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Hakim Adi: “mudança de discurso sobre racismo é reflexo do movimento de massas”

Em entrevista à Opera, o professor Hakim Adi fala sobre a história do pan-africanismo, sua relação com o comunismo, e as lutas antirracistas hoje.
Em entrevista à Opera, o professor Hakim Adi fala sobre a história do pan-africanismo, sua relação com o comunismo, e as lutas antirracistas hoje. Por Pedro Marin | Revista Opera
Manifestantes durante um protesto contra a violência policial na cidade de Abeokuta, na Nigéria, em 31 de outubro de 2020. (Foto: Asokeretope)

O professor Hakim Adi foi a primeira pessoa negra a alcançar o posto máximo da carreira acadêmica na Inglaterra. De ascendência nigeriana, Hakim tomou interesse por História ainda na infância, por volta dos cinco anos de idade, quando vivia no condado de Kent, a sudeste de Londres. “Quando criança, crescendo, uma das primeiras coisas que notei estudando História é que eu não estava nela”, disse numa entrevista. “A História que me foi apresentada era uma História sobre grandes proprietários brancos”. Essa percepção levou Hakim, por volta dos 13 anos de idade, a uma mergulho obsessivo no estudo da história africana e à decisão de se tornar professor de história.

O interesse pela África prosseguiu após a entrada na Faculdade de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres, onde Hakim tomou contato com o marxismo e passou a estudar também a história da diáspora africana. Estes interesses o levaram enfim ao tema do Pan-africanismo, ao qual dedicou diversos trabalhos.

Hoje professor da Universidade de Chichester, Hakim é um dos maiores especialistas em história do pan-africanismo do mundo. Por ocasião da publicação de seu livro “Pan-africanismo: uma história” (EDUFBA, 2022) no Brasil, o professor concedeu a seguinte entrevista à Revista Opera.

Revista Opera: Eu quero começar lhe perguntando sobre sua trajetória. Como você se interessou pelo Pan-africanismo? Como foi a sua entrada na universidade e seu primeiro contato com a política?

Hakim Adi: Bom, são uma série de perguntas. Eu cresci na Inglaterra, e naquele tempo, quando eu era adolescente, havia muito pouca informação sobre a África, sobre os africanos ou sobre a diáspora africana. Esse era um grande problema pra mim, à medida que crescia, então comecei a pesquisar sobre essa história por conta própria; eu era jovem, devia ter 13 ou 14 anos. E eu decidi que queria estudar a história africana quando estivesse na faculdade, com a esperança de poder ensiná-la para outras pessoas. Foi assim que comecei a me interessar pela história africana.

Quando estava na faculdade, no princípio queria ser um professor de História na escola. Mas não consegui entrar no curso preparatório para professores, e depois de muitos anos voltei à universidade e fui fazer meu PhD. Eu queria estudar um aspecto da história africana que tivesse alguma conexão com a Inglaterra. E tive várias ideias antes de achar, enfim, o tema ao qual eu acabaria me dedicando, que foi pesquisar as organizações estudantis africanas na Inglaterra de 1900 a 1960. E, à medida que estudava essas organizações e os indivíduos que faziam parte delas, percebi que todas essas organizações e esses indivíduos, de uma forma ou outra, tinham uma conexão com o Pan-africanismo. Até mesmo as organizações na África eram, em geral, Pan-africanas. Por exemplo, havia organizações populares em todas as colônias britânicas na África Ocidental, e você vê que eles interagiam com pessoas de outras partes da África, ou do Caribe, ou dos Estados Unidos, do Brasil, enfim; de outros lugares. A todo lugar que eu olhava durante a pesquisa, havia o Pan-africanismo. E ao longo desse trabalho eu tive a oportunidade de trabalhar em vários aspectos dessa história, por exemplo o Congresso Pan-africano de Manchester, em 1945, e uma coisa foi levando a outra, de forma que antes que eu percebesse, já tinha escrito quatro livros que tinham “Pan-africanismo” no título [risos]. Eu não planejava fazer isso, mas foi como a História se apresentou para mim.

Vivendo em um país como a Inglaterra, ou em um país como o Brasil, é difícil não se preocupar com a sociedade em que se vive e com os problemas que emergem dessas sociedades. No meu caso, questões relacionadas ao racismo me levaram a estudar a História, e também me levaram a pensar: qual é a solução? O problema é simples, sabemos qual é o problema – bem, talvez não saibamos qual é o problema a princípio; achamos que entendemos o problema do racismo, sentimos o racismo, o experienciamos, achamos que o entendemos, e então encontramos algumas pessoas que nos dizem coisas como “o racismo não é necessariamente uma característica permanente do mundo”. “Como assim?”, perguntamos, e a pessoa explica: “bem, à medida que a sociedade muda, as características, manifestações e problemas também mudam”. Quando eu era jovem e alguém me disse isso, fiquei interessado. “Ok, então como resolvemos esse problema?”,  perguntei. E me deram o argumento: “Se mudarmos a sociedade, podemos mudar todas essas coisas”. E então vocês se torna interessado nessas coisas, até que alguém diz algo ainda pior: “temos que tratar disso cientificamente”. O que isso quer dizer? “Bem, o socialismo não é só uma utopia, é uma ciência, e se você estudar essa ciência, pode entender o movimento da sociedade e como nós podemos intervir nela, movendo o processo adiante em nosso favor”. Bom, essas ideias, essa forma de análise da sociedade, é muito poderosa – precisamente por isso o inimigo passa tanto tempo dizendo que ela não funciona [risos].

Uma vez que você se torna convicto disso, é difícil abandonar esse caminho. É uma forma de compreender o mundo. Então desde a juventude eu estava interessado nestas ideias e atividades, a perspectiva de tornar o mundo melhor e permitir que os que trabalham desfrutem dos frutos de seu trabalho. E, o que é mais importante, a forma de ler a sociedade e seus problemas: pobreza, racismo, guerra, degradação ambiental, violência estatal, etc., todas essas coisas que sabemos. Então tentei trazer uma perspectiva para meu trabalho, de forma que pudesse focar no movimento comunista, mas não só nele; também em outras figuras que estiveram envolvidas em lutas para tentar mudar a sociedade. Então tento escrever uma História que traga à tona o que podemos chamar de fator humano; o fato de que os humanos podem, devem e são agentes da mudança.

Revista Opera: Mas o seu contato com o marxismo veio na universidade, ou antes disso?

