O trabalho, enquanto categoria, tem papel central na fundamentação teórica e prática do marxismo. É a partir do trabalho que “o homem transforma a natureza e a si mesmo” [1]. Engels nos conta que o trabalho é a condição básica e material de toda a vida humana do ser social [2]. Mas, diferentemente do que se convencionou chamar de trabalho – principalmente após a ascensão do capitalismo –, essa categoria, na teoria marxista, se refere ao modo como o homem transforma a natureza para dela obter seus meios de sobrevivência.
Na crítica da economia política, Marx identificou diversas sub-categorias de trabalho, como trabalho produtivo e improdutivo, concreto e abstrato, material e imaterial, alienado, etc. Não cabe aqui analisar essas diversas facetas do trabalho, nem mesmo o caráter do mesmo em diferentes modos de produção da vida material. O que nos importa é dar as bases do trabalho enquanto movimento transformador do ser humano e da natureza, em sua forma elementar.[3]
E se o trabalho é o fio condutor do que entendemos por infraestrutura, é então esse trabalho que, por meio do modo e das relações de produção em que está inserido num dado momento histórico, cria a superestrutura da sociedade. Essa superestrutura tem papel central para entendermos, por exemplo, a cultura de uma sociedade – em especial, e como objeto desse artigo, a música criada pelos trabalhadores.
Marx, ao analisar a superestrutura, nos diz que:
“A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.”[4]
Aqui, Marx torna explícito o fato de que é pela maneira com a qual os seres produzem seus meios de existência que a cultura, as leis, a religião e a ideologia se materializam. Obviamente, isso depende do modo pelo qual essa produção é feita. Os negros escravizados no Novo Mundo vivenciavam relações de produção completamente diferente dos trabalhadores de hoje. E isso influencia diretamente na maneira como produzem sua própria cultura. E se os homens “fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; e sim sob aquelas condições com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”[5], isso se deve pelo fato de que, em certos momentos históricos, as condições postas não permitiam aos homens construir um imaginário além do que a vida material permitia. Isso permeia toda a cultura construída na história colonial, no confronto de culturas e modos de viver. Se na história pré-colombiana, a cultura indígena se dava pela relação material que tinham com outros povos, a partir de 1492, esse cenário mudou completamente. Não que a cultura originária tenha desfalecido, mas ela passou a ser combatida não apenas pelo viés racial trazido pelo europeu, como também pela nova condição de sobrevivência que esses povos passaram a vivenciar.
Portanto, novas maneiras de viver passaram a coexistir com as formas pré-coloniais, numa relação dialética que não só destruiu modos de vida, mas também construiu novas formas de cultura material e imaterial. Tudo que era sólido se desmanchou no ar.
Raymond Williams, sociólogo marxista influente na teoria cultural e na chamada Nova Esquerda, teceu algumas críticas ao que ele enxerga como um modelo “fixo e definido”, quase mecânico, do que seria a relação entre infraestrutura e superestrutura, propondo que, para uma análise cultural, devemos partir do conceito de ser social.[6]
Polêmicas à parte, e partindo das premissas apresentadas, podemos analisar os chamados worksongs, os cantos de trabalho, a partir da maneira como os homens trabalharam ao longo dos anos, e como, numa relação recíproca, música e trabalho se transformaram.
