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Marx, “O Capital” e o homem-mercadoria [parte 1]

Para Marx, sem escravidão “não há algodão; sem algodão não há a indústria moderna”. A escravidão valorou as colônias; e elas criaram o comércio mundial.
por Bruno Guigue (*) | Le Grand Soir – Tradução de Luiz Lima para a Revista Opera
(Imagem: The Cotton Pickers, de Winslow Homer. 1876.)

No artigo a seguir, que publicamos em duas partes, Bruno Guige analisa as formas da escravidão n’O Capital de Marx. Leia aqui a segunda parte.

***

Quando Marx se entrega, na “Miséria da Filosofia”, a uma crítica severa ao método proudhoniano, ele toma um exemplo que, a seus olhos, ilustra o absurdo de uma síntese entre noções contraditórias: esse exemplo é a oposição entre a liberdade e a escravidão. Ao distinguir a escravidão “indireta”, a do proletariado, da escravidão “direta” da qual os negros das colônias são vítimas, ele vê nesta última “o pivô do nosso industrialismo atual, como as máquinas e o crédito”. Sem a escravidão – escreve – “não há algodão; sem algodão não há a indústria moderna. Foi a escravidão que deu valor às colônias; foram as colônias que criaram o comércio mundial; o comércio mundial é a condição necessária para a grande indústria mecânica.”(1) Que concepção do fenômeno da escravidão, no entanto – deveríamos nos perguntar – está subjacente a essa fórmula? E o que dizer da teoria da escravidão, exatamente, no autor d’“O Capital”? Se é difícil responder a essa pergunta, isto o é, antes de tudo porque a mesma palavra se refere a diferentes realidades. Nos textos do filósofo alemão, o termo também designa a antiga servidão greco-romana, a escravidão colonial moderna ou mesmo a mais hedionda exploração capitalista contemporânea.

Sem dúvida, essa última acepção é amplamente metafórica. Quando Marx evoca, por exemplo, “a escravidão dos operários” na Inglaterra do século XIX, ele usa uma imagem destinada a ilustrar a dureza das condições de trabalho resultantes da introdução do maquinário.(2) Em relação ao trabalho forçado de mulheres e crianças nas cidades manufatureiras, a mesma terminologia ainda é necessária. “Antes, o trabalhador vendia sua própria força de trabalho, da qual podia dispor livremente, agora vende mulheres e crianças; ele se torna um comerciante de escravos. E, de fato, a demanda por trabalho infantil muitas vezes se assemelha, mesmo na forma, à demanda por escravos negros, como encontrada nos jornais americanos.”(3) Bastante frequente na obra-prima de Marx, esse uso do termo para designar as condições de escravização que a grande indústria impõe ao proletariado moderno tem, acima de tudo, um significado polêmico: a servidão estabelecida pela maquinaria é de tal modo infame que parece surgir, em sua crueldade, duma remota Idade das Trevas. Conquanto seja interessante, a fórmula não nos diz muito sobre a concepção marxista de escravidão. Que conexão se estabelece, em particular, no texto acima mencionado, entre a escravidão moderna e os Estados Unidos? Que lugar Marx atribui, na análise de sucessivas formas de sociedade, ao que é comumente chamado de “economia das plantations”? Qual é a relação entre o desenvolvimento do capitalismo no Ocidente, iniciado no século XVI, e esse modo de organização econômica estabelecido em sua periferia colonial?

A mutação da escravidão americana

Quando se interessou pelo fenômeno da escravidão, Marx não o tratava como uma forma de dominação que houvesse desaparecido do mundo ocidental desde o início da Idade Média. Em outras palavras, ele não associa a escravidão, n’“O Capital”, ao primeiro estágio da sucessão de modos de produção com que se costuma resumir simplificadamente sua visão da História: o modo de produção escravista na Antiguidade, o modo de produção feudal na Idade Média, o modo de produção capitalista na era moderna. A escravidão não constitui, a seus olhos, um estágio obrigatório da evolução histórica que seria definitivamente superada com o advento da servidão, e depois, do assalariamento, sob o efeito de algum determinismo. Como Aristóteles, na Antiguidade, ou Montesquieu, no Iluminismo, ele realiza sua reflexão sobre um objeto que faz parte integral do cenário social de seu tempo. Mas, se ele testemunha formas modernas de escravidão, não é menos verdade que ele também testemunhou sua agonia. Ele viveu um período histórico durante o qual a existência da servidão se impôs como uma realidade maciça, mas simultaneamente experimentou um questionamento radical. A publicação do “Manifesto do Partido Comunista”, em 1848, é contemporâneo com a abolição da escravidão nas colônias francesas. Quando a primeira edição do Livro I d’“O Capital” é publicada, em 1867, os Estados Unidos da América mal emergiam de uma guerra civil que acabara com o regime escravocrata nos estados do sul e cobrou a vida do presidente abolicionista Abraham Lincoln.