Hakim Adi: Bom, quando se entra na universidade, há todo aquele espectro de grupos políticos, o que pode ser desconcertante. A princípio não estava muito impressionado com nenhum deles. Mas, à medida que vai conversando com as pessoas, você acaba tendo contato com informações e temas que lhes interessam; então posso dizer que foi por meio dessas discussões com amigos que encontrei o que procurava, digamos. Mas sim, foi por meio da universidade, e pelo encontro com várias pessoas, que eu acabei tendo essa orientação política, que achei útil. 

Revista Opera: No começo de seu livro “Pan-africanismo: uma história” (EDUFBA, 2022), você reconhece que há muitas definições, e até um problema de definição, para o Pan-africanismo. você dá uma definição mais ampla do Pan-africanismo, como “a crença na unidade, história e propósito comum dos povos da África e da diáspora africana, e a noção de que seus destinos estão interconectados”. Primeiro, é curioso, levando em conta a força que o Pan-africanismo tem no continente africano hoje, notar que ele de fato nasceu na diáspora, não no continente. Mas, se por um lado é importante para o Pan-africanismo precisamente levar em conta tanto os que vivem no continente quanto na diáspora, também é verdadeiro que os desafios enfrentados por esses dois grupos são muito diferentes. Me lembro da história de um conhecido, que foi para a Angola com uma grande expectativa de pensar e discutir a escravidão, seus ancestrais, etc., e voltou com uma certa frustração, dizendo que lá “ninguém parecia estar interessado nisso”. E me lembro também de uma história de um estudante africano que veio estudar no Brasil e disse que “se tornou consciente de que era negro no Brasil” – obviamente, pelo encontro com o racismo brasileiro. Por que é tão importante a criação de um movimento que una esses dois grupos? Que desafios a união destes dois grupos diversos impôs ao Pan-africanismo historicamente? E essa unidade entre a diáspora e o continente segue importante hoje?

Hakim Adi: São perguntas importantes. Creio que se olharmos as coisas de forma histórica, torna- se mais fácil compreender a evolução e o desenvolvimento do Pan-africanismo. Podemos dizer, é claro, que o Pan-africanismo como um movimento moderno se inicia com a Primeira Conferência Pan-Africana, em Londres, em 1900. Mas a conceituação do Pan-africanismo é anterior; anterior até à existência do termo “Pan-africano”. Há exemplos disso no Brasil, na Inglaterra, nos EUA, Haiti, etc. E no livro eu digo que a célebre Revolução Haitiana era um exemplo de Pan-africanismo em ação. O Pan-Africanismo é criado pelas circunstâncias nas quais os africanos e a diáspora africana se encontram. No Haiti, havia meio milhão de africanos, de diferentes partes do continente, falando línguas diferentes, e que tinham sido forçosamente retirados de suas terras-natais, e de repente estão em um lugar completamente diferente, com uma expectativa de vida de 7 anos. Como eles reagem a isso? Se uniram, se organizaram, acham uma forma de se comunicar entre eles, e pela primeira vez na História os escravizados derrubaram o regime escravocrata, derrotaram os três principais exércitos europeus – o espanhol, o francês e o inglês – e se libertaram. E estabeleceram, com isso, o que poderíamos chamar de uma primeira definição ou conceituação sobre os direitos humanos em sua forma moderna; desenvolveram uma espécie de refúgio para os africanos, incluindo os da diáspora, etc. Isso é Pan-africanismo: eles não usavam o termo, mas claramente tinham essa concepção, pela forma que formularam sua definição de direitos e cidadania. Em outras palavras: tudo isso emergiu das circunstâncias em que viviam. Um outro exemplo, da Inglaterra: os que haviam sido escravizados no século 18 formando uma organização chamada Sons of Africa (Filhos da África, em tradução literal), que militava pelo direito de todos os africanos. Então essa perspectiva, dos africanos se unindo para lidar com seus problemas comuns, é o nascimento do Pan-africanismo; poderíamos voltar às fraternidades que existiam entre os escravizados no mundo português, em Portugal, na África Portuguesa, no Brasil, e no mundo hispânico poderíamos voltar até o século 15.

Todos estes são aspectos do Pan-africanismo. Nós continuamente fazemos essa diferenciação entre os africanos que vivem no continente e os que vivem na diáspora; mas muitos deles eram as mesmas pessoas. Em um momento você está na África e, no momento seguinte, está no Haiti: o que você é? Você ainda é um africano, mas faz parte da diáspora. Ou mesmo os estudantes que eu estudei na Inglaterra: eles são africanos, vêm para a Inglaterra; o que são eles? Parte da diáspora, e na semana seguinte voltam para a Nigéria. Então há uma fluidez nestes conceitos de africano da diáspora e do continente. E claro, havia pessoas que foram escravizadas, levadas ao Brasil, por exemplo, e depois retornaram para a África Ocidental; e depois voltaram para o Brasil. Essas interações são contínuas, e vemos as consequências disso. Quando comemos acarajé ou outras coisas, vemos ali esse movimento de pessoas, de ideias, costumes, linguagens, etc.

Então essa criação da diáspora, por meio da escravidão e do colonialismo, é o que levou ao desenvolvimento do Pan-Africanismo. Porque as pessoas, especialmente a partir do século 19, conseguiam se movimentar e se comunicar com mais facilidade. E assim percebem que enfrentam problemas comuns, problemas muito similares – não exatamente os mesmos, mas similares. Podem estar no Brasil, na Jamaica, Inglaterra, Nigéria, França, etc., mas enfrentam problemas similares. Todos enfrentam o problema do racismo anti-africano; muitos enfrentam os problemas relacionados ao domínio colonial e ao imperialismo. Sentem que são povos oprimidos, e se unem: “falemos com uma só voz, nos organizemos, procuremos uma forma de lidar com esses problemas”. É assim que o Pan-africanismo começa; dizemos que ele se inicia na diáspora porque podemos apontar ao fato de que essa ou aquela coisa ocorreram em Londres. Mas a pessoa que iniciou isso em Londres, Alice Kinloch, veio da África, da África do Sul. Foi para a Inglaterra, se encontrou com pessoas de outros lugares, etc.

Assim começou o movimento, com essas pessoas reconhecendo que tratam-se de problemas interconectados: “se nos organizarmos coletivamente, isso é bom para nós; se libertarmos partes do continente, isso é bom para nós; se tivermos progresso nos Estados Unidos, é um progresso para todos nós; se tivermos um avanço no Brasil, é um avanço para todos nós. E se somos escravizados em tal lugar, isso é um problema para todos nós”. Ou seja, reconhecem que os problemas estão interconectados, e se organizam sob essa premissa. O movimento se desenvolveu essencialmente assim. Se olharmos ao Congresso Pan-Africano em 1945, temos participantes do Caribe, dos EUA, da Inglaterra, de vários lugares diferentes, mas com uma visão comum sobre o futuro da África, o futuro do Caribe, e assim por diante.