Fé e fuga: os cantos das fazendas de algodão no sul dos Estados Unidos
No ano de 1619, a Virgínia tornou-se o primeiro dos 50 estados norte-americanos a receber africanos contrabandeados de suas terras de origem. Apenas no sul, os escravos compunham 31% da população local, algo em torno de 3,5 milhões de pessoas. A máquina de tecer, produto da Revolução Industrial inglesa, causou enorme impacto no mundo na indústria de tecidos. E, como só se fazia tecido a partir do algodão, a demanda por essa fibra cresceu exponencialmente, transformando o sul dos Estados Unidos numa grande plantation. A transformação do algodão em tecidos que seriam comercializados ao redor do mundo foi responsável por um dos maiores derramamentos de sangue da história da humanidade. O trabalho escravo não apenas causou o genocídio de milhões de africanos, como também impulsionou o desenvolvimento pleno do capitalismo.[7]
Para o comerciante e proprietário de escravos, Charles Colcolk Jones, a introdução da fé cristã entre os escravos poderia ajudar no processo de desumanização desses trabalhadores, tornando-os mais dóceis:
“Creio firmemente na eficácia de uma instrução religiosa sadia, como meio de alcançar nossos objetivos: desviar as paixões humanas; tornar o escravo mais respeitoso dos interesses alheios; mais desejoso de obter o favor dos patrões; mais obediente à autoridade; mais paciente para suportar os preconceitos; e elevar o valor da vida humana”.
O cristianismo, apesar de tentar tornar os escravos menos nocivos para o projeto escravista, não conseguiu, por si só, conter a revolta os negros. Em 1739, na Carolina do Sul, irrompeu a Rebelião de Stono, considerada a maior rebelião de escravos da história do sul americano. Após invadirem uma loja, próxima ao Rio Stono, os escravos roubaram armas e mataram o lojista. Nessa ação, 20 homens brancos foram assassinados pelos escravos. Em seguida, os escravos marcharam até a Flórida Espanhola, vista como um lugar de liberdade. Durante a marcha, gritos e tambores ecoaram sem parar, junto do agito de bandeiras.
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A revolta logo foi contida, com uma série de escravos assassinados ou capturados. A reação dos senhores de escravos foi tão severa que, a partir de então, além de proibirem os escravos de plantarem o próprio alimento e de aprenderem a ler e escrever, os tambores também foram proibidos, pois passaram a ser vistos como uma forma de comunicação entre os revoltosos. Essa proibição dos tambores – abolida somente após a Guerra Civil Americana –, mudaria a música afro-americana para sempre. Mas foi, também, o primeiro ato das músicas de trabalho em solo colonial.
É nesse contexto material – e pela influência do cristianismo, contraposto à cultura musical africana –, que surge o Spiritual. Essa forma musical, num primeiro momento, relatava o sofrimento do trabalho nas plantações de algodão: os escravizados rezavam suas súplicas e tentavam aliviar o dia a dia do trabalho escravo. De certa maneira, o desenvolvimento do Spirituals foi possibilitado pela instrução católica desses escravos, após a quebra da barreira linguística entre senhores e escravos.
Os Spirituals – originados durante o início da escravidão, mas publicados apenas por volta de 1860 –, eram cantados durante o árduo trabalho nos campos de algodão e outras plantações onde os negros passaram horas a fio dando o seu sangue e seu suor. Os cantos continham uma estrutura de pergunta-resposta, onde um dos escravos entoava um certo trecho da canção, ao que os demais respondiam.
A canção Sweet Chariot (Doce carruagem, em tradução literal),, Spiritual datado de meados de 1865, e composto pelo ex-escravo Wallace Willis[8], é um relato sobre como a fé cristã e o sonho de liberdade dos escravos andavam juntos:
“Balance baixo, doce carruagem
Vindo para me levar para casa
Balance baixo, doce carruagem
Vindo para me levar para casa
Eu olhei sobre a Jordânia
E o que eu vi
Vindo para me levar para casa
Um bando de anjos vindo atrás de mim
Vindo para me levar para casa”
Uma outra canção, Sometimes I Feel Like a Motherless Child (Às vezes me sinto como uma criança sem mãe, em tradução literal), é um lamento sobre as condições impostas pela escravidão no sul dos Estados Unidos, e da saudade de casa – a África. A canção foi regravada por diversos artistas e, inclusive, se tornou uma das trilhas sonoras do Movimento pelos Direitos Civis[9] – o que dá dimensão da condição de apatriado que os afro-americanos sentiam na América, algo que Malcolm X e outros nacionalistas negros afirmavam de forma persistente. A menção à “criança sem mãe” na faixa é uma alusão à Mãe África, berço de milhões de americanos arrastados para o Novo Mundo, em troca de um punhado de algodões.
