O PCB foi fundado em 25 de março de 1922 como Partido Comunista – Seção Brasileira da Internacional Comunista, um dos frutos da reorganização do movimento operário sob a bandeira da Internacional Comunista (IC). Com o apoio ativo ao colonialismo e à barbárie da Primeira Guerra Mundial, a Segunda Internacional entra em falência e os partidos social-democratas, outrora defensores da paz e do socialismo, consolidam-se como aparelhos políticos das disputas imperialistas de “suas” burguesias nacionais.
Com a vitória da Revolução Russa, a expectativa dos bolcheviques era o desenlace da revolução mundial, especialmente na Alemanha. A criação da Internacional Comunista (Terceira Internacional) seria uma forma de dirigir esse processo revolucionário em nível mundial; porém, as esperanças de um rápido alastramento da revolução socialista pela Europa Ocidental foram derrotadas. Agora se tratava de preservar a única experiência de poder operário e garantir uma reconstrução do movimento operário sob as bases revolucionárias, superando os social-democratas.
Sob essas novas condições históricas, e a partir de certa leitura dos porquês da falência da Segunda Internacional, a IC se configurou como uma novidade organizativa e política no movimento operário. Tendo em vista a necessidade de garantir uma real ruptura com a social-democracia, a IC elaborou suas 21 condições de adesão e um modelo em que o centro decisório, sob o comando dos bolcheviques, garantiria a não degeneração revisionista a partir de uma forte capacidade de intervenção sobre as seções nacionais[1].
A IC também expressou a primeira onda de mundialização do marxismo. Durante o período da Primeira e Segunda Internacional, o movimento operário de orientação marxista estava concentrado na Europa Ocidental e nos Estados Unidos da América, ampliando-se, ao final do século XIX, para a periferia da Europa: Polônia, Hungria, Irlanda, Rússia, etc. Só com a IC é que o marxismo se tornou realmente global, com a criação de várias organizações comunistas nas Américas, África e Ásia.
Esse processo de “mundialização” é, ao mesmo tempo, um de múltiplos processos de nacionalização do marxismo. Não é possível entender o marxismo brasileiro – ou de qualquer outro país – só fazendo referência à Internacional Comunista e ao marxismo produzido na União Soviética. Do contrário, iremos tratar a realidade a partir de um difusionismo cultural no qual tudo se explica pela influência ou ordens de Moscou, desconsiderando no plano teórico, histórico e político as condições nacionais variadas de atuação da IC. A partir dessas considerações, cabe uma breve reflexão sobre a nacionalização do marxismo no Brasil para evitar a visão simplista e equivocada de que a cultura política dos comunistas era um mero espelhamento do marxismo soviético.
O ato de nascimento da modernidade é a conquista colonial do território posteriormente chamado de América. A partir daí começa um ciclo de extermínio dos povos não ocidentais pelo poder político-econômico que se apresenta como a personificação do Ocidente. O extermínio dos povos originários da América, a escravização e o tráfico de pessoas de África e a empresa de exploração colonial se combinam com o início da criação do conceito de raça[2].
A conquista colonial fez-se aqui dominando os povos originários chamados genericamente de “índios” e, pouco depois do início da colonização, criando paulatinamente uma sociedade escravocrata a partir da força de trabalho escravizada de pessoas trazidas de África. Diferente de outras regiões colonizadas, em nosso país não se colocou o problema do trato histórico, político e cultural de uma herança civilizacional e resquícios de relações sociais pré-capitalistas anteriores à colonização. O desafio enfrentado por dirigentes revolucionários como Mao Tsé-Tung (1893-1976), Ho Chi Minh (1890-1969), Kim Il-sung (1912-1994) e José Carlos Mariátegui (1894-1930), para citar alguns exemplos, de como compatibilizar as tradições milenares do seu povo e nação dentro de uma perspectiva nacional-popular[3] de horizonte socialista, respeitando, valorizando e incorporando as tradições históricas, mas sem cair em um fetichismo idealista do passado, não se pôs para os revolucionários brasileiros. A dinâmica de formação histórico-cultural do nosso país foi totalmente diferente da China, Coreia, Vietnã ou Peru. Nas palavras de Carlos Nelson Coutinho,
“O fato de que os pressupostos da nossa formação econômico-social estivessem situados no exterior teve uma importante consequência na questão cultural. Isso significa que, no caso brasileiro, a penetração da cultura europeia (que se estava transformando em cultura universal) não encontrou obstáculo prévios. Em outras palavras, não existia uma significativa cultura autóctone anterior à colonização que pudesse aparecer como o ‘nacional’ em oposição ao ‘universal’, ou o ‘autêntico’ em contraste com o ‘alienígena’. Basta pensar no mundo árabe, na China e na Índia, ou mesmo no Peru e no México, para compreender imediatamente a diferença com o caso brasileiro. No Brasil, mesmo na época da subordinação formal, ou seja, mesmo quando o modo de produção interno ainda não era capitalista, as classes fundamentais de nossa formação econômico-social colonial encontravam suas expressões ideológicas e culturais na Europa” (COUTINHO, 2011, p. 40).
Esse trecho não significa, que fique claro, que Coutinho desconsidera a influência e existência dos povos originários e dos diversos povos escravizados vindos de África e seu papel na formação da cultura nacional brasileira. O filósofo argumenta – e isso nos parece correto –, que essas expressões culturais não tiveram capacidade de fundamentar uma perspectiva nacional-popular autônoma e alternativa ao domínio das elites coloniais, tendo, para sobreviver, que misturar-se de diversas formas com a cultura dos colonizadores importada da Europa, assumindo, portanto, uma posição subordinada.
Até o começo do século XIX existia no Brasil uma rede mínima de produção de ideias para as elites coloniais. Com a vinda da Família Real Portuguesa ao Brasil (1808), Independência (1822) e o Segundo Império (1840-1889), o país conheceu o crescimento dessa produção interna. Um exemplo clássico foi a criação das primeiras faculdades do Brasil: Escola de Cirurgia da Bahia em 1808 e Faculdade de direito de São Paulo e Recife em 1827.
De 1889 até 1930 as classes dominantes internas não conseguiram forjar uma hegemonia de dimensões nacionais. O Brasil não tinha meios suficientes de transporte e comunicação; integração econômica, política e aparelhos ideológicos de Estado – como um sistema educacional cobrindo todo território –, para criar a consciência nacional sob a direção da burguesia.
O fim da escravidão, do Império e a proclamação da República acelerou o desenvolvimento do capitalismo e do moderno Estado burguês, mas esse processo de modernização capitalista apresentava fortes limitações geográficas, desigualdades regionais e resistências de interesses e relações pré-capitalistas. A consolidação plena de uma dinâmica societária burguesa de expressão nacional se dá com a “Revolução” de 1930 comandada por Getúlio Vargas (1882-1954). A “revolução” de 1930 avançou na criação de um centro dinâmico interno de produção de ideias, ainda que sem romper com o colonialismo cultural e a dominação imperialista.
É preciso negritar ainda uma questão fundamental: a superação da condição colonial e, nas primeiras décadas do século XX, o processo de integração e modernização nacional, não criou um modelo de capitalismo semelhante aos países centrais do sistema. Da condição colonial transitou-se para a condição de capitalismo dependente: e é parte intrínseca e orgânica do capitalismo dependente, dado sua subordinação ao imperialismo, o colonialismo cultural.
Compreendemos colonialismo cultural como a ideologia – materializada em aparelhos ideológicos e no sistema de dominação política – de legitimação e reprodução da dependência e dominação imperialista (a base material do colonialismo cultural) que visa, centralmente, ocultar do debate político e do conhecimento das classes populares essa realidade periférica e seus determinantes, impondo programas de pesquisas, conceitos, categorias, formas culturais, noções e tendências na “opinião pública” estranhas à nossa realidade, pois gestados nos países centrais do capitalismo – ou com inspiração neles –, com o objetivo de garantir os interesses do imperialismo e da burguesia interna. Em suma, é uma forma de desistoricizar, legitimar e naturalizar o capitalismo dependente afirmando a hegemonia do bloco no poder[4].
Marx e Engels mostraram que a alienação no capitalismo afeta a constituição de todas as classes, mas a burguesia sente-se confortável nessa realidade alienada: o mesmo acontece com o colonialismo cultural. Sua reprodução é funcional aos interesses históricos das principais frações da burguesia interna, mas uma barreira para os projetos de emancipação das classes populares. E superar essa barreira, além dos desafios teóricos e políticos próprios da construção científica e da luta política, passa por questões materiais objetivas. Marly Vianna coloca com qualidade ímpar essas dificuldades:
“Temos frequentemente interpretado – e mesmo julgado – a ação e as interpretações dos comunistas sobre a sociedade brasileira a partir de nossos conhecimentos de hoje, o que não nos ajuda a entender o pensamento do pequeno grupo que fundou o PCB. No início da década de 1920, éramos uma sociedade com a maioria de sua população analfabeta, com poucas editoras, poucas livrarias, uma cultura bacharelesca e de mínimo conhecimento do marxismo – quase sempre de segunda mão. Por isso mesmo, não é de se espantar que os comunistas tivessem uma visão superficial da sociedade e a retratassem repetindo acriticamente as lições da história oficial” (VIANNA, 2012, p. 164).
A historiadora ainda pontua como o Brasil não tinha uma tradição prévia de um partido socialista significativo, as tentativas de criar um partido comunista antes do PCB não obtiveram êxito e quando o Partido Comunista consegue finalmente ser criado, o governo Arthur Bernardes, em 1922, decreta o estado de sítio e coloca na ilegalidade um PCB com apenas três meses de vida. Durante os primeiros anos do partido, a realização até do mais básico das atividades políticas, como círculos de formação, tinham enormes dificuldades devido à repressão (Idem, p. 171)[5].
Nesse sentido, é equivocado considerar que os problemas e a configuração do marxismo brasileiro expliquem-se fazendo referência tão-somente ao “stalinismo” ou à “dogmatização stalinista” como, de modo característico de algumas interpretações, faz o pensador Michael Löwy (2012, p. 9-60)[6]. Löwy, ao tratar da história do marxismo na América Latina (e Brasil), considera existir dois polos: o eurocêntrico e o concreto-dialético, criando uma historicidade onde o período de ouro do marxismo foi na década de 1920, a era do “comunismo original”, do marxismo concreto-dialético, que acabou nos anos de 1930 com o que chama de “dogmatização burocrática” e “emprobrecimento” ocasionado pelo “triunfo do stalinismo” (expressão do eurocentrismo), com a conclusão de que uma nova era do marxismo concreto-dialético só surgiria com a Revolução Cubana.
O que o autor chama de época de ouro se configurava como o início da vida dos Partidos Comunistas, com a maioria deles residual e sem base de massas significativa – como o próprio Löwy reconhece ao falar que o PC chileno, “desde o começo o mais forte”, não tinha mais que 5 mil membros em 1929 (Idem, p. 14). É uma periodicidade insustentável e inaplicável, por exemplo, ao Brasil, o que faz com que o pensador sustente-se em poucos exemplos, não dando uma única palavra sobre essa suposta “era de ouro” dos anos 20 na Venezuela, Uruguai, Bolívia, Colômbia, Equador, Paraguai e assim segue (é estranho chamar de época de ouro um período onde em toda América Latina era difícil achar um PC que tivesse 10 mil membros).