É claro que, em cada período, o tipo de unidade que se tenta construir e o tipo de problemas que as pessoas enfrentam são diferentes; não são exatamente os mesmos porque a situação em 1945 não é a mesma de 1900. Se tratamos de 2023, o problema é diferente. Temos certas similaridades, e poderíamos dizer que temos formas modernas de Pan-africanismo que não necessariamente reconhecemos: o Black Lives Matter, por exemplo; é uma forma de Pan-africanismo? Provavelmente sim. O movimento pela devolução de objetos roubados da África durante o colonialismo; é uma forma de Pan-africanismo? Provavelmente sim. O mesmo quanto ao combate ao racismo anti-africano; a questão do ensino da história, etc. Temos as mesmas lutas ocorrendo no Brasil, nos EUA, na Inglaterra, em Cuba: em todo lugar que você vá há as mesmas questões. A propósito, acabei de voltar de Cuba, de uma conferência sobre racismo: por conta do bloqueio, dos vários problemas, como o racismo se manifesta? Entre várias coisas, o ensino da História, como os afro-cubanos são retratados, como a África é retratada. Então há problemas comuns, e ocasionalmente as pessoas se organizam internacional e globalmente para enfrentá-los, e em outros momentos lidam com as questões específicas do Brasil, de Cuba, da Inglaterra. Então não há necessariamente uma contradição entre as pessoas se unindo globalmente como africanos e lidando com os problemas dentro de um país. Ou ainda lidando com esses problemas ao lado daqueles que não são africanos, mas que estão preocupados com questões como o racismo.

Claro, isso leva a desafios. Por exemplo, há a União Africana, na África. Essa organização, compreendendo essa história, diz que a diáspora é a sexta região da União Africana. Ótimo. Mas o que isso significa na prática? Há milhões e milhões de pessoas na diáspora, como serão representadas na União Africana? Ninguém de fato sabe; porque ninguém de fato é representado ali. Mas estariam todas as pessoas da África representadas na União Africana? Eu não diria que estão. Porque é uma organização imperfeita, liderada por governos, com todos os problemas quanto à forma como a África é governada, etc. Então sim, há dificuldades. Mesmo a união da África como um continente, poderíamos dizer que é problemática, que há todos os problemas em relação à divisão do Norte e outras partes do continente. Então sim, há dificuldades; mas se o continente africano fosse unido, digamos que fosse independente e libertado. Isso seria importante para as pessoas no Brasil, na Jamaica ou na Inglaterra? Sem dúvidas. Seria extremamente importante. E as pessoas têm interesse nisso? Claro. Então as pessoas reconhecem essa conexão. Se vamos para o Caribe, ou em países em outras regiões, vemos que há conexões com a África, que os governos têm relações, eles reconhecem interesses comuns e uma história comum. Então essa é a natureza do movimento. Quais são os problemas particulares que as pessoas estão tentando lidar em um período específico? Se olharmos os últimos 100 ou 150 anos, vemos que esses problemas mudaram, que não são exatamente os mesmos, mas ainda assim há similaridades entre as questões que as pessoas enfrentam. E portanto as pessoas se unem, por meio de organizações políticas ou às vezes organizações culturais e manifestações culturais. E tudo isso é parte do Pan-africanismo.

No livro eu falo sobre alguns dos festivais culturais que ocorreram nos anos 1960 e 1970. Hoje temos coisas assim. Por exemplo, na América Latina, toda a concepção de afrodescendência é, poderíamos dizer, uma manifestação do Pan-africanismo. Pessoas no Brasil, no México, no Panamá, seja onde for, dizendo que são afrodescendentes, que têm tais problemas em particular, que tem tais coisas em comum, e organizando conferências, manifestações culturais, etc. Todas essas coisas são aspectos do Pan-africanismo, e são feitas pelas pessoas para lidar com os problemas particulares que enfrentam.

Então acho que não seja nem menos nem mais do que isso. Claro que, em determinados períodos – e neste período em que vivemos – essa concepção Pan-africana se torna particularmente importante. No período do movimento anticolonial, por exemplo, também foi muito importante. Ou em períodos em que houve organização para apoiar a libertação da África do Sul; ou quando a Itália fascista invadiu a Etiópia, e houve grandes manifestações, as pessoas se organizando em todo o mundo sob um mesmo espírito contra essa invasão. Todos esses episódios são elementos dessa luta Pan-africana e dessa concepção Pan-africana.

Revista Opera: Ainda no contexto dessa pergunta anterior, uma das coisas que me chamou atenção quando estava lendo seu livro é como havia uma grande rede de contatos e de conexões, mesmo no século 19, entre as diversas partes da diáspora e do continente. Diversos jornais, linhas de transporte marítimo, enfim, uma série de iniciativas para estabelecer esses contatos. E claro, num contexto em que levar adiante essas iniciativas era muito difícil. Hoje temos algumas facilidades nesse sentido; temos a internet, o avanço das tecnologias de informação, e vivemos um contexto de ascensão do movimento anti-racista em todo o mundo. Qual é sua visão hoje sobre esses contatos entre a diáspora e o continente?

Hakim Adi: Eu acho que essas conexões ainda se mantêm. Muitas vezes de forma indireta. E muitas vezes são mais evidentes dentro da diáspora. Porque se você for para Portugal, para Inglaterra, para a França, etc., você encontra uma espécie de mundo Pan-africano em miniatura, num microcosmo; as pessoas ali podem estar na França, por exemplo, mas vão para o Caribe, vêm da África, estão em contato. Mas eu acho que, dentro da África, também vamos encontrar pessoas da diáspora voltando; voltando para Gana, Gâmbia, Etiópia, Egito, e assim por diante. E estão mantendo conexões com as pessoas lá.

Creio que essas conexões ainda existem, de maneiras diferentes, claro, e também em níveis distintos. Porque essas interações, é claro, dependem das oportunidades, do nível de renda, da capacidade de viajar, coisas que nem todos têm. Sim, podem se conectar por meio da internet, de várias formas, mas acho que as pessoas estão muito interessadas, não só as pessoas da diáspora interessadas na África, e vice-versa, mas, como você disse, coisas como os brasileiros interessados no que está ocorrendo na Colômbia, e os colombianos interessados no que ocorre em Cuba, e assim por diante. E claro, em Cuba, os afrocubanos estão sempre muito interessados pelo que está ocorrendo na África. Então acho que essas conexões se mantêm; falamos por exemplo do Black Lives Matter. A questão das reparações, por exemplo, é uma outra questão que liga as pessoas, especialmente no Caribe, nos Estados Unidos, na África, na Europa.

