em editorial anterior, o mesmo jornal dizia que “o Congresso melhorou em algo a proposta do Executivo, mas as normas ficaram complexas, o que sempre dá margem a subterfúgios”.

O esquema repetiu-se com a votação da MP dos ministérios. Enviada pelo governo no início do mandato, a Medida Provisória estabelecia a estrutura ministerial do governo Lula III. Se não fosse aprovada pelo Congresso até a meia noite de 1 de junho, perderia a validade, levando assim a uma reestruturação do governo nos moldes anteriores e, provavelmente, um apagão momentâneo do Executivo. Na comissão mista que analisava o texto, o relator Isnaldo Bulhões, de Alagoas (note-se mais uma vez: líder do MDB na Câmara e também aliado de Lira) fez uma série de alterações para esvaziar os ministérios do Meio Ambiente, Povos Indígenas e Desenvolvimento Agrário, além de devolver ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI) a responsabilidade pela inteligência federal, abrindo caminho para que os militares voltem a controlar a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). A comissão especial aprovou as mudanças no texto no dia 24 de maio, com apoio do governo. A Câmara aprovou o texto sete dias depois, no dia 31 de maio, e o Senado enfim o acatou no dia 1 de junho, faltando cerca de 11 horas para a MP caducar. Mais uma vez, o PL e o Novo majoritariamente votaram contra a proposta, bem como partes consideráveis do União Brasil (15 de 50 deputados) e Republicanos (7 de 31). Neste caso, os editoriais destacaram “a ação de forças retrógradas e adversárias da pauta ambiental”, mas notam também que “não menos relevante, chama a atenção que o governo Lula tenha optado por aceitar sem maior enfrentamento a derrota legislativa”. O editorial costura, por fim: “É racional, pois, que o governo escolha as batalhas que precisa e que pode travar. O que não parece evidente, decorridos quase cinco meses de mandato, é se o presidente tem clareza de quais são elas.” Há de se perguntar: um editorial que reconhece que o Congresso “tem assumido mais influência sobre as decisões de governo e poder sobre as verbas do Orçamento”, mas que não toma contra essa “maior influência” a posição contundente que tem mantido contra o governo tem clareza das batalhas que precisa e pode travar? A propósito, esta “maior influência” do Congresso não se relaciona com a demolição do Executivo a partir do impeachment de Dilma, que teve como ponta de lança, não podemos esquecer, o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha? E quais são as inomináveis “forças retrógradas”? Trata-se de frações do agronegócio, sempre defendido e comemorado nas manchetes? Por que não nomeá-las?

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Em resumo: as forças de direita “moderada” na Câmara, arregimentadas pelo presidente da Casa, Arthur Lira, deformam as propostas já tortas do governo e exigem que este libere emendas para aprová-las. A extrema-direita, adotando a postura de boicotar abertamente o governo e votando contra qualquer proposta que possa promover alguma estabilidade institucional, aumenta o passe dos “democratas” de direita do Centrão. O governo, decidido na paralisia, se submete, e comemora suas derrotas como vitórias. E a imprensa conservadora e liberal segue focando suas críticas no governo, ora por se submeter demais – como é o caso da MP dos ministérios –, ora por não ir longe o suficiente – como no caso do arcabouço fiscal –, ora por conceder emendas e cargos ao Centrão para garantir os votos necessários. Perceba-se que os editorialistas e colunistas não adotam essa mesma postura contra as forças de direita e extrema-direita no Congresso, como se o governo operasse numa espécie de vazio ou vácuo, ou como se o Congresso não fosse um Poder. O governo, não importando o que faça, há de se enfrentar com a tríade da chantagem, do boicote e da crítica, trinca infernal composta tanto por liberais e conservadores como por fascistas, cada qual possibilitando aos outros o seu espaço de atuação – espaço conquistado sempre às custas do terreno do Executivo.

“Não há nada mais parecido com um fascista do que um burguês assustado”, diz a frase atribuída a Brecht. No Brasil dos últimos oito anos, haveria de se completar: assustado ou confiante.

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