Aliado a isso, quando trata do fim dessa “época de ouro”, Löwy cita que o stalinismo criou em “cada partido” um “aparelho dirigente hierárquico, burocrático e autoritário” e sustenta a tese, há muito desacredita, da Internacional Comunista controlando todos os movimentos de cada PC na América Latina[7]; diz que a teoria das etapas foi produto de elaboração teórica de Stálin mesmo sem citar onde Stálin teria elaborado isso ou quaisquer estudos que sustentem sua posição. Por fim, debita o mecanicismo economicista e naturalismo a fontes soviéticas, e indica que eles já estavam presentes em Plekhanov e nos mencheviques (Idem, p. 17), desconsiderando a força do positivismo e do naturalismo na própria cultura brasileira à época.
A conclusão óbvia que se pode tirar disso é que caso o rumo da União Soviética fosse outro, talvez com a vitória de Leon Trotsky e seu grupo no XV Congresso do Partido Comunista da União Soviética em 1927, os problemas do marxismo na América Latina não teriam existido. O centro do problema teórico aqui debatido é o famoso conceito trotskista subjetivista de “crise de direção” – implícito, mas não citado por Löwy. Todos os elementos que tratamos nas páginas anteriores, desde os de longa duração histórica (como a dependência e o colonialismo cultural) e elementos mais imediatamente conjunturais (como a pouca experiência política da classe operária, a repressão, o baixíssimo nível de formação política dos dirigentes, etc.) somem em nome de uma explicação fácil: o “stalinismo”.
Feitas essas considerações, podemos entrar diretamente no debate sobre a estratégia democrático-nacional e a luta de classes no Brasil até o golpe de 1964. No início do movimento comunista no Brasil, dois problemas de ordem teórico-prática se colocaram: qual a particularidade histórico-estrutural de nossa formação social? E qual o caráter da revolução e as forças capazes de impulsioná-la e dirigi-la? O primeiro grande esforço para responder a essas duas perguntas foi do alagoano e comunista Octávio Brandão (1896-1980). Brandão escreveu “Agrarismo e industrialismo: ensaio marxista-leninista sobre a revolta de São Paulo e a guerra de classes no Brasil ”, livro publicado em 1926 com o pseudônimo de Fritz Mayer.
Brandão defendia que o Brasil era um país eminentemente agrário, inserido de maneira subordinada na cadeia imperialista e dominado pela Inglaterra, mas que existia uma contradição entre o imperialismo inglês e o estadunidense que buscava fortalecer sua influência no país. Nessa dominação semicolonial que vivia o Brasil pelo capital inglês, era o latifundiário o grande detentor dos meios de produção no país e este tinha contradições com a burguesia industrial e com a pequena-burguesia.
A pequena-burguesia, no período protagonizando a revolta dos tenentes, foi apontada por Brandão como uma força política importante, ainda que seu programa fosse moralista e limitado a defender reformas democráticas nos marcos do regime burguês. Brandão, contudo, localiza nessa contradição entre pequena-burguesia e o latifúndio/imperialismo inglês uma importante oportunidade para uma política radical dos trabalhadores. Diz o dirigente comunista:
“Impelir a fundo a revolta pequeno-burguesa [tenentismo] fazendo pressão sobre ela, transformando-a em revolução permanente no sentido marxista-leninista, prolongando-a o mais possível a fim de agitar as camadas mais profundas das multidões proletárias e levar os revoltosos às concessões mais amplas, criando um abismo entre eles e o passado feudal. Empurremos a revolução da burguesia industrial – o 1789 brasileiro, o nosso 12 de março de 1917 – aos últimos limites, a fim de, transposta a etapa da revolução burguesa, abrir-se a proletária, comunista” (BRANDÃO, 2006, p.133).
Como se percebe, o autor faz uma associação um tanto quanto mecânica com as revoluções da França e Rússia. O alagoano tinha uma formação teórica bastante precária, sendo fundamentalmente um autodidata e considerando todos os problemas da cultura marxista no Brasil elencados na seção anterior. Um grande exemplo das dificuldades de Brandão é seu manejo da dialética entendida formalmente como encontrar a tese, antítese e síntese nas relações[8].
A despeito desses problemas, naturais dado o pioneirismo de Brandão, é importante destacar na sua análise: a) a ausência de confiança no papel da burguesia industrial enquanto sujeito da Revolução Brasileira, análise essa não fruto de um exaustivo exame da realidade brasileira, mas, talvez, como consequência direta dos impactos da Revolução Russa na crença de que se iniciou em todo mundo a era das revoluções proletárias; b) compreensão do Brasil como um país subordinado na cadeia imperialista na condição semicolonial; c) a caracterização do latifúndio como principal componente da classe dominante interna.
Ainda nos anos 20, o PCB tem atuação importante a partir do Bloco Operário e Camponês (BOC), uma espécie de frente de massas legal onde os comunistas, em alianças mais amplas, se propunham a organizar os operários, massas urbanas no geral (incluso camadas médias e pequena-burguesia) e disputar as eleições no âmbito das lutas “moralizadoras” e pelas “liberdades políticas”, como dizia Brandão no seu livro. Em 1925 foi a primeira vez que o PCB conseguiu disputar efetivamente um processo eleitoral, lançando na cidade de Santos, em São Paulo, João Freire de Oliveira, e tendo apenas 34 votos para intendente (vereador) municipal; em 1926, o Partidão (como era chamado o PCB) lança Joaquim Barboza de Souza, secretário sindical do PCB, ao cargo de intendente municipal do Rio de Janeiro, atingindo 900 votos.
Em 1928, o BOC lançou o próprio Octávio Brandão e o operário negro Minervino de Oliveira ao cargo de intendente[9]. Ambos foram eleitos e em 1930, pela primeira vez na história brasileira, o que hoje chamamos genericamente de esquerda lança como candidato a presidente um negro: Minervino de Oliveira, obtendo 720[10].
Com a “Revolução” de 1930, o BOC é formalmente posto na ilegalidade, os “vereadores” do PCB cassados e começa uma implacável perseguição ao partido. Aliado a isso, a IC estava operando mudanças em sua política e criticava a atuação do PCB nos últimos anos, especialmente sua linha política com o BOC e as teses de Octávio Brandão, considerando-as desvios de direita, eleitoralistas e pacifistas, que subordinavam a classe operária à pequena-burguesia. Como o PCB ainda era um partido fraco e nacionalmente pouco enraizado na classe, a despeito da experiência com o BOC ter propiciado um crescimento importante ao partido, a força da IC em influenciar os rumos internos era relevante. Aliado a isso, os diversos grupos em disputa no seio do partido se aproveitavam da ação da IC para consolidar vitórias sobre os adversários.
Nesse processo, Octávio Brandão e Astrojildo Pereira (1890-1965), dois dos principais dirigentes e formuladores do PCB, foram marginalizados no partido e perderam espaço político. O PCB passava por um intenso processo de mudança na sua linha política, ainda que essa transformação não fosse acompanhada de toda elaboração nova de interpretação do Brasil – as necessidades práticas de atuação, e as dificuldades múltiplas, com especial destaque à repressão, sempre impondo limites a esse trabalho.
O PCB decide não se incorporar ao movimento de 1930, dado seu caráter manifestamente antipopular, ainda que modernizante e até certo ponto reformista (o sentido da Aliança Liberal dirigida por Getúlio Vargas foi bem sintetizada na frase do governador de Minas Gerais, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada: “façamos a revolução antes que o povo a faça”).
O governo da Aliança Liberal comandada por Getúlio Vargas teve dificuldades de se consolidar. Primeiro, houve um racha no bloco dos tenentes com seu principal líder, Luís Carlos Prestes, não aderindo ao varguismo, e em 12 de março de 1931 se declarando comunista e acusando Vargas de trair os ideais de libertação nacional e da causa dos trabalhadores. Aliado a isso, a oligarquia cafeeira paulista tentou derrubar Vargas estimulando um levante armado, em 1932. O movimento dos trabalhadores também vinha numa crescente e a resposta era a repressão sempre mais dura, como nas comemorações do 1° de maio de 1934, quando, em Recife, vários trabalhadores foram presos e dois militantes operários assassinados pela polícia.
Considerando essa conjuntura interna, e um cenário internacional marcado pela ascensão do nazifascismo e a política da IC de frente popular, alguns setores do movimento tenentista cada vez mais descontentes com o varguismo e diversos intelectuais democratas estimulam a criação da Aliança Nacional Libertadora (ANL), no final de 1934. Embora, de início, dentro do próprio PCB houvesse resistência à ANL e um medo de que o partido se dissolvesse na frente, ao longo de 1935, o PCB abraça a construção da ANL como central na sua política com vistas à edificação de uma frente nacional antifascista, anti-imperialista e anti-feudal.
O estatuto da ANL foi aprovado em 12 de março de 1935 e dizia que a frente era “uma associação constituída de aderentes individuais e coletivos, com o fim de defender a liberdade e a Emancipação Nacional e Social do Brasil”. O lançamento oficial da ANL aconteceu num grande comício realizado no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, e Prestes, sob grande aclamação, foi eleito presidente de honra da ANL (VIANNA, 2007, p. 160).
Apenas dois meses após a fundação, a ANL já tinha 1.600 organizações de base pelo Brasil, funcionava em 17 estados e mobilizava milhares de pessoas. No lado oposto, a Ação Integralista Brasileira dirigida por Plínio Salgado (1895-1975), também estava fortemente organizada, mobilizando outras milhares de pessoas, gozando de simpatias e apoios em alguns setores da classe dominante, camadas médias, Forças Armadas e classes populares.
É fundamental para os objetivos da nossa reflexão analisar o programa político da ANL e seu papel na formação da estratégia democrático-nacional. No “Programa do Governo Popular Nacional Revolucionário” de 1935 da ANL, é dito, antes de tudo, que a ANL não é uma simples máscara do PCB, mas uma frente única nacional contra o imperialismo estrangeiro e o fascismo. Em seguida, o documento afirma que é necessário um governo baseado no povo em armas com a exclusão, somente, dos “agentes imperialistas e da maioria insignificante que os segue”.
Mesmo defendendo o povo em armas, a ANL deixa claro que seu objetivo não é um “governo de operários e camponeses somente”, mas um governo no qual estejam representadas “todas as camadas sociais” do país. A burguesia nacional “pelos seus elementos realmente anti-imperialistas e antifascistas” também participará do governo que é uma “frente única de todos os brasileiros”. Ao mesmo tempo, o Programa diz que não irá liquidar a propriedade privada dos meios de produção e nem tomará sob seu controle as fábricas e empresas nacionais. O Programa defende que o Governo Nacional Revolucionário, dando início ao desenvolvimento livre das forças produtivas, expropriará apenas os pontos estratégicos da economia nas mãos do imperialismo.