Todas essas conexões existem, obviamente de uma forma diferente daquelas que existiam no século 19, quando pouquíssimas pessoas eram capazes de viajar, em que os trabalhadores navais eram as conexões. Hoje temos a internet, redes sociais, etc. E pode ser que essas conexões sejam mais fáceis, muitas vezes de fato são, mas as conexões têm de ser feitas fisicamente.

Revista Opera: Com essa emergência das lutas anti-racistas que tivemos nos últimos anos, nos países centrais houve também o aparecimento de um certo discurso antirracista e mesmo uma certo discurso anticolonial, que passou a ser adotado pelas lideranças destes Estados – e também no marketing, na publicidade, no entretenimento, etc. A adoção desses discursos pelas lideranças ocidentais mudou de alguma forma a relação destes Estados com os países africanos, ou mesmo a relação entre esses Estados e os africanos que vivem em seu país?

Hakim Adi: Não. [risos]. 

Revista Opera: Claro [risos]. Mas como você vê isso no sistema de relações internacionais atual?

Hakim Adi: O fato de que esteja havendo uma mudança é por conta das lutas que os povos estão levando adiante. O Black Lives Matter é um bom exemplo, não sei dos detalhes do Brasil, mas aqui na Inglaterra todos apareceram para fazer uma declaração. Todos. A Igreja, a monarquia, o governo, as editoras, todo mundo fez uma declaração. Mas isso é insignificante. Quer dizer, não é completamente insignificante; mas isso não deve ser levado a sério. Esse comprometimento deve ser demonstrado. As palavras saem barato, e esse discurso deve ser demonstrado. E isso só acontecerá por meio do povo avançando suas lutas, pressionando, e responsabilizando essas instituições. Por que, no geral, essas instituições não se responsabilizam, assim como os governos no geral não se responsabilizam. Essa mudança de discurso veio porque houve um movimento de massas. A Inglaterra é um bom exemplo, porque tivemos aqui um movimento enorme, e muito rico; em todo o país, em pequenas cidades, em vilarejos, as pessoas foram para as ruas contra o racismo. E isso nos diz, ou melhor, nos lembra, de algo importante: que a maioria das pessoas se opõem completamente à violência estatal e ao racismo estatal. O problema não é a maioria das pessoas, é o Estado. Então o Estado, as instituições, vão vir e dizer “sim, claro, nós somos contra isso e contra aquilo”. Mas é insignificante. Porque tudo continua igual, o sistema não muda, não se permite que as pessoas se empoderem e se tornem responsáveis pelas decisões. Então tudo fica igual.

E podemos ver, pela forma que as grandes potências estão lutando pela África no momento – os EUA, a China, a União Europeia, mesmo o Brasil, pelo seu envolvimento no BRICS – como isso é problemático. Obama é um bom exemplo. Eu estava nos EUA pouco antes dele ser eleito, estava participando de uma conferência e me perguntaram que mudança a eleição dele traria, e eu basicamente disse: “nenhuma”. Tive sorte de sair dessa reunião vivo [risos]. As pessoas ficaram possessas; “como você pode dizer isso?”. Respondi que, se o sistema não mudaria, por que manteríamos essa expectativa de mudança? Claro que é histórico, um presidente negro, etc., sim. Mas eu lembrei que na Inglaterra tivemos uma primeira-ministra mulher, e o fato dela ser uma mulher não significou que ela tenha feito algo pela maioria do povo, ou mesmo para a maioria das mulheres. Tivemos esse presidente, e ele invade a Líbia. Entre outras coisas; deixando de lado as outras coisas. Então não se trata de palavras, de mudanças cosméticas. O sistema está entrando em crises com muita frequência, e os poderes estão com pouco espaço para manobra, por isso estão procurando novas formas de persuadir as pessoas de que tudo se resolverá dentro das atuais condições de vida. Então temos esse ou aquele tipo de presidente ou primeiro-ministro, estas ou aquelas declarações, mas todos nós sabemos a realidade: nada mudou. O sistema se mantém o mesmo. A exploração econômica prossegue, a violência estatal prossegue, as forças policiais prosseguem. E até que esses sistemas de exploração e opressão sejam desmantelados, até que as pessoas tomem as decisões, tenham o poder para tomar as decisões, todos esses problemas continuarão a existir.

Revista Opera: Você menciona no seu livro a importância que três Estados tiveram no desenvolvimento do Pan-africanismo, do século 19 adiante: Haiti, Etiópia e Libéria, os “três Estados soberanos”. No Brasil estamos familiarizados com o impacto da Revolução Haitiana, e como a classe dominante daqui ficou completamente enlouquecida, uma parte dela passando a defender um fim gradual da escravidão, outra defendendo uma maior repressão aos escravizados. Mas é interessante, como você demonstra no livro, o impacto que a Revolução Haitiana teve em lugares como os EUA, a Inglaterra e outros países europeus. Queria que você falasse sobre a importância destes três Estados, e também sobre como foram demolidos – não estou perfeitamente familiarizado com a situação atual da Etiópia, mas certamente a Libéria e o Haiti foram demolidos, neste último caso inclusive com a ajuda do Brasil.

Hakim Adi: Sim. No livro menciono esses três Estados, que foram importantes particularmente no século 19, e também no começo do século 20. Nós os chamamos de “soberanos”, mas precisamos dizer o que isso significa, porque em cada caso a soberania era tanto significativa quanto limitada. De qualquer forma, o que eles demonstravam para o mundo, e particularmente para os africanos e os descendentes de africanos, era a capacidade dos africanos se governarem. Temos de lembrar que isso se passava em um tempo em que as pessoas eram escravizadas, em que havia ideias muito fortes sobre a inferioridade africana. Então esses Estados demonstravam a independência africana, a soberania africana, e a capacidade africana de autogoverno. Foram importantes por isso.

Mas, é claro, eles tinham limitações. O Haiti, onde o povo fez a revolução, foi cada vez mais, ao longo do século 19, colocado à mercê dos governos dos EUA e França. Tanto pelo endividamento financeiro imposto pela França quanto pela intervenção e presença militar dos EUA, que seguiu ao longo do século 20. Então, embora o Haiti tenha sido nominalmente independente, não era de fato independente, em função dessa pressão econômica e financeira.