“Longe de casa
Às vezes eu sinto que a liberdade está próxima
Mas é tão longe, é tão longe
Às vezes eu gostaria de poder voar,
Como os pássaros no céu,
Um pouco mais perto de casa
Às vezes eu sinto que estou quase sumindo
Às vezes me sinto como uma criança sem mãe
Longe de casa
Há orações em todos os lugares”
Mas, nem só de lamentação se constituíam os worksongs de afro-americanos escravizados. A transformação da cultura imposta em uma cultura revolucionária se tornou peça importante no imaginário dos negros escravizados. Muitos dos Spirituals criados na época continham, também, elementos de combate concreto à escravidão.
Um ótimo exemplo disso é a canção Wade in the Water (Caminhe pela Água, em tradução literal), publicada pela primeira vez no New Jubilee Songs as Sung by the Fisk Jubilee Singers, em 1901, que trazia instruções de como os escravos poderiam fugir de seus senhores[10]. Muitos estudiosos acreditam que a canção faz parte de um conjunto maior, chamado de Songs of the Underground Railroad. A Underground Railroad (Estrada de Ferro Clandestina, em tradução literal) foi uma rede secreta criada no século XIX, cuja função era ser um rota de fuga de escravos para outros estados, Canadá e México, onde a escravidão era ilegal.
30 mil pessoas teriam utilizado essa rota de fuga, e uma infinidade de canções não apenas davam dicas de como se utilizar dessas rotas, como narravam as façanhas dos fugitivos, como em Follow the Drinkin’ Gourd (Siga a Cabaça, em tradução literal):
“Quando o Sol voltar
E a primeira codorna chamar
Siga a Cabaça,
Pois o velho está esperando para levá-lo à liberdade
Se você seguir a Cabaça
A margem do rio forma uma estrada muito boa.
As árvores mortas mostrarão o caminho.
Pé esquerdo, pé de pau, seguindo em frente,
Segue a Cabaça Bebedora.
O rio termina entre dois morros
Siga a Cabaça Bebedora.
Há outro rio do outro lado.
Siga a Cabaça”
A cabaça – cuia utilizada pelos escravos para beber água –, seria um código para a constelação Ursa Maior[11], que era usada como ponto de localização para os escravos encontrarem alguma das rotas de fuga da Underground Railroad.
Mesmo que, de forma oficial, o fim do trabalho escravo nos Estados Unidos tenha se dado em 1865, formas modernas de trabalho escravo foram implementadas no país. A lei da vadiagem, por exemplo, foi uma brecha para que afro-americanos cumprissem suas penas em forma de trabalho forçado, chamado de arrendamento de condenado – sistema que vigorou até 1941. Em uma gravação de 1966, é possível ver um grupo de afro-americanos entoando cantigas de trabalho no Texas. Nele, fica evidente a forma de pergunta-resposta das canções, e como os machados produziam uma melodia, enquanto batiam nas árvores de forma sincronizada.
O trabalho escravo transformou a música negra, e a música se transformou em força material, capaz não só de expressar o sentimento de repugnância com relação à condição de escravo, como de criar rotas para a emancipação dos negros.
Seja nas fazendas de algodão anteriores à Guerra Civil Americana, ou nas prisões do século XX e XXI, onde houver trabalho escravo, também haverá cantos de trabalho, em forma de lamentação, protesto ou códigos de fuga.
O lamento dos escravos de ganho no Brasil Império
Durante o século XIX, os ventos de revolução e guerra na Europa ecoaram no Brasil colonial, ajudando a transformar algumas das características políticas e sociais do país. Mas, apesar dessas mudanças, pouco da estrutura de produção e relações de trabalho se modificaram no jovem império. Assim, a produção escravista e latifundiária se mantiveram firmes, dada a condição de serventia do império diante das nações europeias, que foram atropeladas por revoluções liberais.