Em seguida, o Programa apresenta uma série de reivindicações de interesse dos trabalhadores (como jornada de trabalho de oito horas, férias anuais remuneradas, licença maternidade, seguro social para os sem trabalho, salário igual para trabalho igual visando às mulheres trabalhadoras, etc.) e propostas para atrair a pequena-burguesia, como diminuir o imposto sobre o pequeno comércio, reduzir fretes, impostos sobre bens de amplo consumo (da chamada indústria leve, tradicionalmente, no período, de capital de menor porte).
No campo, o documento garante que só serão expropriados os proprietários rurais feudais, aliados diretos do imperialismo na compreensão dos dirigentes da ANL e PCB, e promete acabar com toda “submissão medieval ao grande proprietário, assim como com todas as contribuições feudais ao senhor”, mas os proprietários capitalistas de terras não vão ser expropriados, embora tenham que cumprir a legislação social no campo e a posse da terra será garantida a todos que nela queiram trabalhar[11].
Em 5 de julho de 1935, Prestes lança o manifesto Todo o poder à Aliança Nacional Libertadora. Nesse documento, os elementos básicos do Programa são repostos, quando Prestes, por exemplo, classifica o nosso país como “semicolonial e semifeudal”. O fundamental é que Prestes liga o programa da ANL a toda uma longa tradição de luta e resistência, desde o tenentismo e as diversas lutas das primeiras décadas do século XX, até a própria resistência da juventude no levante paulista de 1932 – o que, diga-se, é bastante questionável e problemático.
Cabe destacar também que Prestes avança numa compreensão nacional-popular da história brasileira, dando concretude maior ao conceito de povo brasileiro, quando diz:
“Com a Aliança estarão todos os homens de cor do Brasil, os herdeiros das tradições gloriosas dos Palmares, porque só com ampla democracia de um governo realmente popular será capaz de acabar para sempre com todos os privilégios de raça, de cor ou de nacionalidade e dar aos pretos, no Brasil, a imensa perspectiva de liberdade e igualdade, livres de quaisquer preconceitos reacionários, pela qual lutam com denodo há mais de três séculos” (PRESTES, 2012 [1935], p. 138)
Conclui o líder da ANL com essas palavras, fazendo o chamamento à revolução e a derrubada do governo Vargas:
“Todos nós, que estais unidos pelo sofrimento e pela humilhação, em todo o Brasil! Organizai nosso ódio contra os dominadores, transformadores na força irresistível e invencível da Revolução Brasileira! Vós que nada tendes a perder e a riqueza imensa de todo o Brasil a ganhar! Arrancai o Brasil das garras do imperialismo e de seus lacaios! Todos à luta pela libertação nacional do Brasil!
Abaixo o fascismo! Abaixo o governo odioso de Vargas!
Por um Governo Popular Nacional Revolucionário!
Todo o poder à Aliança Nacional Libertadora!” (Idem, p. 139)[12].
Note que, do ponto de vista de compreensão do Brasil do PCB e aliados, assim como no começo dos anos 20, o Brasil é entendido como: a) um país semifeudal e semicolonial com um lugar subordinado na cadeia imperialista global; b) o latifúndio, chamado de feudal ou semifeudal, era o setor mais importante da classe dominante interna e o principal aliado do imperialismo; c) imperialismo e seus aliados antinacionais, na atual etapa da revolução, constituem os principais inimigos, assumindo a questão nacional a centralidade da estratégia revolucionária dos comunistas; d) a burguesia industrial, embora nunca chamada a ser a força dirigente da revolução nacional, tinha um papel importante e deveria se aliar com os trabalhadores do campo e da cidade; e) a forma de chegada ao poder, naquele momento, deveria ser pelas armas, dada a tendência a compreender o varguismo como fascista e o Brasil como ausente de um regime democrático-burguês.
Esses elementos são importantes de serem destacados porque terão uma marca indelével na cultura política do PCB e da esquerda brasileira durante os 30 anos seguintes. No final de 1935, o PCB e Prestes avaliavam que o Brasil vivia uma situação pré-revolucionária e que vastos setores das Forças Armadas iriam aderir a um levante armado antifascista. A tentativa de tomada do poder não foi decidida pela Internacional Comunista em Moscou, mas, fundamentalmente, foi uma decisão do PCB enquanto força dirigente da ANL.
O levante revolucionário antifascista de 1935, chamado pela direita de “Intentona Comunista”, começou na capital do Rio Grande do Norte, em 23 de novembro de 1935, com o levante do 21° batalhão, que tomou o batalhão de polícia e a cidade de Natal, depois de quase um dia inteiro de combates. Foi formado o Comitê Popular Revolucionário de Natal e um governo provisório. Em 24 de novembro, começa o levante em Recife. Em Recife não houve o mesmo êxito temporário de Natal, estando os revolucionários em situação muito mais difícil.
Na madrugada do dia 27, começa o levante no Rio de Janeiro, com intenção de ajudar os revolucionários no Nordeste. Prestes liderou a tentativa de levante do 3° RI e a Escola de Aviação no Rio de Janeiro. As tropas do general Dutra conseguiram rapidamente derrotar os aliancistas. Com a derrota no Rio, as dificuldades em Recife, o Levante de 1935 estava derrotado. Em seguida, o Governo Vargas efetuou uma série de prisões em massa na casa dos milhares e Prestes, depois de uma perseguição de 40 dias, é preso junto com sua companheira, a militante comunista Olga Benário (1908-1942).
Após a repressão brutal aos comunistas, o governo Vargas busca acabar com a política de massas no Brasil. Reprime também os integralistas e outros partidos (como a Frente Negra Brasileira), institui um firme controle estatal sobre os sindicatos, persegue todos os partidos políticos, busca matar a diversidade de aparelhos de hegemonia da “sociedade civil” (preservando, é claro, a liberdade de atuação dos aparelhos da burguesia). A utopia varguista com o Estado Novo era criar um pacto de classe onde, supostamente, todos ganhavam, e para isso a política e o conflito de classes tinham que ser anulados.
Em paralelo ao fechamento do regime varguista, prossegue o crescimento das cidades e dos operários no conjunto da população brasileira e dos setores industriais. No final de 1945, quando Vargas é derrubado por um golpe militar expressando contradições internas do projeto no governo e no clima do fortalecimento das forças democráticas no contexto de resistência antifascista mundial, o Brasil era um país mais urbano-industrial, com maior complexidade na sua estrutura de classes, ampliação das camadas médias e crescimento quantitativo do proletariado.
Com a derrubada do governo Vargas, começa um breve período de democracia burguesa no Brasil e o PCB aparece como um grande partido de massas. Mesmo com toda repressão, a memória das ações de massa da BOC e especialmente da ANL não foram apagadas. Aliado a isso, o próprio desenvolvimento capitalista dependente aumentou a base de massas potencial para a mensagem dos comunistas.
Na eleição geral de 2 de dezembro de 1945, o PCB, pela primeira vez na história, apresenta-se para um processo eleitoral com sua cara própria, sem ser escudado em alguma frente mais ampla. O candidato à presidência do PCB, Yedo Fiúza, teve quase 600 mil votos (10% dos votos), foram eleitos 14 deputados federais e Luís Carlos Prestes se tornou o senador mais votado da história do país (naquele momento histórico), com 160 mil votos. O PCB ainda conseguiu filiar 2% do eleitorado brasileiro.
Esse período de legalidade para os comunistas durou pouco. Em 7 de maio de 1947, depois do PCB tocar uma forte batalha judicial e popular em defesa da sua legalidade, o partido é posto na ilegalidade, seus militantes tem seus cargos cassados e é desatada mais uma onda de repressão aos comunistas. A despeito de toda essa repressão, na entrada dos anos 50, o PCB, como maior expressão organizativa da classe trabalhadora no Brasil, já tinha anos de acúmulo político, passado por diversas formas de atuação de massa, a experiência de tentativa de tomar o poder e de tornar-se um partido de massas de dimensão nacional com presença em praticamente todos os centros urbanos do país, vastas áreas rurais e formando quadros políticos nos mais diversos setores da sociedade.
O IV Congresso do PCB, realizado em 1954, marca a tentativa do partido de sintetizar toda sua experiência histórica e expor, pela primeira vez, uma robusta análise com pretensões totalizadoras do Brasil – em suma, o PCB, forma sua imagem do Brasil e os fundamentos teóricos precisos da estratégia democrático-nacional.
A análise desse momento fundamental na afirmação da estratégia democrático-nacional e de alguns dos seus principais intelectuais formadores, assim como a atuação político-prática da classe trabalhadora, será o objeto de atenção da próxima parte deste ensaio.
Em busca da nação: nacionalismo, luta de classes e o erro fértil do PCB
Como tratamos na seção anterior deste artigo, depois de mostrar uma incrível força de massas, o PCB foi posto na ilegalidade. A reação do partido foi expressa em um famoso documento: o Manifesto de Agosto de 1950. Esse documento é importante porque mostra a flexibilidade tática contida na estratégia democrático-nacional. O contexto de sua escrita, para além da cassação do registro legal dos comunistas e da intensificação do anticomunismo a nível interno, era a “Guerra Fria” e o início da Guerra contra a Coreia desensacada pelos Estados Unidos.
A Guerra Fria é um nome genérico dado ao processo de enfrentamento de âmbito mundial entre as forças do capital, comandadas pelos Estados Unidos, e as forças do socialismo, da luta anticolonial e do nacionalismo popular, guiadas pela União Soviética, mas não reduzidas a ela, dado o caráter tendencialmente policêntrico dos movimentos anticapitalistas (ruptura da Iugoslávia com a URSS; em seguida ruptura entre China e URSS; postura de independência da Coreia Popular; protagonismo cubano nas lutas anticoloniais, etc.). Esse momento da história expressou uma agudização da luta de classes a nível mundial e uma rápida mudança do mundo em todos os quadrantes: desde o fim dos impérios coloniais clássicos, passando pela construção dos Estados de bem-estar social na Europa até a ampliação das experiências socialistas pelo globo.
Nesse contexto, o PCB afirma que o governo Dutra avança no “caminho do fascismo e da ditadura aberta”, considera que o país passa por um processo de colonização e que os monopólios anglo-americanos já controlam todos os setores fundamentais da nossa economia (sem oferecer qualquer dado quanto a isso), e critica o processo eleitoral que se avizinha, taxando todos os candidatos ou de serviçais do entreguismo ou de fantoches do fascismo. Sobre Vargas, personagem central nos anos 50, diz o Manifesto:
“E é fácil de imaginar o que significaria a volta ao poder do velho tirano, do latifundiário Getúlio Vargas, pai dos tubarões dos lucros extraordinários, que já demonstrou em quinze anos de governo seu ódio ao povo e sua vocação para o fascismo e para o terror sangrento contra o povo.”
A avaliação dos comunistas de que o Brasil caminhava para uma espécie de fascismo colonial-feudal-burguês tem impacto também na análise da burguesia nacional, antes chamada a ser uma das aliadas na frente de libertação nacional. Sobre a classe dominante interna como um tudo, e também sobre a burguesia industria, diz o Manifesto:
“Mas, para os senhores das classes dominantes – os grandes comerciantes e industriais, os banqueiros e latifundiários – não há outra saída para os problemas brasileiros senão através dessa submissão crescente ao dominador americano e, quando pedem dólares, pedem também a intervenção estrangeira no país, na esperança de conseguirem assim prolongar sua dominação sobre o povo, impedir que se realizem as profundas modificações já inadiáveis e indispensáveis no livre desenvolvimento econômico, social e político de nossa pátria. Classes caducas e impotentes, incapazes de resolver qualquer problema nacional, de tirar o país do atraso crônico em que parece.”