A Libéria era essencialmente uma colônia dos EUA, poderíamos dizer isso. A Libéria sempre foi apresentada como um dos dois países africanos que nunca foram colonizados, mas na realidade sempre foi uma colônia dos Estados Unidos. Foi colonizada particularmente por meio da Associação Americana de Colonização, que cumpria a tarefa de se livrar do africanos libertos dos Estados Unidos, enviando-os para outro lugar. E depois esteve sob a dominação da companhia de borracha Firestone, por boa parte do final do século 19 e início do 20. Então sim, poderíamos dizer que era um governo formado por pessoas negras, mas a independência e soberania eram limitadas.

A Etiópia é e foi importante porque era um Estado africano, um império africano, que preservou a sua independência ao longo do período colonial, por meio da força militar. Eles derrotaram as forças invasoras italianas na famosa Batalha de Adwa, em 1896, o que enviou uma mensagem ao mundo de que aqueles que supostamente eram inferiores podiam derrotar um exército europeu e preservar sua independência. E quando a Itália fascista tentou invadir a Etiópia de novo, em 1935, as pessoas de descendência africana ao redor de todo o mundo se uniram para apoiar a Etiópia – e outros países e povos, é claro; foi um momento em que as pessoas se opuseram contra as invasões fascistas.

Então esses três países foram significantes, e ainda são – a Libéria hoje menos. O Haiti ainda é importante para as pessoas ao redor do mundo, para os caribenhos, para os afrodescendentes. É um país que tem uma posição especial na União Africana, como estado-observador, e acho que, por conta da Revolução Haitiana e pela forma como tem sido tratado pelos EUA, nos anos recentes, as pessoas seguem tendo muita simpatia pelo Haiti. E seguem tendo essa simpatia no momento atual, no qual os Estados Unidos estão tentando formar uma aliança para invadir mais uma vez o país sob o pretexto de “restaurar a ordem” e coisas do tipo.

 Leia também – Haiti: “o Brasil aceitou fazer parte do projeto de controle internacional de um país militarizado” 

A Etiópia é complicada… por conta da forma como a África foi complicada. É um país que ainda está emergindo de um passado difícil, que tem muitas dificuldades internas no momento. Mas ainda é um país com uma história grandiosa, e as pessoas de toda a África e a diáspora o visitam, por conta do que representa – e também por ser lá a sede da União Africana. É um dos meus países favoritos, devo dizer – um lugar muito interessante. Então o Haiti e a Etiópia seguem tendo importância no que poderíamos chamar de panteão dos estados Pan-africanos. Mas suas histórias são conturbadas. A Etiópia no século 20 foi um país muito associado à fome e dificuldades econômicas – problemas dos quais está emergindo, embora ainda não tenha conseguido emergir completamente.

Revista Opera: No livro você também trata da importância e dos impactos da União Soviética para o Pan-africanismo no século 20, e especialmente a partir dos anos 1928. E fala de como a União Soviética foi importante para o povo negro nos Estados Unidos, especialmente nos estados do Sul, e para a luta na África do Sul. Após a queda da União Soviética, e mesmo ao longo da Guerra Fria, essa memória sobre a relação da União Soviética e da Internacional Comunista (IC) com as lutas negras ao redor do mundo foi apagada. Gostaria que falasse um pouco sobre isso: qual foi a contribuição da Revolução Russa, do Estado soviético e da IC para essas lutas? E também queria que você falasse sobre as teses do “Cinturão Negro” e da “nação dentro da nação”, porque quando lemos Malcolm X, por exemplo, e vemos ele falando sobre autodeterminação, pode ser impressionante – “será que isso faz sentido?” – mas os comunistas também defendiam isso.

Hakim Adi: Sim, no “Pan-africanismo: uma história” eu dedico um capítulo a esse tema. E também escrevi outro livro, “Pan-africanismo e comunismo”, que já está traduzido para o português mas ainda não foi publicado – espero que em breve esteja disponível no Brasil –, e no qual trato disso detalhadamente.

Penso que o importante sobre a Revolução Russa foi o fato de ter mostrado, pela primeira vez, que os trabalhadores poderiam governar. Poderiam governar, se empoderar, e liderar o Estado. E, claro, isso foi uma grande quebra com o sistema imperialista de Estados, o sistema centrado no capital. Para os povos que eram explorados e oprimidos ao redor do mundo, foi algo maravilhoso de se ver: não era só uma teoria, ou um sonho, mas algo que estava efetivamente acontecendo. “Isso aconteceu na Rússia, é uma revolução, são os trabalhadores, os camponeses, que fizeram isso”. Esse sentimento incluiu as pessoas na África e na diáspora. As pessoas olhavam àquilo e viam uma possibilidade: “talvez também possamos alcançar o que foi alcançado na União Soviética”.

Temos de nos lembrar que a Rússia era um Estado imperial, ou imperialista, que não tinha tanto colônias externas, mas tinha colônias internas. O leste do Império Russo, a Ásia Central, etc., estavam essencialmente colonizadas pelos czares, incluindo muitos povos que não eram russos, que não falavam russo, que talvez fossem forçadas a falar russo. Então para os povos nas colônias, a Revolução Russa ofereceu uma visão, um modelo, do que poderia ser alcançado. Quando as pessoas visitavam a URSS, vindas dos Estados Unidos ou mesmo de outros países, elas no geral ficavam impressionadas com o que viam. Particularmente as pessoas de origem africana.

W.E.B DuBois, um famoso ativista e escritor afroamericano, foi para a União Soviética em 1926, e quando voltou disse que “se o que eu vi com meus próprios olhos e ouvi com meus próprios ouvidos é bolchevismo, então eu sou um bolchevique”. Outro escritor afroamericano, Langston Hughes, também foi para a URSS, o famoso cantor afroamericano Paul Robeson também foi, e disse “eu podia respirar livremente pela primeira vez”. Então essa foi a visão dada para as pessoas, e é claro que há muitos aspectos para isso. A forma como a URSS lidou com a chamada “questão nacional”, a opressão de diferentes nações e nacionalidades – parecia que tinham resolvido esse problema. Quando pessoas negras visitavam o país, no geral diziam que se algo de ruim ocorresse com eles, se faria um exemplo do detrator, ele seria denunciado por qualquer tipo de racismo; coisas do tipo. E também a posição que a União Soviética tomou em geral, mesmo depois, nos anos 1940: após a Segunda Guerra , a União Soviética emergiu como uma espécie de superpoder, e como uma força anticolonial no mundo. E ao mesmo tempo se tinha essa espécie de modelo de mundo sem exploração, sem opressão, no qual os trabalhadores governavam o país; houve a criação da Internacional Comunista, que essencialmente era uma organização de todos os partidos comunistas do mundo. E uma das condições para aderir à Internacional Comunista era que, se o partido estivesse em um país imperialista, como a Inglaterra, França ou Portugal, o partido tinha que concordar em se posicionar contra o imperialismo de seu próprio país e trabalhar para derrubá-lo. Isso foi muito importante para os povos no mundo colonial. Acho que disse em algum lugar que a Internacional Comunista era à época a única organização internacional que era antirracista; sua plataforma era antirracista, antiimperialista, anticolonial. Então é claro que os povos na África, no Caribe, na América do Sul estariam interessados nisso.