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Nessa mesma época, algumas leis já vigoravam no império a fim de criar reformas no regime de escravidão. Uma delas foi a Lei Bill Aberdeen, de 1845, que concedia à Marinha Real Britânica poderes de apreensão de qualquer navio envolvido no tráfico negreiro em qualquer parte do mundo. É claro que o desejo pelo fim da escravidão por parte da Inglaterra não vigorava sobre bases idealistas, ou por alguma forma de compaixao pelos povos escravizados. Era a Inglaterra pós-revolução industrial, do modo de produção capitalista de livre comércio. Escravos, em sua imensa maioria, não tinham salário, e a Inglaterra precisava escoar pelo mundo suas mercadorias e manufaturas. Era preciso barrar a escravidão pelo mundo, e implementar o trabalho assalariado.
Ainda que essa lei tenha sido um duro golpe no comércio transatlântico de homens e mulheres africanas, o trabalho reprodutivo também foi vital para a geração de mais mão de obra escrava num país como o Brasil, extremamente dependente desse trabalho até a promulgação da Lei do Ventre Livre, de 1871.
Na sociedade baiana no século 19, uma categoria de escravos foi fundamental: o escravo de ganho. Esses escravos, que eram forçados pelos seus senhores a realizar trabalhos nas ruas da cidade (como o comércio), foram os responsáveis pela chamada Greve Negra de 1857, na cidade de Salvador, Bahia. Os escravos de ganho se tornaram muito comuns – exercendo funções como carregador, doceira, pequenos artesãos, etc., – e havia algumas diferenças com relação a outras formas de trabalho escravo, como, por exemplo, a mobilidade urbana, que possibilitava a estes escravos novas formas de sociabilidade. Além disso, os ganhos obtidos por esses escravos – ainda que grande parte do lucro obtido diariamente fosse tomado pelo seu senhor –, poderiam ser utilizados para a compra da própria alforria.
No livro “Ganhadores: a greve negra de 1857”, o historiador João José Reis joga luz sobre como a mobilidade dos escravos de ganho possibilitam outras formas de sociabilidade para com seus iguais [12]:
“Na cidade a jornada do ganho era quase sempre descontínua, retalhada, e não só pelos hiatos entre um serviço e outro. Não havia, por exemplo, como proibir o escravo de baixar a cadeira vazia, o pau e a corda, o cesto, a gamela ou o tabuleiro para jogar ou apreciar um jogo de capoeira, entrar numa roda de samba, visitar parente, amor ou amigo, consultar um adivinho ou uma curandeira na periferia da cidade, ou enfurnar-se numa casa para orar a Alá, o Misericordioso. (…) Na grande cidade escravocrata, “cidade-esconderijo” na expressão de Sidney Chalhoub, o escravo podia ocultar do senhor como, onde e até do que vivia. O próprio ganho vinha às vezes de fontes pouco ortodoxas: da exibição de capoeira, do batuque pago, do curandeirismo, da prática de adivinhação, da venda de amuletos, de pequenos furtos — e destes os ganhadores eram sistematicamente acusados.”
É nesse contexto que a música dos escravos de ganho se estabelece. Suas bases eram, obviamente, o trabalho escravo, mas com elementos claramente distintas aos dos escravos que trabalhavam nas fazendas. Não só as agressões físicas eram cantadas, mas, também – e até como uma forma de crítica rudimentar ao trabalho assalariado –, a injustiça que era dar ao seu senhor uma parte generosa dos seus ganhos diários. Se torna explícita a crítica ao que, se fizermos uma analogia, seria a crítica central de Marx com relação ao trabalho assalariado na sociedade capitalista.
Silvio Campos, conhecido autor da virada do século XX, conta que, ao carregar muito peso, os escravos de ganho entoavam o seguinte cântico[13]:
“Ô, cuê…
Ganhadô
Ganha dinheiro
Pra seu Sinhô.”