Essa condenação da classe dominante se repete durante todo o Manifesto. Os comunistas apontam para um rompimento da política de aliança com a burguesia industrial da ANL, condenando essa classe como incapaz de “resolver qualquer problema nacional” e, no programa econômico do Manifesto, defende a “completa nacionalização das minas, das quedas d’água e de todos os serviços públicos. Nacionalização dos bancos e empresas de seguro, assim como de todas as grandes empresas industriais e comerciais de caráter monopolista ou que exerçam influência preponderante na economia nacional”. Soma-se a isso a noção de expropriar apenas a burguesia ligada aos monopólios estrangeiros, preservando o capital nacional.
A despeito disso, o programa continua nacional-libertador. E a linguagem patriótica da nação contra o imperialismo, colonizadores e entreguistas (agora com forma fascista) se mantém. O documento, por fim, chama à derrubada armada do governo brasileiro, à instalação de um governo popular e democrático, à formação de um Exército Popular de Libertação Nacional (uma linguagem política bem próxima da de Mao Zedong) e conclama, em diversos momentos do Manifesto, à resistência às manobras de envolvimento do Brasil na Guerra contra a Coreia, negritando a defesa da paz[13].
A linha política do Manifesto enfrentou muitas dificuldades para ser aplicada. Isso por três motivos básicos: a) o PCB não tinha força política para comandar uma operação armada de tomada do poder e a apresentação dessa tática foi irreal e irrealizável; b) o Partidão não podia simplesmente forçar uma radicalização nos seus diversos ramos de atuação, como sindicatos, conselhos de categoria e associações culturais, sob pena de perder trabalhos de massa importantes em andamento. Na prática, os militantes do partido tendiam a flexibilizar a linha do Manifesto, quase que a ignorando em muitos aspectos; c) a própria realidade colocou problemas à linha política do partido, pois logo após denunciar a burguesia como incapaz de resolver qualquer problema nacional, o movimento nacionalista parecia atingir seu auge, como demonstram a campanha “O petróleo é nosso” e a posterior criação da Petrobras (3 de outubro de 1953)[14].
Em 1954, entre 7 e 11 de novembro, aconteceu o 4° Congresso do PCB. Como já afirmamos, os congressos anteriores (I Congresso, 1922; II Congresso, 1925; III Congresso, 1929), não formularam uma imagem ou teoria do Brasil robusta e consistente. O IV Congresso do PCB faria isso. Ainda é necessário considerar que a despeito da repressão, constante desarticulação de bases do PCB e a concorrência de outras forças política, como os trabalhistas do PTB, é o primeiro congresso dos comunistas como um partido de massas, enraizado nos explorados e oprimidos.
Na estrutura de debates do Congresso, são tematizados aspectos de agitação e propaganda, eleições, luta pela independência nacional, questão da paz, questão agrária e organização dos camponeses, organização da juventude (a partir da União da Juventude Comunista, a UJC), organização das mulheres, métodos de trabalho e direção, formação de quadros, formação política, finanças e, é claro, a caracterização da luta de classes no Brasil e no mundo, o caráter da revolução, estratégia, tática, alianças, etc.
O Informe de Prestes ao Congresso é uma excelente síntese da estratégia política hegemônica na classe trabalhadora naquele momento. O informe em si não era produto da elaboração teórica individual de Prestes, mas refletia a própria cultura política e teórica geral do partido – desde as bases até as instâncias superiores de direção, como o Comitê Central (órgão máximo de direção de um partido comunista).
Preste começa destacando o crescimento do número de greves, organização de sindicatos, aumento do movimento de massas. Pontua que as massas trabalhadoras conseguiram manter a paz e não se envolver na ação imperialista dos EUA na Coreia, e que cada vez mais crescia um sentimento anti-imperialista contra os Estados Unidos e seu domínio sobre o Brasil. Esse anti-imperialismo tem profundas raízes no Brasil, como fica claro pelo rápido traçado histórico do dirigente comunista:
“O povo brasileiro, que se livrou do jugo português em 1822, conquistando, assim, sua independência política e a condição de nação soberana no concerto mundial das nações, não conseguiu, no entanto, libertar-se dos restos feudais e dos grandes latifúndios, realizar as tarefas da revolução burguesa. Até 1888 a escravidão negra teve existência legal. A queda da monarquia e a Proclamação da República, se bem que tenham constituído elementos de progresso na evolução política do país, não modificaram no fundamental o caráter semifeudal e semi-escravista da sociedade brasileira. Os senhores de escravos e, em seguida, os latifundiários e grandes capitalistas — grandes comerciantes e usurários — que governavam o país, facilitaram a penetração do capital estrangeiro e, consequentemente, a transformação do Brasil em semicolônia, em país dependente das grandes potências capitalistas. Através do controle das finanças e da economia, dos assuntos políticos e até militares, as grandes potências imperialistas passaram a dominar o Brasil ao mesmo tempo que, para oprimir o povo, apoiavam a minoria reacionária, sustentavam os latifundiários na conservação da sociedade semifeudal e semi-escravista. Sob esta dupla opressão, dos imperialistas e dos restos feudais, o povo brasileiro — especialmente os trabalhadores das cidades e do campo — tornou-se, e torna-se, cada vez mais pobre, sofre duramente e é privado de direitos políticos, vive no atraso, na miséria e na ignorância.”
A “miséria, ignorância, privação de direitos políticos, etc.” decorre dessa forma de desenvolvimento histórico. Contudo, Prestes sublinha que a partir do século XX “desenvolveu-se no país a indústria nacional e surgiu a burguesia brasileira como nova classe social, em boa parte ligada aos latifundiários e dependente dos bancos estrangeiros”; essa classe burguesa, além de ligada aos latifundiários e ao capital estrangeiro, ainda é “relativamente fraca”, enquanto “que a classe dos proletários é relativamente numerosa e seu peso específico relativamente importante”. E em seguida diz que a imensa maioria do povo brasileiro é composto por massas camponesas oprimidas pelo latifúndio e que não possuem terras. Já nas cidades, “parcela considerável da população” (não tenta precisar o quanto), é de “artesãos, empregados, pequenos comerciantes e industriais, intelectualidade e funcionalismo público, em processo de pauperização”.
Dessa compreensão da estrutura de classes do Brasil, avança no raciocínio e diz que “as principais contradições que, no momento atual, se verificam no Brasil são as que contrapõem os imperialistas norte-americanos à maioria esmagadora da nação e, simultaneamente, os restos feudais ao povo brasileiro”. Em seguida, caracteriza em detalhes o caráter da revolução brasileira e, portanto, da nossa formação social:
“A revolução brasileira em sua etapa atual é, assim, uma revolução democrática popular, de cunho anti-imperialista e agrária antifeudal. É uma revolução contra os imperialistas norte-americanos e contra os restos feudais e tem por objetivo derrocar o regime dos latifundiários e grandes capitalistas. Libertando o Brasil do jugo dos imperialistas norte-americanos e dos restos feudais, desloca, simultaneamente, o país do campo da guerra e do imperialismo para o campo da paz, da democracia e do socialismo.”
Note: a revolução não é socialista, mas com ela o Brasil estará no campo do socialismo e da paz, descolando-se do imperialismo estadunidense. Seu conteúdo não é proletário, isto é, socialista, mas Prestes negrita que só a classe trabalhadora, organizada a partir do seu partido comunista, é que tem capacidade de dirigir e avançar na revolução nacional. Existe uma preocupação em manter a direção do movimento nacionalista nas mãos dos trabalhadores.
A revolução nacional, contudo, deveria centrar-se apenas no inimigo central: o imperialismo estadunidense e seus aliados – setores da burguesia e latifúndio –, mas evitar expropriar outros capitais atuantes na economia brasileira, como o francês e o alemão ocidental, aproveitando as contradições interimperialistas para derrotar o inimigo principal – como ensina Stálin, segundo Prestes – e o próprio aporte desses capitais no desenvolvimento da indústria nacional. Aliado a isso, diz no informe:
“No que concerne às relações com a burguesia nacional, o Programa do Partido não só não ameaça seus interesses como defende suas reivindicações de caráter progressista, em particular o desenvolvimento da indústria nacional. Essa posição é acertada, decorre de uma justa compreensão do caráter da revolução brasileira em sua primeira etapa, quando as necessidades já maduras do desenvolvimento da sociedade brasileira, que exigem solução imediata, são exclusivamente as de caráter anti-imperialista e antifeudal. A burguesia nacional não é, portanto, inimiga.”
Prestes afirma que a burguesia nacional é dividida em dois grupos. O primeiro, ligados aos monopólios estrangeiros e ao latifúndio, embora insignificante em tamanho numérico, é poderosíssima; e o segundo, maior na composição dessa classe, mas menor em poder político e econômico, está ligado à indústria nacional. Esta necessita, diz o dirigente do PCB, de ampliação do mercado nacional, proteção frente à concorrência imperialista, possibilidades de desenvolvimento (crédito, desenvolvimento tecnológico, compras governamentais direcionadas etc.). Dado esse “interesse objetivo” em um programa de desenvolvimento econômico nacionalista e anti-imperialista, essa burguesia poderá se unir ao proletariado na revolução.
A revolução com a burguesia nacional, no IV Congresso do PCB, ganha contornos mais claros quando o líder comunista afirma que o governo surgido da Revolução não “será uma ditadura do proletariado. Mas não será também uma ditadura da burguesia”. O que será, então?
“Graças à atual correlação de forças de classes no mundo e ao papel dirigente da classe operária na revolução brasileira, irá ela adiante da revolução democrático burguesa, criará um poder de transição para o desenvolvimento não capitalista do Brasil. Por sua essência de classe, o regime democrático popular será uma ditadura das forças revolucionárias antifeudais e anti-imperialistas, será efetivamente o poder do povo, da maioria esmagadora da nação — operários, camponeses, pequena burguesia e burguesia nacional — sob a direção da classe operária e do seu Partido Comunista. A hegemonia do proletariado é indispensável à vitória da revolução e à instauração do novo regime, cuja força residirá fundamentalmente na aliança operário-camponesa.”[15]
Antes de entrarmos no debate sobre a burguesia nacional, o nacionalismo como “erro fértil” do PCB e a questão do desenvolvimento capitalista no país, cabe negritar algo importante e abrir uma nota um pouco ampla sobre taticismo e o problema do stalinismo.
Como é perceptível, o Manifesto de Agosto e o programa do IV Congresso, com menos de cinco anos de distância, contêm diferenças expressivas. No primeiro, a burguesia como um todo é apontada como incapaz de cumprir qualquer tarefa nacional e a direção da revolução é colocada exclusivamente nas mãos do proletariado e seus aliados. No segundo, não só o papel da burguesia é destacado, ainda que sem a direção política, como ela é mostrada com “interesses objetivos” na revolução nacional-libertadora. No Manifesto é afirmado que o Brasil estava à beira do fascismo, e se despreza por completo as eleições, já no IV Congresso não só a eminência do fascismo some, como o PCB, a partir de Carlos Marighella (1911-1969), aponta as tarefas para campanha eleitoral de 1955.