A análise de Lênin sobre o imperialismo também foi importante, do ponto de vista de demonstrar que as lutas revolucionárias muito provavelmente explodiriam não nos países altamente desenvolvidos e industriais, como a Inglaterra, Alemanha ou França, mas sim em países atrasados, na Ásia, África ou América Latina. Então as lutas destes povos eram tão importantes quanto a luta dos trabalhadores alemães ou ingleses. Isso foi muito importante, porque eliminou a ideia de hierarquia das lutas; a luta de todos é importante e conforma uma parte desta quebra das correntes do imperialismo. Então isso também é outro aspecto ao qual os povos olhavam. E claro, Lênin tinha coisas interessantes a dizer sobre os afroamericanos e a ideia de que fossem talvez um tipo especial de nação. E essa análise, que talvez não tenha sido muito bem desenvolvida por Lênin durante os últimos anos da sua vida, foi tomada pela Internacional Comunista.

Tendemos a pensar, quando nos confrontamos com a ideia de que a Internacional Comunista era uma espécie de monolito – muitos dos que criticam o comunismo dizem “Lênin disse X, Stalin disse X, e então o Partido Comunista Brasileiro fez X”… Bem, isso nunca ocorreu [risos].

De qualquer forma, dentro da Internacional Comunista havia uma visão coletiva de que a opressão sobre os africanos – o que muitas vezes era chamado de “Questão Negra” – era uma questão interrelacionada. Então mesmo que as pessoas compreendessem que a situação nos EUA não era a mesma do Brasil, de Cuba, da Nigéria ou da Jamaica, havia o reconhecimento de que essas situações estavam todas interconectadas. E o que é importante é que a Internacional Comunista pretendia dar uma solução para essa questão: “como vamos resolver isso?”. O fato da Internacional Comunista ter olhado a essas lutas na África e na diáspora, e aos problemas enfrentados pelos africanos, como questões interrelacionadas, poderíamos dizer que isso é uma perspectiva Pan-africana. O que a Internacional Comunista trouxe para essa perspectiva Pan-africana? O principal é que trouxe a ideia de que a libertação dos povos da África e da diáspora seria alcançada por meio da luta e organização, particularmente entre os trabalhadores. E pela luta colaborativa e em solidariedade aos trabalhadores de todos os países. Essa foi uma perspectiva muito importante; não se trata só de Pan-africanismo ou dos africanos lutando, mas dos africanos lutando ao lado de todo o mundo contra um inimigo comum. Isso foi importante também. E nos anos 1920 e 1930, a Internacional Comunista estava ansiosa por organizar uma espécie de encontro Pan-africano, que não ocorreu até 1930, quando houve uma conferência em Hamburgo. Mas, mesmo antes disso, a IC já havia estabelecido uma frente sindical, os Comitês de Trabalhadores Negros, que estava particularmente focada no mundo anglófono e francófono – se lidava com a América Latina em outros fóruns. E essa organização existia porque havia a visão de que os partidos comunistas nos países imperialistas – Inglaterra, França, Bélgica, EUA, etc., – não estavam fazendo o suficiente quanto à questão negra. Neste período havia poucos partidos comunistas na África, o mais significante era o da África do Sul, e nenhum partido no Caribe. Então esses Comitês estavam tentando encontrar uma forma de trabalhar com os partidos comunistas, com as pessoas africanas ou de origem africana, em diversos países, com o fim de levar as coisas adiante. Os dois principais partidos envolvidos nesse trabalho foram o Partido Comunista dos EUA (CPUSA) e o Partido Comunista Sul-Africano (SACP), por conta do tamanho relativo dos partidos. E o papel chave da IC era tentar ajudar estes dois partidos a seguirem um caminho revolucionário, um caminho que trouxesse alguns resultados. Claro que, nos Estados Unidos, havia problemas; inicialmente havia dois partidos, havia todo tipo de facção e luta interna, e o papel principal da IC era tentar resolver estes problemas e ajudar os comunistas afroamericanos a lidar com o problema da organização, por exemplo, no Sul, onde a violência racista era mais prevalente; e para que tomassem esse problema como uma questão séria.

Tanto na África do Sul quanto nos EUA, havia uma certa ideia de que não era necessário fazer nada em particular pelos africanos ou pelas pessoas de origem africana; “só temos que nos organizar pela revolução e pelo socialismo, e quando isso chegar, todos os problemas serão resolvidos”. A IC não adotou essa visão. Para eles, parte da organização era efetivamente organizar [risos]. Se você não organiza as pessoas para resolver os problemas enfrentados hoje, como vai organizá-las para a revolução amanhã? Então era a posição de que deveriam levar esses problemas a sério e, nessa medida, as pessoas se organizariam. Isso foi essencialmente o que a IC fez. E, neste trabalho, nos EUA, por exemplo, a IC e seus apoiadores nos EUA desenvolveram a visão, baseada na análise de Lênin, de que os afroamericanos não eram só trabalhadores negros que, por acaso, enfrentavam um pouco de racismo, mas sim que a razão pela qual estavam naquela situação era que a revolução democrática não havia resolvido esses problemas; o racismo, a dependência econômica, esquemas de “parceria rural”, a violência terrorista, etc. E que, assim, os afroamericanos constituíam uma espécie de nação, que tinha sua própria cultura, quase seu próprio território – porque estavam particularmente concentrados nos antigos estados escravistas, no Sul. E, por conta disso, haveria a necessidade de uma luta para que essa revolução democrática fosse concluída, e isso incluía o reconhecimento de que este tipo especial de nação deveria ter certos direitos; e um desses direitos era o de autodeterminação.