E não apenas o resultado do seu trabalho, como as formas de se produzir, também foram criticadas em prosa e verso pelos escravos de ganho. A letra de O vendedor d’água[14] – considerada como a primeira canção popular baiana –, narrou a dureza do trabalho desempenhado pelos negros:
“Destes quatro barris velhos
Podem fazer meu caixão
Para quem vive de dores
Morrer é consolação”
Ainda que de forma poética, era preferível a morte do que o viver como um escravo. Uma das formas utilizadas pelos escravos para protestar e combater o trabalho escravo era o suicídio[15], trazido na forma de canção em O vendedor d’água.
Outra canção, encontrada no Arquivo Nacional de Viena, é um relato não só dos maus tratos frequentes, mas também sobre a qualidade das refeições destinadas aos escravos, e o contraste entre a vida na colônia e em seus países de origem:
“Meu Senhor me dá pancada
Isso não estado razão delle
Eu antes comido nada falta
E não obstante me há espancado.”
Sobre a estrutura rítmica dessas canções, é interessante o relato do viajante Holandes Quirijn ver Huell sobre as práticas musicais dos escravos de ganho responsáveis pelo transporte de caixas de açúcar, que chegavam a pesar 400 kg[16]:
“A caixa pendurava-se em duas resistentes varas que descansavam, em cima dos seus ombros cobertos com retalhos de couro. Amparadas por cajados longos e grossos, aquelas pobres criaturas arqueavam sob a pesada carga no compasso dos cânticos e dos golpes dos seus cajados nas pedras do pavimento, ao mesmo tempo em que o suor escorria ao longo da pele nua e molhava o chão.”
Outro viajante, o príncipe Alexandre de Wuerttemberg, também fez observações sobre os cânticos dos escravos de ganho[17]:
“Seguindo a tradição rítmica africana, havia o ‘puxador’ do canto, a quem os demais respondiam em coro. Wetherell também percebeu que, quando o fardo era mais pesado, ou quando subiam as muitas ladeiras da cidade, os africanos se faziam ‘muito mais vigorosos em seus gritos, ajudando a labuta e variando sua música com um expressivo e longo grunhido’”.
Muitas dessas músicas eram criadas na hora, no momento da labuta. E aqui fica clara a tradição da música brasileira no uso de versos que rimam, e no improviso, que seria a base do repente, do partido alto e do rap.
Produto do trabalho escravo no Novo Mundo, a música dos escravos de ganho se apoiava na tradição oral enraizada no Brasil colonial a partir da cultura africana – tradição essa responsável não apenas pela manutenção das suas formas de sociabilidade, mas também pela troca de informações e a organização das conspirações que originaram diversos levantes negros no Brasil. A música, então – muitas vezes composta em forma de código, e cantada em idiomas incompreensíveis pelos senhores –, foi um dos fios condutores dessas tentativas de libertação. Mesmo que ela não tenha vindo como propuseram os escravizados, as canções se tornaram gritos do protesto sobre a condição desumana que foi o trabalho escravo.
O batuque dos engraxates e o samba paulistano: uma crítica ao modo de produção capitalista
O processo de industrialização pelo qual a cidade de São Paulo passou na virada do século 19 para o século 20 trouxe, com ele, grandes mudanças sociais e econômicas. A exportação de café para o mercado internacional permitiu a acumulação de capitais que – de forma importante, mas não única – foi essencial na industrialização da cidade. No processo de industrialização, ocorre ainda o processo imigratório que, dentre outras coisas, foi capaz de conduzir um movimento de embranquecimento da cidade, ao mesmo tempo em que legava ao negro o papel de subproletariado.
Nesse movimento, aliado a uma proletarização de baixos salários e péssimas condições de vida, muitos trabalhadores passaram a uma condição de jornada dupla, como forma de complemento de renda. No caso de um imenso contingente de negros libertos e alguns imigrantes pobres, a solução para a sobrevivêincia foi atuar em profissões marginalizadas, como a de engraxate.