Nenhuma palavra sobre luta armada iminente ou a formação do Exército Popular de Libertação Nacional. No Congresso do PCB, embora a autocrítica da linha do Manifesto de Agosto tenha sido feita, não se realiza um verdadeiro balanço das fontes teóricas que levaram aos erros de análise do período anterior. A transição entre uma linha política a outra acontece sem que se entenda o plano de fundo da formulação errada e como não repetir o erro. Aqui entra de verdade o problema do chamado “stalinismo”.
Como já vimos, não concordamos com a narrativa muito popular entre os acadêmicos de esquerda e organizações socialistas de colocar toda culpa pelos problemas e erros do marxismo no século XX em um genérico “stalinismo”. Esse tipo de análise, além de não ajudar a entender nada, serve apenas para legitimar outras correntes do marxismo – como os trotskistas. Aliado a isso, a tendência de desprezar as dinâmicas nacionais conjunturais e de longa trajetória histórica de cada formação social e tomar Moscou como uma espécie de princípio explicativo para tudo é um equívoco.
Nesse quadro geral, sem qualquer precisão teórica e rigor analítico, também não se define o que é o stalinismo criticado. Se por stalinismo se compreende o período histórico do governo de Josef Stálin (1878-1953) à frente da União Soviética, não faz muito sentido falar em stalinismo fora da URSS e Leste Europeu; se as referências forem às disputas no PCUS, expurgos, fuzilamentos, rupturas e afins, também não tem sentido tratar como um fenômeno mundial – afinal, embora com consequências em todo movimento comunista, os Processos de Moscou, por exemplo, aconteceram na União Soviética, e rachas e expulsões na história dos partidos operários não foram uma criação da URSS staliniana.
A crítica ao marxismo difundido pela União Soviética, famoso pelos manuais da sua academia de ciências, embora necessária, também não pode virar uma caricatura[16]. No período da II Internacional, o processo de simplificação do marxismo também aconteceu, e fora da tradição dos partidos marxistas-leninistas de inspiração soviética o florescimento do marxismo não foi muito melhor. A crítica ao stalinismo também foi muito usada em disputas no campo intelectual para estigmatizar e derrotar adversários. Nelson Werneck Sodré, por exemplo, passou anos sendo um dos pensadores mais importantes desse país,[17] e quando seus adversários buscaram acabar com sua influência, usavam rótulos fáceis como “stalinista”. Como bem disse um pensador italiano”
“A demonização de Stálin, elevado à reencarnação do Lúcifer no Relatório Kruschev [no XX Congresso do PCUS], não tem por objeto o Stálin real, que historicamente existiu, mas a sua representação caricatural. Depois acriticamente recebida e repetida no Ocidente, elevada a dogma, enquanto particularmente funcional à luta anticomunista” (GIACOMINI, 2019, p. 39)[18]
Dito isso, compreendemos como stalinismo, enquanto fenômeno mundial fora da URSS, a tendência ao taticismo e suas consequências derivadas como o empobrecimento do marxismo e dinâmicas de monolitismo teórico. A estratégia é o objetivo final e a tática os diversos “passos” até que se alcance o objetivo estratégico. Teoricamente, a estratégia conduz a tática, e a análise teórica – o fundamento de ambos – deve ser usada constantemente para corrigir rumos equivocados. O taticismo é uma inversão dessa relação, onde as diversas táticas vão se sucedendo sem coerência teórica e com a estratégia; e a estratégia torna-se uma justificativa a posteriori para as diversas ações políticas – tudo isso no quadro de um empobrecimento geral do marxismo e de relativa burocratização das estruturas de organização política.
O conteúdo da teoria fica restringido por sua instrumentalização, transformando em práticas acessórias os processos de busca do conhecimento e de pesquisa. A teoria, assim, corre o risco de perder o seu caráter de cientificidade, quando a ausência de críticas às premissas teóricas utilizadas na política passa a ser um pressuposto. As diversas disputas no PCUS, especialmente após a morte de Lênin, a confrontação fratricida entre o grupo que dirigiu a revolução – sendo a disputa entre Trotski e Stálin a mais famosa, mas de modo nenhuma a única –, o cerco da União Soviética, as diversas viradas na política interna (como a passagem da Nova Política Econômica, a NEP, até a coletivização forçada e a industrialização acelerada) e a perseguição a intelectuais, artistas e outros pensadores, especialmente a partir da segunda metade de 1930, criaram uma dinâmica de mudanças teóricas, táticas e estratégicas bruscas, não debatidas sob nenhum fundamento, e naturalizadas como se tudo sempre tivesse sido assim.
Era comum nos tumultuados anos 30 afirmar, por exemplo, que a Inglaterra e a França não se diferenciavam, em substância, do nazifascismo, dado seu domínio colonial e, pouco tempo depois, falar o exato contrário sem explicar a radicalidade da mudança; ou então, em 1933 um líder ser considerado uma grande referência do proletariado e no ano seguinte, um traidor excomungando. O PCUS construiu (e ajudou a exportar para outros partidos comunistas) uma cultura política com tendência a ver a ciência como uma questão de segurança de Estado, a teoria como justificação da prática, as obras de Marx, Engels e Lênin como a fonte de legitimidade da política do momento. Em suma, uma prática teórico-política taticista.
György Lukács, no seu clássico “Carta sobre o stalinismo”, coloca muito bem o problema teórico-político:
“Começo por uma questão de método, aparentemente muito abstrata: a tendência staliniana é sempre a de abolir, quanto possível, todas as mediações, e a de instituir uma conexão imediata entre os fatos mais crus e as posições teóricas mais gerais. Precisamente aqui, aparece claramente o contraste entre Lênin e Stálin. Lênin distinguia com clareza entre a teoria, a estratégia e a tática, estudando-as sempre com o maior cuidado e levando em conta todas as mediações existentes entre elas e que frequentemente as relacionam de modo muito contraditório (…) A autoridade pessoal de Lênin resultara das grandes ações e importantes realizações teóricas a ele devidas, tornando-se algo que chamaríamos de ‘natural’; Stálin, que não dispunha da mesma autoridade que Lênin, achou um modo de dar uma justificação imediatamente evidente de todas as suas medidas, apresentando-se como a consequência direta e necessária da doutrina marxista-leninista. Para conseguir isso, precisou suprimir todas as mediações e estabelecer ligações imediatas entre a teoria e a prática. Por esta razão, tantas categorias de Lênin desaparecem do horizonte de Stálin; o próprio recuo aparece neste como um avanço” (LUKÁCS, 1977, p. 6).
Seguindo o raciocínio acima, como os “fatos” mudam muito rápido, a “teoria” vai os acompanhando, variando sem muita coerência, sempre proclamando uma fidelidade formal à estratégia. Lukács não trabalha com a visão muito difundida na atualidade de uma abordagem personalista e demonizadora de Stálin. Considera as condições objetivas que formaram o stalinismo, tratando-o como um sistema, não nega méritos prático-políticos e teóricos ao líder da URSS e desconsidera Leon Trótski como uma alternativa crível ao marxismo staliniano[19].
O importante, para os fins do debate que estamos fazendo, é que esse tipo de marxismo, esse modo de fazer política, ao mesmo tempo que serviu de matéria prima para todas as revoluções no século XX – não é demais lembrar que nunca houve uma revolução trotskista, eurocomunista, conselhista, anarcocomunista, etc. –, também foi a base de um empobrecimento e ossificação do marxismo. O PCB, como o principal partido do movimento comunista no Brasil, foi influenciado por essa cultura política e teórica – mas não esqueçamos que a assimilação dessa tradição teórico-política passa pelas mediações da particularidade da formação econômico-social brasileira.
A questão da burguesia nacional é um bom exemplo dessa dificuldade causada pela cultura marxista de influência stalinista e, paradoxalmente, é uma das explicações do que chamamos de erro fértil do PCB. O PCB oscilava com a burguesia nacional, ora considerando-a aliada indispensável, ora buscando maior afastamento, dado a própria realidade: às vezes essa classe parecia disposta a enfrentar o imperialismo e construir uma política econômica nacionalista, e outras vezes parecia totalmente acomodada ao imperialismo e a uma política econômica “antinacional”.
A teoria do Brasil do PCB, e suas táticas, oscilavam de acordo com essa aparência da realidade. Ao mesmo tempo, nessas oscilações, a estratégia nacional-libertadora, centrada na contradição imperialismo versus nação e revestida de linguagem patriótica, nunca foi abandonada nos seus fundamentos. Essa variação fazia o PCB operar a política de maneira às vezes desastrosa. Ao mesmo tempo, colocava o partido na vanguarda de uma tendência política de longo prazo na formação social brasileira e que produziu muitos frutos organizativos e políticos. Aqui comparece a noção de erro fértil. Para explicá-la, antes disso, é necessário situar bem a questão do nacionalismo na luta de classes brasileira
“Dessa forma, as concepções nacional-libertadoras adotadas pelo PCB frutificaram no Brasil graças à sua aceitação por amplos setores sociais influenciados pelo pensamento nacionalista. Se as teses citadas encontraram repercussão não só entre os comunistas, como também junto a outros setores da sociedade brasileira, isso se deveu, em grande medida, à circunstância de tais posições tenderem a convergir com os sentimentos nacionalistas amplamente difundidos na sociedade civil do país, dentre os quais se destacava a preocupação com a garantia da soberania nacional” (PRESTES, 2013, p.4).[20]
E por qual motivo amplos setores da sociedade defendiam o nacionalismo? Com a Primeira Guerra Mundial, o sistema global entra em crise. Essa crise se intensifica com a Revolução Russa, ascensão do nazifascismo, crise de 1929, fortalecimento dos Estados Unidos e aumento dos movimentos de resistência nas colônias, semicoloniais e a criação do movimento comunista mundial. As estruturas tradicionais de dominação passaram a perder eficácia. Em toda a América Latina, os níveis de contestação social aos sistemas de dominação instituídos crescem e mudanças importantes se processam, como o enfraquecimento do capital inglês nas economias do continente.
Nesse contexto de desorganização do sistema mundial, algo já expresso a partir da Primeira Guerra, tínhamos efetivamente setores da burguesia industrial lutando por seus interesses e defendendo políticas econômicas com algum conteúdo nacionalista e especialmente protecionista. Pedro Fassoni Arruda mostra em sua pesquisa sobre o capitalismo dependente e relações de poder no período da República Oligárquica (1889-1930) que, “os industriais se queixavam do comportamento dos agricultores [latifundiários] e também do capital estrangeiro, que não hesitavam em denunciar supostos privilégios, ao mesmo tempo em que buscavam preservar os seus próprios” (ARRUDA, 2012, p. 347).