Uma passagem do Capítulo X do Livro I d’“O Capital”, dedicada à condição dos negros americanos, nos fornece uma primeira indicação da concepção marxista da escravidão moderna. “Contudo, logo que povos — cuja produção se move ainda nas formas inferiores do trabalho escravo, trabalho servil, etc., — são atraídos a um mercado mundial dominado pelo modo de produção capitalista, que desenvolve a venda dos seus produtos para o estrangeiro como interesse prevalecente, aos bárbaros horrores da escravatura, servidão, etc., é enxertado o horror civilizado do trabalho a mais. Por isso, o trabalho dos negros nos estados do Sul da União americana conservou um caráter moderadamente patriarcal enquanto a produção era principalmente dirigida para a auto subsistência imediata. Na medida, porém, em que a exportação de algodão se tornou interesse vital daqueles estados, também o fazer o negro trabalhar a mais — por vezes, o consumo da sua vida em sete anos de trabalho — se tornou fator de um sistema calculado e calculador.”(4)

O Capítulo X do Livro I d’“O Capital” tem como objetivo estudar os mecanismos relacionados ao “dia útil”. Esse comentário sobre a escravidão americana é, portanto, parte do estudo geral das leis imanentes do “modo de produção capitalista”. Mais precisamente, o autor evoca a condição servil nos Estados Unidos ao analisar a tendência, inerente a esse modo de produção, à extensão máxima do horário de trabalho. Agora, o que Marx diz, em essência, sobre a economia das plantations norte-americanas e as relações sociais de escravidão que a caracterizam? Ele distingue, na história dessa formação social, dois períodos sucessivos: um primeiro período marcado por relações do tipo patriarcal e um segundo período afetado pelo “horror civilizado do trabalho a mais”. Como é realizada a transição entre o primeiro e o segundo período? Qual é o motor dessa mudança? Na resposta formulada pelo autor, essa transformação encontra-se ligada a uma causalidade sem mistério: é a busca obstinada de lucro comercial que renova profundamente as formas de escravidão nos Estados Unidos. Pois esse lucro comercial, sob condições de produção determinadas, só pode vir de uma exploração frenética de trabalho escravo. É a dominação indivisa das relações de mercado, portanto, que arruinou o modelo social tradicional incorporado pela dominação patriarcal. Causada pelo desenvolvimento da indústria do algodão, a explosão da concorrência internacional teve o único efeito de escravizar ainda mais os escravos. Ao dobrá-los aos padrões ditados pela grande indústria, o capitalismo moderno piorou dramaticamente suas condições de vida.

“Os horrores do trabalho excedente”

É nesse sentido que devemos entender a fórmula de Marx sobre “os horrores do excesso de trabalho, esse produto da civilização”. Entre essas duas eras de escravidão, de fato, não há apenas uma diferença de grau na exploração do trabalho escravo. O que os separa é, acima de tudo, uma profunda diferença de natureza introduzida, irreversivelmente, pelo domínio exclusivo das relações de mercado. Quando a forma de uma sociedade é tal, diz Marx, que “é o valor de uso que predomina”, o trabalho extra é circunscrito pelo “círculo de necessidades determinadas” e “pelo carácter da própria produção que não gera um apetite devorador”. Por outro lado, quando se trata de obter valor de troca em sua forma específica, através da produção de ouro e prata, já vemos, na Antiguidade, o trabalho mais excessivo e terrível. Valor de troca versus valor de uso, busca de lucro contra satisfação de necessidades, escravidão comercial contra regime patriarcal: se tais oposições são equivalentes, é porque indicam a diferença de natureza entre dois modos de organização social, que por sua vez caracterizam duas modalidades fundamentalmente distintas do fenômeno da escravidão. Para usar a terminologia de Aristóteles, que Marx cita prontamente, poder-se-ia dizer que a servidão patriarcal faz parte da economia doméstica (οικονομία), enquanto a escravidão comercial faz parte da “crematística” (κριματικός), ou seja, a arte de adquirir riqueza: a primeira encontra seu limite em atender às necessidades da comunidade, enquanto a segunda é tão ilimitada quanto o desejo de adquirir. Significativa aqui é a observação de que, “desde a Antiguidade”, a busca exclusiva pelo valor de troca gerou formas “excessivas e apavorantes” de extorsão do trabalho excedente.