Normalmente, a autodeterminação se relaciona com uma nação, isto é, uma nação independente. E claro que nos EUA pode parecer um pouco estranho falar isso de pessoas que, afinal, são cidadãos americanos – mas depende de como se olha ao problema. A autodeterminação significa de fato os povos determinando seus próprios futuros. E se você está oprimido a um tal nível em que não pode andar pela rua sem alguém mandar você sair, ou em que não pode usar um bebedouro, ou votar, ou não pode isso nem aquilo… Nesse caso se está num tal nível de opressão em que fica difícil acabar com isso sem se empoderar e se tornar um tomador de decisões. Então essa é a posição que o CPUSA e a IC adotaram, e chamavam essa ideia de “Tese do Cinturão Negro”; Cinturão Negro sendo o conjunto de Estados onde havia uma maioria de afroamericanos, e portanto esses Estados teriam o direito de determinar seus próprios futuros, incluindo a possibilidade de se separarem dos EUA. Pode soar como uma ideia estranha, mas, para mim, o que importa nisso é que demonstra a importância dessa questão; demonstra que se olhava para ela como algo a se resolver. E se olharmos à história do Partido Comunista dos EUA, vemos que começaram a fazer isso, passaram a ter um papel significativo nesta luta. E, como você disse, é interessante que essa ideia não tenha sido algo que só os comunistas tenham defendido; porque Malcolm X falava disso, os Panteras Negras falavam disso, todas as organizações falavam disso. Então não é uma ideia tão estranha; se é uma ideia útil hoje, é outra questão. Essa foi uma das formas pelas quais a Internacional Comunista interviu nos EUA.

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Na África do Sul, a IC também interviu dentro do Partido Comunista Sul-Africano, que a princípio era um partido majoritariamente formado por pessoas de origem europeia. Então a IC interviu, dizendo: “isso não parece estar certo, num país africano, mesmo num país como a África do Sul, o Partido Comunista deve ter como bases a maioria da população, deveria ter lideranças advindas da maioria da população”, etc. E a IC também interviu no sentido de formular que a luta na África do Sul não era simplesmente a luta pelo socialismo, mas também uma luta com características anticoloniais ou democráticas. Mais adiante houve a demanda pela liderança da maioria, e a organização entre todos os grupos étnicos. E na África do Sul vemos que muitas das principais lideranças – Nelson Mandela, Walter Sisulu, etc – eram comunistas, apesar das pessoas não necessariamente saberem que eram comunistas quando eles estavam vivos.

Então acho que a contribuição do movimento comunista foi significativa. Mesmo aqueles que abandonaram o movimento comunista, como George Padmore, seguiram no trabalho de organização de uma forma muito influenciada pelo seu período como comunistas. É interessante que George Padmore escreveu um livro sobre a experiência soviética, e sobre como ela tinha conseguido resolver muitos dos problemas relacionados à opressão nacional, em comparação com o império britânico. Então eu creio que a Internacional Comunista, naquele período, teve muita influência. E se olharmos a muitas das principais figuras daquele período, incluindo figuras no Brasil, veremos que eram associadas ao Partido Comunista, de uma forma ou outra. Os comunistas tinham essa reputação; em Cuba o Partido Comunista era visto como o partido dos afrocubanos, mesmo no Brasil havia essa tradição, segundo a qual os comunistas eram os que lutavam pelos afrobrasileiros. Então acho que esse é o legado desse período.

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Revista Opera: Eu ainda não pude ler o “Pan-africanismo e Comunismo”, mas estou curioso: e quanto à Revolução Chinesa e a Revolução Cubana? Porque tivemos por exemplo o contato de Robert F. Williams com Mao Tsé-Tung na China; e no caso cubano tivemos o Che indo para o Congo, Cuba colaborando com Angola com a Operação Carlota, etc. O que você poderia dizer sobre esses episódios?

Hakim Adi: Robert Williams é uma figura muito interessante. Esteve tanto em Cuba quanto na China. O que, penso, nos diz muito: que ele considerasse que ali poderia encontrar apoio. Entre outros lugares, estes eram os países que, naquele período, provavelmente seriam simpáticos à luta e a apoiariam.

A Revolução Cubana foi significativa, não só para os afrocubanos e para o enfrentamento dos problemas associados ao racismo em Cuba, mas, como você disse, o governo e o Estado cubano deram contribuições para a libertação da África, particularmente para a África do Sul e a luta em Angola – e também na Namíbia. E Fidel sempre falou sobre essa conexão entre a África e Cuba, e o presente que a África tinha dado a Cuba – dizendo que portanto era responsabilidade de Cuba também dar algo de volta à África. Também penso que essas duas revoluções foram importantes para a luta global dos povos, foram inspirações naquele tempo; obviamente foram inspiradoras para os povos da África e da diáspora. Havia muitas organizações Pan-africanas formadas naquele período e que foram influenciadas pela Revolução Cubana e Chinesa; os Panteras nos EUA, organizações similares na Inglaterra e em outros lugares. São revoluções importantes. 

Também diria que a China de hoje não é a China dos 1950 e 1960, que as pessoas têm de sempre fazer suas próprias análises, porque se só olharmos ao que ocorreu aos anos 1950, como se nada houvesse mudado, provavelmente erraremos. Mas naquele período, sim, sem dúvidas, tiveram um papel importante.

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E devemos olhar para Cuba reconhecendo o papel que cumpriu, não só na África, mas no Caribe, na América Latina e, de fato, em todo o mundo. Se pensarmos sobre o papel que Cuba cumpre no que tange aos cuidados de saúde, provendo médicos para os países, etc. Então é importante hoje, quando Cuba enfrenta tempos muito difíceis por conta do bloqueio imposto pelos EUA, que todos nós encontremos formas de apoiar Cuba e façamos o que possamos para dar um fim ao bloqueio, possibilitando que as pessoas vivam sob o sistema político de sua escolha.

Revista Opera: Somos muito interessados no tema da guerra. E é interessante, no seu livro, como fica claro que as grandes guerras, especialmente as guerras mundiais, acabaram cumprindo um papel para o avanço do movimento Pan-africano. No fim da Primeira Guerra, com a participação massiva de pessoas negras nos campos de batalha, há um impulso na luta por direitos, assim como uma disputa, do movimento Pan-africano, sobre o futuro das ex-colônias alemãs. Também no fim da Segunda Guerra isso se repete, agora com a formação dos estados africanos. Também poderíamos falar dos impactos da Guerra do Vietnã para o povo negro nos EUA, e os movimentos de libertação nacional na África durante a Guerra Fria. Hoje também estamos experimentando um momento de impulso na luta contra o racismo, mas também temos um cenário de uma guerra surgindo no horizonte, com as tensões crescendo entre a China e os EUA, e a invasão da Ucrânia pela Rússia. E, claro, o papel que a China cumpre na África –  também poderíamos falar sobre isso. Qual é a sua perspectiva sobre o futuro do movimento Pan-africano hoje, num mundo que, mais uma vez, parece caminhar rumo à guerra?