Esses interesses da burguesia industrial e suas contradições não explosivas com o imperialismo e o latifúndio se expressam, principalmente, na defesa de uma política econômica protecionista e uma série de modificações na política monetária e fiscal que privilegiem o crescimento da indústria. Para defender essa política econômica, os representantes do capital industrial, como Francisco Matarazzo (1854-1937), presidente do Ciesp (Centro das Indústrias do Estado de São Paulo), colocavam as necessidades da indústria como orgânicas às necessidades da nação:
“É óbvia a existência de uma absoluta correlação entre os fins almejados pelos industriais e os verdadeiros interesses da nação. O aumento da capacidade de consumo da nação representará a abertura de um formidável mercado para industriais brasileiros; elevando-se harmoniosamente o consumo e a produção aumentarão a riqueza, tratarão grandeza ao país, bem-estar e tranquilidade à população” (Idem, p. 348).
Também era possível registrar em alguns estados, como no Rio Grande do Sul, bem antes da “Revolução” de 1930, uma política econômica direcionada ao benefício do capital industrial. Nesse estado foi instituída a tributação direta e progressiva (ainda que bem tímida) e um imposto sobre a propriedade de terra; em paralelo, o setor industrial recebia isenções fiscais do governo para estimular seu desenvolvimento e também facilitação de crédito (Idem, p. 353-354).
Roberto Simonsen (1889 – 1948), intelectual, político, empresário e presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) – portanto, um intelectual orgânico da burguesia industrial –, afirmava que:
“Se no Brasil existiam tarifas alfandegárias altas, essas tarifas respondem, porém, precipuamente, antes a existências do Tesouro que intuitos protecionistas (…). Não há propriamente no Brasil política protecionista em toda a sua acepção. O que existe é uma incidência de altas tarifas onerando indistintamente variados produtos de importação, que se trate de matérias-primas, produtos manufaturados ou gêneros alimentícios. Uma política protecionista organizada para desenvolvimento das indústrias, desonera as matérias-primas, pouco grava os produtos semimanufaturados, fazendo incidir os impostos aduaneiros principalmente sobre os produtos manufaturados” (SIMONSEN apud ARRUDA, 2012, p. 357-358).
Simonsen defendia uma política que taxasse a importação de manufaturados, prejudicando os interesses dos capitais estrangeiros e a não tributação de matérias-primas, em contradição com os interesses do latifúndio agroexportador. A análise de Nelson Werneck Sodré considera a “Revolução” de 1930 como um momento de recomposição do bloco de forças no aparato estatal, onde a burguesia industrial assume maior “parcela” do poder político, sem, contudo, tornar-se hegemônica.
Sodré mostra como Vargas, assim como outros representantes orgânicos da burguesia industrial, defendia uma política protecionista e de substituição de importações e cita como exemplo trechos como esse: “devemos aceitar, como postulado cívico, o compromisso de ampliar nossas lavouras e aperfeiçoar as nossas indústrias, de forma tal que passe a ser considerado deslize de patriotismo alimentarmo-nos ou vestimo-nos com tecido ou gêneros importados” (VARGAS apud SODRÉ, 1967, p. 277).
Sodré relaciona diretamente a crise de 1929 com as mudanças a partir de 1930, quando alega que as “exportações de capitais declinavam ou desapareciam, o ritmo de produção entrava em colapso nas grandes áreas industriais e as mercadorias começavam a escassear e formas novas de concorrência apareciam” (Idem, p. 280). E completa mais à frente: “a pausa imperialista é que permite a mobilização dos recursos nacionais e sua livre aplicação, dentro da estrutura vigente” (Idem, p. 286)[21]. Esses avanços da produção industrial, durante a “pausa imperialista”, são expressos nos números apresentados pelo autor: “a produção industrial brasileira cresceu em cerca de 50%, entre 1929 e 1937, e a produção primária para o mercado interno cresceu em mais de 40% no mesmo período” (Idem, p. 291).
Sodré também registra que o processo político liderado por Getúlio Vargas entre 1930-1945 não rompeu com o latifúndio, embora tenham ocorrido atritos e contradições. Foi uma reformulação do bloco no poder e, portanto, das estruturas do Estado, mas sem excluir o latifúndio e muito menos ameaçando seus interesses fundamentais. O historiador resume assim a situação:
“As alterações que todos esses números denunciam decorreram muito do fato de que ter a crise de 1929, como consequência, a Revolução de 1930, que levou ao poder componentes novos, permitindo remodelação do aparelho do Estado de sorte a servir melhor aos interesses da burguesia em franca ascensão. No conjunto, a legislação que aparece com a Revolução se destina a permitir desenvolvimento muito mais livre das relações capitalistas. ‘O aparelho estatal – escreveu Wanderley Guilherme dos Santos – sofrerá remodelação completa e as transformações administrativas se sucedem num ritmo impressionante, ao lado de transformações substanciais na legislação econômica, refletindo os novos interesses instalados na máquina governamental’” (Idem, p. 295).
Como se nota, existia a defesa de uma política nacionalista não radical e protecionista por parte de setores da burguesia durante a Republica Oligárquica, e que se fortalece no período varguista de 1930-1945 – o que não significa uma ausência de contradições entre o governo Vargas e a burguesia industrial. O erro do PCB foi achar que essa política protecionista setorial e o nacionalismo econômico, nunca até às últimas consequências e sempre vacilante, se traduzia na defesa de uma programa nacional-libertador de conteúdo popular, como o apoio a uma democracia [burguesa] de massas e radical distribuição de renda.
Mas voltando à nossa explicação sobre o erro fértil dos comunistas: como vimos, a linguagem nacionalista era expressa pela burguesia industrial em ascensão e, naquele momento, legitima alguns dos seus interesses de classe. O nacionalismo foi um amálgama de significados e significantes suficientemente vago para ser preenchido com conteúdo variado a depender do momento conjuntural e do interesse de tal ou qual classe.
Aliado a isso, essa linguagem nacionalista, embora fosse uma ideologia no sentido de encobrir um projeto burguês em condições históricas específicas, tinha uma materialidade concreta. Com o desenvolvimento urbano-industrial capitalista, era ampliado o papel da burocracia estatal recrutada por concursos públicos e com salários e condições de trabalho acima da média dos trabalhadores no geral. As camadas médias da sociedade beneficiavam-se muito disso, e o nacionalismo significava mobilidade social, aumento do padrão de vida, status social. Os trabalhadores, especialmente aqueles em condição de miséria absoluta nos centros urbanos e os migrantes da zona rural, conseguiam empregos com salários e condições de trabalho um pouco melhores na indústria e uma baixa, mas existente, possibilidade de mobilidade social.
Os latifundiários, embora enfraquecendo sua hegemonia no comando do Estado, não foram afetados no fundamental e continuavam prosperando com seus interesses muito bem representados no sistema de dominação política. Os grandes excluídos do pacto de classe varguista foram os camponeses. A Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) não chegou no campo; os salários, condições de trabalho e existência de coação extraeconômica, trabalho análogo à escravidão e formas de “remuneração” não monetárias (pagamento com alimentos, parcerias, trabalho de meeiros, etc.) foram mantidas no essencial.
O nacionalismo era a grande gramática de todas as reivindicações e interesses setoriais presentes na formação social brasileira. É claro que nem todos eram adeptos do nacionalismo e o liberalismo oligárquico mantinha força orgânica em várias frações de classe e grupos sociais.
Getúlio Vargas percebia a importância do nacionalismo como força política. Fundou o PSD e o PTB, concebendo o primeiro partido como um aparelho político para oligarquias locais, gerentes do estado burguês e setores da burguesia e o segundo como um partido para trabalhadores e setores médios fundamentado no nacionalismo. Mas o Vargas que assumiu o governo em 1951 não contava mais com um sistema de dominação em crise como aliado de um projeto modernizador de pacto de classe dirigido por um Estado com alto grau de autonomização. Vargas descobriu que seu nacionalismo, para se manter no poder, tinha que apelar cada vez mais para o elemento popular, e a relação orgânica entre varguismo e o capital industrial era muito mais frágil que antes. A despeito da conhecida habilidade do presidente para acordos e compromissos, não se tratava mais da habilidade do líder, mas de uma mudança objetiva no sistema mundial e no capitalismo brasileiro[22].
Vargas e associados não conseguiram lidar com essa mudança fundamental. O varguismo ofereceu um presente às diversas frações da classe dominante interna: abafar a política de massas que tinha surgido no Brasil nos anos 30 – cujos maiores símbolos, como já falamos, foram a ANL e os integralistas de Plínio Salgado. Já o varguismo do pós-1945 precisava da política de massas. Uma política sem dúvidas crivada de elementos burocráticos, conciliadores, reformistas – mas política de massas. E a classe dominante, mesmo alguns setores da burguesia industrial com inclinações varguistas, tinham baixa tolerância com as massas populares participando da política.
Quando Getúlio Vargas se mata buscando evitar um golpe de estado iminente contra seu governo, em agosto de 1954, ele deixa sua famosa Carta Testamento. Vale a pena citar um trecho desse documento histórico:
“Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculizada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre.”[23]
A linguagem política é plenamente nacionalista, e de um nacionalismo de apelo popular e anti-imperialista. Getúlio, a maior figura política do país, apresenta nesta carta um programa político com muitas semelhanças ao dos comunistas. Com o suicídio de Getúlio, naquele momento visto como um grande líder do povo e símbolo do enfrentamento aos entreguistas, não só políticos da UDN e sedes de grupos de mídia anti-Getúlio foram ameaçados e atacados pelas massas enfurecidas, como também sedes do PCB[24]. Esse episódio, poucos meses antes do IV Congresso do PCB, foi um dos princípios explicativos da mudança de linha dos comunistas e de um processo de maior colaboração entre PCB e PTB de 1954 em diante – colaboração sempre tensionada e difícil.
Por isso falamos de “erro fértil” do PCB. O partido tinha uma análise que transitava entre o insuficiente e o errado no debate sobre o desenvolvimento do capitalismo, o caráter da Revolução Brasileira, a atuação política da burguesia industrial e sua constituição histórica, política, ideológica e racial, e no limite não compreendia tão bem o papel do Brasil na divisão internacional do trabalho ao deslizar entre termos como semicolonial e dependente quase que como sinônimos. A despeito disso, o PCB tinha uma produção de excelente qualidade – nada próximo do acúmulo existente hoje na esquerda brasileira – sobre trabalho de base, trabalho comunitário, finanças, agitação e propaganda, trabalho cultural, recrutamento, sindicalismo, trabalho político nas forças armadas, etc.
A boa atuação prática, combinada com uma boa inserção de massas possibilitava ao partido, enquanto vanguarda organizada da classe trabalhadora, captar o movimento histórico das diversas classes de confluência para o nacionalismo como linguagem política e universo simbólico dominante. O PCB não só seguiu a corrente do nacionalismo, como a constituiu, potencializando-a e ao mesmo tempo colhendo os frutos de adesão de massas por fazer parte dessa corrente.
O erro estratégico dos comunistas ajudou nas diversas ações táticas. Por isso chamamos de erro fértil. O problema foi a não percepção do limite dessa convivência entre erro teórico e estratégico e acerto tático. Os limites disso, e a razão da chegada nesse limite, vão ser debatidos à frente.