Os primeiros engraxates na cidade de São Paulo, por volta de 1877, foram os italianos, que trouxeram essa tradição para solo paulistano. Eram garotos de 10 a 14 anos de idade que, portando uma caixas de madeira, escovas e graxa, percorriam a cidade lustrando sapatos. Nessa época, era comum o uso de terno, calça social e sapato, principalmente entre os extratos sociais mais abastados – e brancos. Logo, a profissão foi vista pela população negra e pobre como uma forma de sobrevivência, um complemento à renda familiar.
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A importância dos engraxates na cidade São Paulo do século 20 era tal que, em 1931, Mário de Andrade escreveu o poema “Meu engraxate”, onde relata que “seu engraxate o deixou”:
“É por causa do meu engraxate que ando agora em plena desolação. Meu engraxate me deixou. Passei duas vezes pela porta onde ele trabalhava e nada. Então me inquietei, não sei que doenças mortíferas, que mudança pra outras portas se pensaram em mim (…)”.
O governo paulista, que conduziu um processo eugenista durante a industrialização da cidade – sob o desejo de uma cidade com ar cosmopolita e europeu, uma “Belle Époque”[18] paulista –, logo proibiu, por lei, a profissão de engraxate. Em 1935, o prefeito Fábio Prado passou a permitir o ofício, desde que se pagasse uma licença à prefeitura[19]. E claro que, na condição de imensa pobreza, a maioria dos engraxates prefeririam continuar trabalhando de forma clandestina. E foram esses garotos, na ilegalidade, que cantaram a profissão de engraxate e mudaram a história do samba paulista.
O samba paulista surge nos cafezais, influenciado pela herança africana presente no trabalho escravo. No século 18 e 19, surgem o samba rural e o samba de bumbo, na região de Santana de Parnaíba. Foi da influência desses ritmos, junto das marchas, serestas e choros que os engraxates – em contato com esses ritmos, transmitidos pelas rádios da época –, criaram o Batuque dos engraxates.
A pobreza não os permitia ter acesso aos instrumentos convencionais da época, e então, foi do seu ofício que tiraram notas e melodias.
No artigo “Entre batuque e graxa”, a jornalista Laila Mouallem explica um pouco da musicalidade originada pelos instrumentos de trabalho dos engraxates:
“Com sons graves, a caixa de madeira era como os ‘bombos’, um instrumento usado no samba rural paulista. Dependendo da forma de manejá-la, podia também percutir sons médios e agudos. Era preciso entendê-la, ressignificá-la. O mesmo vale para a escova: em seu vaivém com o suporte onde pousavam os pés do cliente, se assemelhava ao reco-reco — que, originalmente, faz som a partir do atrito de uma baqueta em uma superfície irregular. Da latinha e da tampa, vinham sons mais agudos e secos. As duas, juntas, faziam a vez do tamborim.”
Logo foram surgindo grupos de sambistas-engraxates, que percorriam regiões como Tucuruvi, Vila Mariana, Praça da Sé, Barra Funda, Brás, entre outras, batucando e cantarolando sobre as condições de trabalho, a repressão policial e outros causos da vida de um engraxate. Um exemplo é o samba de José Pereira, composto em 1941:
“Dizem que engraxate é profissão de vagabundo
Mas ninguém sabe dar valor
A quem merece nesse mundo
Si o trabalho fosse cada um pra si
Deus pra nós todos, eu assim podia agir
Viver de camelagem
Eu penso que não é vantagem
Morando no porão, Dormindo na friagem
Eu desse jeitinho sei me defender, sempre folgazão
Mas honrado até morrer.”