Hakim Adi: Sim, vivemos num mundo perigoso. Eu creio que se voltarmos à Segunda Guerra, vemos que muito da perspectiva do movimento Pan-africano à época era se opor à guerra, a perspectiva de que a guerra não é do interesse do povo em geral. E no final dos anos 1930 – mencionei antes a invasão da Etiópia –, mas em geral havia um movimento com o fim de impedir que a guerra ocorresse. E acho que a questão é a mesma hoje, e talvez até mais: uma guerra entre as grandes potências – e as condições estão colocadas, seja com a questão da Ucrânia; seja uma disputa mais geral entre as grandes potências na África, no Pacífico; seja a cerco à Rússia como parte do cerco à China – tudo isso é muito perigoso, e é importante que todo o mundo esteja ciente disso. Há muitos perigosos – como o perigo do holocausto nuclear, é claro, esse tipo de perigo – então é importante impedir a guerra.

Ao mesmo tempo, a História demonstra que muitas vezes, ao final das guerras mundiais, o sistema imperialista é enfraquecido em muitos lugares. Após a Segunda Guerra, os grandes poderes coloniais definitivamente foram enfraquecidos, e o equilíbrio de poder e força no mundo foi alterado. E as pessoas tinham derrotado o fascismo, é claro, e isso criou condições para grandes mudanças, para a luta anticolonial e outras lutas. Então alguém poderia dizer que se houver uma grande crise militar hoje, é possível que os povos se aproveitem disso – mas, por outro lado, também poderíamos ter um cenário em que nenhum de nós estaríamos vivos. Por isso creio que a questão é estar atento a isso, preocupado com isso. Um exemplo que dou: muitas pessoas dizem que com a Nova Guerra Fria, os países africanos podem se beneficiar. E pode ser que haja circunstâncias em que isso ocorra, mas em geral a disputa não é boa para a África ou para o mundo. As grandes potências criam todo tipo de problema, a Líbia é um bom exemplo disso. As grandes potências intervêm militarmente ou de outra forma, e criam problemas ainda piores, problemas que eles não têm sequer capacidade de resolver. Vemos isso ao longo do Sahel, por exemplo: o terrorismo, que foi um problema trazido pelas próprias grandes potências, e todos sofrem em função desse problema. E depois não é possível colocar o gênio de volta na lâmpada.

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Então eu creio que impedir que as grandes potências ajam da forma que agem, é fundamental, algo no qual temos de nos focar seja lá onde estivermos. Como disse antes, os grandes poderes e os grandes blocos são todos players na África – incluindo o BRICS, do qual faz parte o Brasil. A Turquia está se tornando um grande player, os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita também – todos estão envolvidos nessa disputa, e devemos nos focar em impedir este conflito, tanto internacionalmente quanto em cada país. Então é assim que eu olharia à questão da guerra: ela deve ser impedida.

Outro aspecto que há nisso é o impacto ambiental que a guerra, as indústrias de guerra, os armamentos, etc., têm. É outro problema. E há ainda a discussão, que está aqui nos nossos jornais, sobre a Inteligência Artificial [risos]. A ideia de que a Inteligência Artificial possa ser aplicada com fins militares, dominar o mundo e acabar com todos nós. E muitas pessoas dizem que se trata somente de uma distração de todos os problemas que temos. Mas, de qualquer forma, o que demonstra é que as pessoas precisam tomar o poder em suas mãos para parar estas coisas.

Uma vez eu estava em Cuba, e Fidel fez um discurso, que você deve conhecer, no qual dizia: “o mundo é como um navio, e neste navio há um punhado de pessoas que vivem em cabines de primeira classe; têm todas as comodidades modernas, os melhores alimentos e tudo o mais. Mas a maioria do povo neste navio está no porão, vivendo em condições iguais aos tempos da escravidão.” Então ele disse que, a não ser que aqueles que estivessem vivendo no porão se insurgissem e tomassem o controle do navio, este navio iria acabar atingindo um iceberg e afundar. É uma metáfora boa sobre a forma como o mundo é hoje [risos]. Está sempre caminhando para o desastre; guerras, desastre ambiental, crises econômicas. Então devemos tomar controle dele e levá-lo para uma direção diferente.

Revista Opera: O Mario [Soares Neto, tradutor de “Pan-africanismo: uma história”] mencionou que você já esteve no Brasil, na Bahia – não sei se  visitou outras partes do país. No livro, o Brasil aparece algumas vezes, mas há um capítulo dedicado ao Brasil e à América Latina; e lá você lembra de que se trata do país com a maior população de descendentes de africanos fora da África, e também de um país que teve uma longa permanência da escravidão. Quais foram suas impressões do Brasil, especialmente no que tange à população negra?

Hakim Adi: Achei um país fascinante. Amei a Bahia, achei muito interessante. Creio que fiquei por dez dias ou algo assim – não foi um tempo muito longo. Mas é muito impressionante. Eu estava interessado em entender mais sobre a história, não só dos afrobrasileiros, mas também das lutas políticas; a história do comunismo no Brasil; e estava interessado nas lutas antirracistas. Conheci algumas pessoas, não fiquei muito tempo, mas o que me impressionou muito foram os aspectos culturais com os quais tive contato: o candomblé; o fato de irmos ao mercado e o nome de tantas coisas serem palavras em iorubá; o acarajé, que foi um dos melhores que eu já comi – eu já comi acarajé na Nigéria, mas o da Bahia foi ainda melhor, talvez ainda mais autêntico [risos]. Essas foram as coisas que me fascinaram, e eu adoraria voltar ao Brasil, para ver e entender mais sobre o país.

Acho sem dúvidas que a luta para se livrarem do presidente anterior foi muito importante. O Brasil é um país muito importante, regional e globalmente, um país com uma história e culturas maravilhosas. É um lugar fascinante. Eu sempre digo que o Brasil é um dos meus países preferidos, ao lado de Cuba e Etiópia. São lugares nos quais, quando se vai, você tem certeza de que sempre aprenderá algo novo e interessante. E particularmente quando se vem de outros lugares… Quando se vai para a América Latina você acaba tendo uma perspectiva diferente do mundo, mesmo que só fique por alguns dias. Uma ideia diferente do mundo e de seus problemas. Então estou muito feliz que meu livro tenha sido traduzido para o português e que gere interesse, e espero que outros livros também sejam traduzidos. 

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