A nação faltou ao encontro: revolução, contrarrevolução e golpe empresarial-militar de 1964
A história da derrota da classe trabalhadora guiada pela estratégia democrático-popular é uma transição do épico ao trágico. A partir dos anos de 1950 até 1964, a classe trabalhadora do campo e da cidade viveu um dos melhores momentos na história do país. Uma breve reconstituição desse cenário é importante.
Em dezembro de 1951, o Governo Federal promoveu o primeiro reajuste do salário mínimo em oito anos – no Rio de Janeiro e São Paulo, o valor nominal do salário subiu de 380 cruzeiros para 1.200 cruzeiros. Em 1952, é retirado o “atestado de ideologia” para concorrer às eleições sindicais; nos meses seguintes, na prática, a classe trabalhadora conseguiu legalizar o direito à greve. O ano de 1952 também marca a volta do PCB para as estruturas oficiais dos sindicatos, depois de atuar por anos por fora da estrutura varguista. Em 26 de março de 1953, começa a Greve dos 300 mil em São Paulo (LEAL, 2011, p. 236).
A Greve dos 300 mil foi iniciada em março, dia 26, e terminada em abril, dia 23 (27 dias total de duração) e mobilizou trabalhadores dos setores têxteis, metalúrgicos, gráficos, vidreiros e marceneiros, com 276 empresas paralisadas na capital paulista e movimento paredista em cidades do interior, como Taubaté. Segundo o historiador que citamos, a greve conseguiu 32% de reajuste, a libertação dos grevistas presos e o compromisso de que os dias parados não fossem descontados (Idem, p. 239)[25].
Os sindicatos não só conseguiram organizar suas bases, mas também demonstrar capacidade de apresentar liderança na construção de uma vontade geral popular, pautando o custo de vida, o controle dos preços dos bens de primeira necessidade, etc. – em suma, como se falava na época: o combate à carestia. A crítica ao custo de vida fazia com que amplas camadas da população se vissem representadas pelos trabalhadores sindicalizados.
Essa greve também atraiu a simpatia dos estudantes, forjando processos de aliança operário-estudantil e de militares nacionalistas de alta patente, como o general Gentil Falcão, o general de brigada Leônidas Cardoso e o general de brigada Porfírio da Paz – greve que, cabe destacar, foi “efetivamente dirigida pelo Partido Comunista – o PCB” (Idem, p. 250).
Em 2 de dezembro de 1954, começa uma greve geral no Brasil. A greve, assim como a de 1953, defendia congelar e tabelar o preço dos produtos de primeira necessidade e alimentos, e colocava-se abertamente no interesse de todo o povo trabalhador ao proclamar, no jornal O metalúrgico, que “a luta pelo congelamento de preços é uma reivindicação sentida pela maioria do nosso povo, como: operários da indústria e do campo, trabalhadores e donas de casa, estudantes e intelectuais, comerciantes e pequenas industriais” (Idem, p. 257)[26]. Na greve geral de 1954, de acordo com Jover Telles, um milhão de trabalhadores aderiram, com 90% dos trabalhadores de São Paulo tendo paralisado suas atividades (Idem, p. 260-261).
No final de 1957, aconteceu a famosa Greve dos 400 mil. O curioso foi que na época o prefeito de São Paulo, Ademar de Barros (1901-1969), o governador Jânio Quadros, o vice presidente João Goulart e o presidente, Juscelino Kubitschek, declaram apoios e simpatias à greve, com o presidente intermediando a negociação de líderes sindicais com a Fiesp e conseguindo com que a burguesia aceitasse o compromisso de 20% de reajuste. Nessa greve, os piquetes tiveram um papel muito importante em parar fábricas, expressando um significativo envolvimento direto de trabalhadores não operários (Idem, p. 269).
A Greve dos 400 mil foi finalizada com um julgamento do Tribunal Regional do Trabalho (TRT). No dia do julgamento, cerca de 10 mil pessoas esperavam seu resultado na Praça Roosevelt, em São Paulo – além de milhares de operários, estavam lá generais reformados do Exército, advogados trabalhistas e políticos (Idem, p. 282). O TRT deliberou 25% de aumento, embora esse reajuste tenha sido reduzido para 18% após recurso da burguesia no Tribunal Superior do Trabalho (Idem, p. 285).
Em 1961, começou uma greve geral pelo décimo terceiro salário. A luta pelo décimo, ou abono de natal, remonta ao sindicalismo pré-1930, e esteve presente com força nas greves de 1953 e 1957. Várias indústrias, pressionadas pelos operários, já pagavam um abono de natal. Outubro deu início a uma “guerra de guerrilhas” dos operários contra a burguesia pelo rendimento a mais no final do ano. A greve geral cobrava a aprovação do projeto do deputado trabalhista Aarão Steinbruch (1917-1992) em tramitação no Congresso. A Fiesp recomendava aos seus membros que pagassem voluntariamente o décimo em seu documento interno (boletim) do final de 1961, mas fazia dura oposição ao projeto de lei do décimo e acusava o Governo Federal de demagogia por seu apoio ao projeto (Idem, p. 290).
O projeto do décimo salário foi sancionado pelo presidente Jango em 13 de junho de 1962. O importante a destacar é que a luta pelo décimo foi paradigmática para a burguesia industrial. A declaração da Fiesp “A indústria paulista à nação” marca uma mudança em relação ao governo Goulart e às “instituições democráticas”. O tema será melhor abordado adiante, mas cabe destacar que os industriais paulistas “não mais confiavam no governo federal, no Congresso e na Câmara dos deputados (…) depositando suas esperanças no governo estadual e no Exército nacional” (Idem, p. 288).
O foco em São Paulo é justificado por se tratar do centro do capitalismo dependente brasileiro e ter a maior concentração operária do país, mas a conjuntura de ascensão da classe trabalhadora, guardadas todas as particularidades regionais, tinha uma dimensão nacional. Em 1960, no Rio de Janeiro, começa a famosa “greve da paridade” quando marítimos, portuários e ferroviários passaram a exigir a equiparação dos salários dos funcionários civis da União com o dos militares. A greve envolveu 56 sindicatos e mais de um milhão de trabalhadores. Durante o movimento, cidades como Osasco e Rio de Janeiro ficaram à beira do colapso.
O presidente JK considerou a greve ilegal, foram indicados interventores para as empresas ferroviárias e marítimas, 12 mil policiais foram mobilizados para reprimir assembleias e piquetes e foi instituída pelo Governo Federal uma censura oficial de notícias sobre a greve. Depois de três dias de greve, recebendo a promessa de que o Congresso aprovaria uma lei da paridade (promessa que depois foi cumprida), a greve foi encerrada.
Nesse período histórico, a classe trabalhadora também caminhou para uma maior unidade nacional de ação. Aconteceram vários congressos Nacionais Sindicais dos Trabalhadores e no IV, em 1962, foi criado o Comando Geral dos Trabalhadores – CGT. O CGT, embora nunca legalizado, foi um importante ator político reconhecido pelo governo, sendo interlocutor em vários momentos junto ao presidente Jango. Para termos uma ideia da força do CGT, em 1963, o dirigente da organização e aeroviário, Paulo Mello Bastos (1911-2019) foi demitido da empresa Varig. Os trabalhadores consideraram essa demissão uma afronta e fizeram uma greve geral com participação, além de aeroviários e aeronautas, de petroleiros, marítimos, ferroviários e diversas outras categorias pela readmissão de Mello Bastos.
O presidente Jango teve que intervir, ligando para o proprietário da Varig, Ruben Berta (1907-1966), que readmitiu o líder sindical. A força dos explorados também se expressa no campo brasileiro. No final dos anos de 1940, na região norte do Paraná, em Porecatu,[27] começa uma experiência de luta armada pela terra com posseiros apoiados pelo PCB; de 1950 a 1957, na região norte de Goiás, desenvolve-se a revolta ou guerrilha de Trombas e Formoso, movimento atuante tanto na arena da política institucional, como usando a luta armada. Sobre a guerrilha em Goiás:
“Para dar andamento à luta armada, o PCB adquiriu armas: fuzis, carabinas e dinamites para destruir as pontes das estradas de penetração na região. O interesse do partido era impedir o acesso ao médio-norte, região de Trombas e Formoso, e jogar o guerrilheiro na mata. Nas matas, os guerrilheiros levavam vantagem, pois o PCB tinha a prática de guerrilha do campo, tanto que permaneceram fechados em Formoso oito anos e a polícia nunca conseguiu vencê-los” (BARBOSA, 1989, p.4-5).
Além das experiências de guerrilha, os trabalhadores no campo se organizavam cada vez mais em sindicatos rurais e associações de diversos tipos. O PCB, ainda nos anos 1940, impulsionou a criação de várias ligas camponesas. Com a repressão aos comunistas pelo governo Dutra, as ligas foram desarticuladas. A partir de 1954 elas voltaram a se organizar – o movimento que se tornou nacionalmente conhecido como Ligas Camponesas começou no engenho Galiléia, em Vitória de Santo Antão, Pernambuco.
Rapidamente, já no começo dos anos de 1960, as Ligas já estavam organizadas em no mínimo dez estados do país. Um dos sinais de força política dos trabalhadores do campo foi o I Congresso de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil, realizado em Belo Horizonte em novembro de 1961 com mais de mil participantes presentes. Nesse grande encontro, Francisco Julião, contra o PCB, lidera o setor que aprova uma linha política sintetizada no lema: “reforma agrária na lei ou na marra” (MARINI, 2013, p. 87).
Além dos trabalhadores do campo e da cidade, movimento de mulheres, movimento negro e outras articulações de luta e enfrentamento às formas de opressão e miséria, como as organizações de luta contra carestia, seca e pelo direito à educação, acendiam a política brasileira. Era um período, segundo Carlos Nelson Coutinho (2011, p. 68), em que no campo da cultura era majoritária uma perspectiva democrática e de intenção popular. Aliado a isso, tínhamos também força nas armas: mais de seis mil militares constitucionalistas, a maioria nacionalista e alguns comunistas, foram perseguidos pela ditadura empresarial-militar instalada em 1964. Antes do golpe, o baixo oficialato e setores como os sargentos mostravam ativa simpatia pelo programa de reformas de base e intensa agitação política.
A Revolução Brasileira parecia muito perto. Não só perto, como já em curso; afinal, tínhamos um presidente aliado a um forte movimento de massas e um sindicalismo cada vez mais poderoso com respaldo da intelectualidade, campo da cultura e vastos setores das Forças Armadas apoiando as famosas reformas de base. E no auge das lutas populares, no período de grande força da classe trabalhadora brasileira, perdemos! Por quê?
Em 1958, os comunistas operam uma mudança importante na sua linha política com a Declaração de Março de 1958. Essa declaração é uma resposta a outro evento de grande significação histórica: o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, de 1956. Esse congresso é conhecido apenas ou fundamentalmente por ser onde foram “denunciados os crimes de Stálin”. O furor anti-Stálin impediu grande parte da esquerda de perceber que, nesse congresso, o PCUS opera uma mudança fundamental na cultura política comunista, com impactos mundiais.