O samba é uma crítica ao preconceito que os engraxates enfrentavam. E também uma crítica à miséria em que esses trabalhadores viviam, fruto de uma industrialização que expulsou diversos grupos sociais de seu movimento modernizador. Interessante é que, apesar do preconceito com os engraxates, era o samba feito por eles e outras camadas de trabalhadores que sofria a maior opressão. Os anos de 1930 e 1940 foram cenário de grande perseguição ao samba, principalmente por ser um ritmo associado a negros e “vadios”. Mas, tal qual com os escravos de ganho, o batuque dos engraxates foi fator fundamental para a expansão do samba pela cidade, graças à mobilidade que a profissão permitia.
Um outro samba, Pequeno Engraxate, relata a alienação do ofício de engraxate:
“Em batuque de samba o vai-e-vem do pano
Retrata a gangorra que sua vida é.
Balanço que embala a triste incerteza
Se um dia, o que lustra, terá em seu pé.”
Ainda que fossem responsáveis pelo lustre dos sapatos de grande parte da população paulista, eles próprios vagavam descalços pela cidade, sem acesso ao produto por que, em troca de algum dinheiro, tanto zelavam.
Mas, ao mesmo tempo em que criticava a miséria e seu ofício, o engraxate lamentava o processo de urbanização, que o afastou de lugares que outrora ocupou e desenvolveu sua cultura. A expansão da cidade e do centro fez com que as camadas mais pobres da população tivessem de se mudar para as periferias da capital, vivendo em favelas e bairros precários. É essa realidade que o samba Lata de Graxa retrata:
“No coração da cidade, hoje mora uma saudade
A velha Praça da Sé, nossa tradição
Da praça da batucada, agora remodelada
Só ficou recordação
Até o engraxate foi despejado
E teve que se mudar com sua caixa
Ai, que saudade da batucada feita na lata de graxa.”
O samba, composto por Geraldo Blota e Mário Vieira, foi gravado por Germano Mathias. Germano é, provavelmente, o maior propagador do batuque dos engraxates, ofício que acompanhou durante a década de 1950, sempre se fazendo presente na Praça da Sé. O sambista incorporou as latinhas em seus shows e apresentações, herança dos tempos em que a graxa era o meio de sobrevivência dos batuqueiros.
Sendo uma tradição oral, o batuque dos engraxates foi pouco documentado. Gente como Germano Mathias, Osvaldinho da Cuíca e Toniquinho Batuqueiro foram de extrema importância na manutenção da memória dessa cultura popular. E ainda que o batuque tenha em muito se perdido, ele ajudou a transformar o samba paulista, e participou ativamente na criação dos cordões carnavalescos e das primeiras escolas de samba de São Paulo.
Além de Osvaldinho da Cuíca, participante ativo do cordão Garotos do Tucuruvi; e Tininho, um dos fundadores da Acadêmicos do Tucuruvi, outros dois nomes são essenciais nessa transição: Seo Carlão do Peruche e o já citado Toniquinho Batuqueiro. Ambos os sambistas exerceram o ofício de engraxate e batuqueiro, e, anos depois, fundaram a escola de samba Unidos do Peruche, uma das mais tradicionais do carnaval paulistano. E das praças ocupadas por um imenso contingente de despossuídos, o samba ocupou as ruas e as avenidas, se tornando o gênero mais popular da música brasileira. E independente do saudosismo cantado por Cartola, em forma de crítica às novas formas que o samba adotou e sua apropriação pelo mercado, o ritmo seguiu sua transformação, dentro das contradições entre capital e trabalho. Resta lutar pela memória do batuque dos engraxates, contar sua história e, acima de tudo, se servir desse passado para a defesa e a manutenção de novas e velhas formas de cultura popular.
Se para Fanon racismo e cultura se retroalimentam, seguindo as novas e modernas formas de preconceito racial, é por meio de novas formas de cultura – oriundas das contradições do capital e do colonialismo, adotando novas formas de luta –, que o fim do racismo será não apenas “o toque de finados da grande música negra”[20], mas também porta para um novo horizonte e formas de cultura que não mais surjam da opressão racial.