Assim, afirma-se, para Marx, o caráter essencial da escravidão moderna em comparação com outras formas de escravização do homem pelo homem. O que a diferencia, de fato, é o objetivo de um enorme lucro comercial gerado pelo trabalho excedente em larga escala. O tráfico de escravos-mercadoria se constitui, dessa forma e sem qualquer dúvida,  na única modalidade possível de reprodução da força de trabalho. O fato de a força de trabalho escravo ser destruída na mão do seu possuidor fornece o pano de fundo essencial para sua renovação; e isso, precisamente, retroalimenta a propensão do sistema a levar o consumo de força de trabalho aos limites da resistência humana. Na plantation agora governada apenas pela lei do lucro, o escravo-mercadoria se destina não a durar, mas a ser imediatamente substituído por outro assim que ele sucumbir à exaustão. Em outra passagem d’“O Capital”, Marx cita longamente o texto de um  contemporâneo, John Eliot Cairns (a), que escreve as seguintes linhas num trabalho publicado em Londres em 1862:

“As considerações econômicas que poderiam, até certo ponto, garantir ao escravo um tratamento humano, se a sua conservação e o interesse de seu senhor fossem idênticos, se transformam nas razões de sua ruína absoluta quando o comércio de escravos é permitido. Consequentemente, de fato, como ele pode ser substituído por negros estrangeiros, a duração de sua vida se torna menos importante que sua produtividade. Portanto, é uma máxima, nos países escravagistas, que a abordagem econômica mais eficiente é pressionar o estoque humano, de modo a proporcionar o maior retorno possível no menor tempo possível. É nos trópicos, onde os lucros anuais do cultivo geralmente igualam todo o capital das plantations, que a vida dos negros é sacrificada sem o menor escrúpulo.”(5)

O que o comércio de escravos ilustra em sua crueldade desumana é a natureza irreprimível da dinâmica do mercado: seu poder é tal que modifica a própria natureza das relações escravistas, que subverte a forma tradicional e invade o coração da escravidão moderna com força incoercível. Submetida à lei férrea do lucro, e cedendo à pressão irresistível das relações de mercado, a escravidão das plantations se converteu às regras do capitalismo então florescente; e a redução do próprio trabalhador a uma mercadoria simples, sob o efeito do comércio de escravos, empurra os limites do domínio do homem sobre o homem além do que é humanamente possível.

Acumulação primitiva

Essa descrição do sistema de exploração norte-americano que aí se desenvolve como resultado da industrialização europeia, no entanto, não é a última palavra de Marx sobre a escravidão moderna. Que lugar isso ocupou no surgimento do capitalismo ocidental desde o século XVI? Qual foi o seu papel histórico no processo de acumulação global? Em que medida contribuiu, desde o período mercantilista, para lançar as bases do desenvolvimento industrial moderno? Marx confronta estas questões na Secção VIII d’“O Capital” dedicada à “acumulação primitiva”. A acumulação, em Marx, é o processo de transformar uma fração do produto social em capital adicional. Por acumulação primitiva, Marx designa com mais precisão um processo que assume formas históricas singulares, decisivas para o desenvolvimento do capitalismo moderno. Marx empresta essa expressão da “acumulação anterior” a Adam Smith, porém confere a ela um significado muito diferente. Para o filósofo escocês, “acumulação anterior” significa poupança individual, ditada pela preocupação comum com o futuro e que manifesta a capacidade de antecipação dos pioneiros da economia moderna. Destinada ao investimento produtivo, é o verdadeiro motor do progresso econômico. Em Marx, por outro lado, a acumulação primitiva nada tem a ver com as qualidades morais do poupador anglo-saxão. A virtude cardinal do empresário para os economistas burgueses designa, a seus olhos, a violência original do modo de produção capitalista: é o conjunto de processos pelos quais é realizada, antes do surgimento do capitalismo moderno, uma concentração de capital que tornará possível a era industrial.