O partido soviético passou a defender o que os comunistas chineses chamavam de três pacíficos: a) que com a força do movimento comunista mundial e do socialismo era possível a transição pacífica, sem violência revolucionária e tomada do poder, ao socialismo. Possibilidade que antes era totalmente negada e diferenciava os partidos comunistas da social-democracia; b) a URSS era um estado de todo o povo e não havia mais luta de classes, havendo uma pacificação da construção ao comunismo; c) coexistência pacífica entre bloco socialista e capitalista com a competição ocorrendo na área econômica (que sistema oferece os melhores padrões de vida, consumo, trabalho, etc.).
A “desestalinização” consistiu ao mesmo tempo em um processo de renovação teórica e política em vários partidos comunistas, potencializando a reflexão crítica e criativa, mas também de crescimento de tendências reformistas, institucionalistas e pacifistas, fortalecendo tendências de social-democratização nos PCs. Nesse contexto, refletindo diretamente as disputas no PCB após o XX Congresso do PCUS, é que podemos compreender a Declaração de 58. O que diz o documento?
O documento começa comemorando o registro do avanço do desenvolvimento capitalista nacional que “constitui o elemento progressista por excelência da economia brasileira” e é a “base material da sociedade, de novas relações de produção, mais avançadas”; esse desenvolvimento está diretamente associado ao fortalecimento de um “capitalismo de Estado de caráter nacional e progressista” e do crescimento das relações capitalistas na agricultura. Esse crescimento, por si só, fortalece “cada vez mais uma burguesia interessada no desenvolvimento independente e progressista da economia do país”.
A despeito desse capitalismo de Estado de caráter nacional e progressista, persiste a dependência, o atraso e o “imperialismo continua a dominar posições-chave em ramos fundamentais [da economia nacional]”. Esse desenvolvimento capitalista nacional por si só aumenta o antagonismo com o imperialismo estadunidense e “exige cada vez mais, como seu instrumento, uma independência política completa, que se traduza numa política exterior independente e na proteção consequente do capital nacional contra o capital monopolista estrangeiro”. Esse mesmo processo intensifica a contradição entre o novo, os elementos avançados do país, e o velho, o atrasado.
A partir dessa análise econômica, o PCB afirma que o Estado brasileiro representa os interesses dos monopólios estrangeiros, burguesia associada, latifúndio e burguesia interessada no desenvolvimento nacional autônomo. Essa composição de classe é que explicaria o caráter contraditório das políticas do Estado. A despeito da força do latifúndio, imperialismo e burguesia associada ao capital estrangeiro, o País caminha para uma tendência de fortalecimento da democracia que não seria retrocedida. O PCB entende que o “processo de democratização é uma tendência permanente. Por isto, pode superar quaisquer retrocessos e seguir incoercivelmente para diante. Vem-se firmando assim, em nosso país, a legalidade democrática, que é defendida por amplas e poderosas forças sociais”.
Provas dessa tendência à democratização? Os comunistas apontam o aumento de “sucessivas legislaturas o número de parlamentares nacionalistas e democráticos” e da influência da “burguesia [nacional] nos diversos partidos”, o crescimento do capitalismo de Estado como elemento progressista e anti-imperialista e o cenário internacional:
“As modificações na arena internacional criam condições mais favoráveis para a luta pelo socialismo, tornam mais variados os caminhos da conquista do poder pela classe operária e as formas de construção da nova sociedade. A possibilidade de uma transição pacífica ao socialismo se tornou real numa série de países.”
Em seguida a Declaração reforça que a nova situação internacional cria “condições favoráveis ao desenvolvimento econômico de nosso país, à libertação da dependência em relação ao imperialismo, à democratização da vida política nacional”. Nesse processo, o latifúndio, sempre inimigo, foi compreendido não como bloco homogêneo: é apontado que “setores de latifundiários que possuem contradições com o imperialismo norte-americano” são aliados potenciais.
O proletariado é chamado não só a participar da frente de libertação nacional, como a ter preocupações com não “isolar a burguesia nem romper a aliança com ela”; o movimento camponês também é peça fundamental, e como a principal tática de luta dessa classe é apontada “a defesa jurídica dos direitos já assegurados aos camponeses. A ação de massas se mostra indispensável para vencer a resistência dos latifundiários no Parlamento e conquistar a aprovação de leis que correspondam aos interesses dos trabalhadores agrícolas”.
A concretização dessa aliança de classes e frente única seria o governo nacionalista ao qual o PCB, segundo a Declaração, irá dar apoio de maneira resoluta, mesmo que não faça parte dele. Esse governo, sua formação e atuação, será pacífica, reforça o documento: “os comunistas consideram que existe hoje em nosso país a possibilidade real de conduzir, por formas e meios pacíficos, a revolução anti-imperialista e antifeudal. Nestas condições, este caminho é o que convém à classe operária e a toda a nação. Como representantes da classe operária e patriotas, os comunistas, tanto quanto deles dependa, tudo farão para transformar aquela possibilidade em realidade. ”
Depois de insistir de novo na possibilidade de um avanço pacífico, a Declaração diz que, em caso de golpe, “pela resistência das massas populares, unidas aos setores nacionalistas do Parlamento, das Forças Armadas e do governo” o golpe será impedido e a legalidade democrática reestabelecida. Ainda sobre a possibilidade de um golpe, diz o documento que é importante ter em vista “soluções não-pacíficas”. Por fim, resume discordar da linha da Declaração como uma prova de dogmatismo e sectarismo:
“O abandono dos princípios universais do marxismo-leninismo, como síntese científica da experiência do movimento operário mundial, conduz inevitavelmente à desfiguração do caráter de classe do Partido, e à degenerescência revisionista. Mas o desconhecimento das particularidades concretas do próprio país condena o Partido, irremediavelmente, à impotência sectária e dogmática.”
A linha seguida pelo PCB, portanto, é pacifista, abre mão do protagonismo e da hegemonia proletária na frente nacionalista, confia nas Forças Armadas e no governo como força destinadas a preservar a democracia [burguesa] e a legalidade. A análise também é muito interessante em vários pontos. É apontado que os Estados Unidos controlam os setores chaves da economia, mas, ao mesmo tempo, o cenário internacional abre a possibilidade de um avanço pacífico das forças populares na revolução nacional libertadora. Como esse cenário internacional se reflete na política e nos conflitos de classe nacionais? O fato de os EUA controlar os setores chaves da economia, segundo os comunistas, não condiciona a capacidade do imperialismo de ditar a vida política, institucional e cultural do país? Essas perguntas não são respondidas.
Setores do latifúndio e das Forças Armadas, assim como a burguesia nacional, são pensados como aliados do projeto nacional-libertador. Como provar isso? A partir do apontamento de determinados “interesses econômicos”. Some de cena qualquer análise real da atuação política desses setores, sua formação histórico-política, seu universo cultural e ideológico e, especialmente, é pressuposto que a única forma de manter o desenvolvimento capitalista dá-se confrontando o imperialismo, como se o avanço das relações burguesas de forma subordinada e dependente, o que efetivamente estava acontecendo, fosse sinônimo de não-desenvolvimento e apenas atraso.
A linha política do PCB também promove um apagamento das experiências de luta armada do campo que citamos acima e resume os conflitos de classe na área rural a meios pacíficos e legais de atuação – isso numa conjuntura de latifundiários armados, e se armando cada vez mais, para combater os movimentos camponeses.
O documento também não detalha os métodos de atuação política do imperialismo. Tudo se passa como se fosse uma associação econômica e uma cooptação dos entreguistas. O “caminho pacífico” da Revolução Brasileira aparece como produto de um cenário internacional que a partir de caminhos não explicitados determina a situação interna, um cenário econômico que supostamente condicionava o fortalecimento da democracia e a expectativa de uma marcha inequívoca das forças nacionalistas e populares até as reformas estruturais com um bloco de aliados tão amplo que até elementos do latifúndio fariam parte, tudo isso derivado de “interesses econômico” mal explicados.
O PCB, no V Congresso de setembro de 1960, melhorou a formulação da Declaração de 58. Recupera a importância da hegemonia proletária na frente nacionalista, qualifica melhor o debate sobre o desenvolvimento capitalista e as contradições no aparato estatal, especialmente nas Forças Armadas e no Governo Federal. A despeito disso, a crença na via pacífica para a revolução, ainda que apresentada de maneira menos “ingênua”, se mantém, assim como a análise da tendência de democratização da vida política nacional[28].
Os dirigentes e membros do PTB, em sua maioria, e a direção do PCB, apostaram num caminho pacífico. Ambos os partidos, e mesmo as alas mais radicais do PTB, como o brizolismo, não preparam qualquer estrutura de resistência e de contra-ataque em caso de ruptura burguesa institucional. Mesmo os governos estaduais de esquerda, como o de Miguel Arraes em Pernambuco, não tinham qualquer linha de ação para um momento de acirramento do conflito político e ruptura institucional. Em vários estados do Brasil, os trabalhadores foram até a porta dos sindicatos e sede de partidos buscar as armas e defender as reformas de base e seus líderes. Não existiam armas, preparação, esquema de resistência.
Os governadores não alinhados ao movimento golpista foram presos, os mais de 6 mil militares nacionalistas e/ou constitucionalistas aos poucos aposentados (em sua maioria), e alguns poucos foram mortos. Os movimentos populares, sindicatos, escolas de formação, centros de cultura e afins foram fechados um a um sem muita dificuldade. Jango decidiu não resistir e fugiu para o Uruguai. Brizola, no final do dia 1 de abril de 1964, em reunião com Jango e membros do primeiro plano do governo, disse ao trabalhista: “vai embora? Traidor! Nunca mais voltarás para essa pátria” (Jango morreu no exílio)[29].
O próprio Brizola tentou dirigir um movimento de resistência armada e falhou. Prestes e os comunistas do PCB não conseguiram comandar qualquer movimento anti-golpista com chances de vitória. O golpe empresarial-militar de 1 de abril de 1964 consolidou-se de uma forma assustadoramente fácil. Toda a força dos sindicatos, movimento camponês, militares progressistas e peso de massas dos líderes populares como Brizola, Jango, Miguel Arraes, Prestes, Gregório Bezerra e outros se desfez como um castelo de cartas.
Documentos hoje disponíveis mostram que o presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy, debatia a possibilidade de uma invasão militar direta para depor Jango, e que a alta burocracia do imperialismo tinha expectativa de um cenário de “guerra civil”[30]. A guerra civil, para surpresa do imperialismo e de muitos, não veio.
É possível dizer que poucos esperavam uma vitória tão rápida dos golpistas. Outros, como o líder da direita Carlos Lacerda e o centrista Juscelino Kubitschek (JK), esperavam uma intervenção militar ligeira e a volta das eleições em 1965. Como sabemos, o dia de 1 de abril de 1964 durou 21 anos. E começou o regime mais repressivo da história do Brasil, com nosso país sendo a ponta de lança da contrarrevolução latino-americana: de Bueno Aires até Santiago e Caracas, passando por Montevidéu, a derrota da classe trabalhadora brasileira ajudou a afogar em sangue e tortura toda uma geração de revolucionários/as latino-americanos.
(*) Jones Manoel é historiador, professor, mestre e doutorando em Serviço Social, escritor, educador, comunicador popular e militante comunista.