De uma categoria moral entre os economistas burgueses, a acumulação primitiva em Marx se converte numa categoria histórica. Portanto, não há nada “idílico”, enfatiza, nos métodos de acumulação primitiva, que, pelo contrário, se caracterizam pelo uso da violência e pela brutalidade das relações entre dominantes e dominados. No curso do que ele chama de “pré-história” do capital, os meios utilizados para concentrar os meios de produção não tinham nada em comum com o ascetismo moral do empreendedor. Foi, por exemplo, a espoliação de terras comunais e eclesiásticas em benefício dos grandes proprietários, que está na origem de uma expropriação feroz do pequeno campesinato em episódios que marcaram a história da Inglaterra do século XVI ao XVIII. A espoliação da propriedade da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios do Estado, a pilhagem das terras comunais, a usurpação e a transformação terrorista da propriedade feudal ou mesmo patriarcal na propriedade moderna privada, a guerra com os pequenos proprietários, nisso consistiram os processos idílicos da acumulação primitiva. Eles conquistaram a terra para a agricultura capitalista, incorporaram o solo ao capital e entregaram à indústria das cidades os braços dóceis de um proletariado ao desabrigo.

Mas outros fenômenos, de importância igualmente decisiva, também contribuíram para a acumulação primitiva; foram “o regime colonial, as dívidas públicas, os abusos fiscais, a proteção industrial, as guerras comerciais”, enfim, “todas essas ramificações do período das manufacturas propriamente dito” que “tiveram um desenvolvimento gigantesco durante a juventude da grande indústria”(6). Dado que o período das manufacturas corresponde aos séculos XVII e XVIII na Europa, há todas as razões para acreditar que a acumulação primitiva, aos olhos de Marx, atingiu seu auge com a segunda metade do século XVIII. No entanto, esse período coincide com a ascensão meteórica de um “regime colonial” que o autor não hesita em citar à partida entre as modalidades de acumulação “durante o período da juventude da grande indústria”. O lugar que Marx dá à exploração colonial na hierarquia dos processos de acumulação é, portanto, particularmente significativo.

Imediatamente depois de ter empreendido uma análise das relações de classe na Inglaterra, Marx ampliou a perspectiva histórica. Pois o que é verdade para a sociedade britânica, não é também, a fortiori, para essa “economia mundial” (7) forjada pela expansão europeia que nasceu com os tempos modernos? Violência originária do modo de produção capitalista, a acumulação primitiva também era nutrida pelos lucros do empreendimento colonial que se desenrolou após as grandes descobertas. “A circulação de mercadorias é o ponto de partida para o capital. Surge somente depois que a produção e o comércio no mercado já atingiram um certo grau de desenvolvimento. A história moderna do capital data da criação do comércio e do mercado dos dois mundos no século XVI.”(8) Se o capital entrou na história moderna, aos olhos de Marx, foi porque sabia explorar os recursos do Novo Mundo.

Em outras palavras, foi por conseguir criar uma periferia que a Europa se constituiu como o centro de uma nova economia mundial. Mas como Marx descreve, precisamente, as relações entre a ascensão do capital europeu e a exploração colonial? O capítulo XXXI do livro I d’“O Capital” fornece uma resposta. Intitulado “a gênese do capitalismo industrial”, este texto essencial mostra como o “regime colonial” contribuiu para a acumulação primitiva. Novamente, como se pode imaginar, nada há de “idílico” nos procedimentos utilizados pelo conquistador europeu. “A descoberta das províncias auríferas e argentíferas da América, a redução dos nativos à escravidão, o sepultamento laboral nas minas ou o extermínio, o início da conquista e saque das Índias Orientais, a transformação da África em uma espécie de cais comercial para a caça de peles negras, esses são os processos idílicos de acumulação primitiva que sinalizam a era capitalista desde o início.”(9) Significativamente, é neste texto que aparece a importância dada pelo autor ao comércio de escravos. Seu papel na subjugação sistemática de populações tropicais não sinaliza, aqui novamente, o domínio exclusivo das relações mercantis? O que confirma essa interpretação é a insistência de Marx, no restante do capítulo, na íntima relação entre a acumulação na era mercantilista e o estabelecimento do regime colonial.

(*) Bruno Guigue é analista político, professor de Filosofia e Relações Internacionais.

Notas:

(1) Karl Marx, Œuvres, Economie I, Gallimard-La Pléiade, p.80.
(2) Karl Marx, Le Capital, I, T. 1, Flammarion, 1985, p 321.
(3) Ibidem, p. 286.
(4) Ibid., p. 181.
(5) Ibid., p. 201.
(6) Ibid., T. 2, p. 182.
(7) Par «économie-monde» il faut entendre, à la suite de Fernand Braudel, «un morceau de la planète» économiquement autonome et organisé autour d’un centre. C’est ainsi que se constitue, à partir du XVIème siècle, «une économie-monde européenne»
.(8) Ibid., T. 1, p. 115.
(9) Ibid.; T. 2, p. 197.
(a) https://en.wikipedia.org/wiki/John_Elliott_Cairnes.

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