Angela Davis fala para a câmera. Ela sorri: “acho que os estudantes sempre mostram o caminho”, diz ela sobre os acampamentos de solidariedade a Gaza que surgiram na Universidade de Columbia e em muitos outros campi nos Estados Unidos. A lendária ativista saúda o fato de que os manifestantes estão usando o conhecimento adquirido em todas essas universidades de prestígio para ajudar a construir um mundo melhor, e que “finalmente a luta pela liberdade do povo palestino é abraçada em todo o mundo”. Ela deixa outra mensagem: o que acontece agora na Palestina determinará o futuro de todos.
As redes sociais têm fervilhado nas últimas duas semanas com imagens de manifestações, acampamentos, pessoas em assembleias debatendo, ouvindo discursos, dançando dakbe [dança tradicional palestina], a polícia reprimindo brutalmente estudantes e professores, ou sionistas tentando mostrar que não se sentem seguros em mobilizações pró-palestinas. Tudo isso está acontecendo nos gramados de várias universidades norte-americanas, sendo que a Universidade de Columbia foi onde tudo começou. Muitas dessas cenas lembram outras vividas há mais de uma década, no Occupy Wall Street, na Primavera Árabe ou no 15M. Mas o objetivo desse ciclo de mobilizações entre tendas e faixas é muito específico: solidariedade com o povo palestino e a luta contra o genocídio.
❗Footage from yesterday of shows an economics professor at Emory University in Georgia being assaulted by police during protests against the war on Gaza.#GazaProtests #GazaWar #StudentsForGaza pic.twitter.com/Du7gYzMJ6T
— Faizan Bakhshi (@FaizanBakhshi) April 27, 2024
Enquanto isso, em Berlim, um acampamento resistiu por duas semanas em frente ao Reichstag (Parlamento), até ser despejado no dia 26 de abril. Em um contexto em que é proibido organizar um congresso sobre a Palestina, líderes europeus como o ex-ministro das finanças grego, Yanis Varoufakis, são impedidos não apenas de entrar no país, mas também de se comunicar por videoconferência com pessoas dentro do território, ou se proíbe o uso de outros idiomas que não o alemão ou o inglês em manifestações.
Tanto nos EUA quanto na Alemanha, assim como no Reino Unido, onde as manifestações são massivas, ou na França, onde os estudantes da SciencePo em Paris organizaram um acampamento no final de abril, que foi rapidamente reprimido pela polícia, os protestos surgem em um clima hostil às críticas ao colonialismo israelense. Nos campi da elite norte-americana, kufiyas e bandeiras palestinas tomam conta da paisagem enquanto pessoas de todas as origens conversam, participam de eventos e discussões, têm aulas de árabe, aprendem a dançar o dakbe e, acima de tudo, denunciam o genocídio. Judeus antissionistas proeminentes como Miko Peled, o candidato à presidência Cornel West, ou políticos democratas como Ilhan Omar ou a atriz e ativista Susan Sarandon visitam os acampamentos e participam das manifestações. Enquanto isso, sobreviventes do Holocausto dão testemunho do que aconteceu e se recusam a permitir que essa memória seja usada para justificar outro genocídio.
O despejo brutal do primeiro acampamento, que começou em 16 de abril na Universidade de Columbia, apenas ampliou o número de acampamentos para dezenas e até mesmo para universidades no Canadá. As imagens das prisões em massa naquele dia são seguidas por imagens da repressão brutal a estudantes e professores. Na sexta-feira, dia 26, a polícia desmantelou o acampamento em frente ao Reichstag, produzindo outra série de imagens que apenas alimentam a indignação com a repressão a que a polícia está submetendo seus próprios cidadãos para defender os interesses de Israel.
Há exemplos de grandes jornais que fazem uma descrição distorcida do que está acontecendo nesses protestos, como o artigo do The New York Post, que fala de “um estudante judeu apunhalado no olho com uma bandeira palestina” para mostrar um vídeo em que nada disso estava acontecendo. As contínuas acusações de antissemitismo ou de defesa do Hamas não estão impedindo a disseminação dos acampamentos. As universidades da “Ivy League”, como Columbia, Yale ou Harvard, que representam a reprodução das elites do país, são povoadas por uma nova geração de estudantes que não estão dispostos a perpetuar a cumplicidade dos EUA com Israel. Há duas semanas, um vídeo mostrou estudantes ocupando o prestigioso Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), e a pessoa que compartilhou a publicação se perguntou: “estamos diante de uma primavera antissionista?”
Desinvestimento, boicote acadêmico, fim da repressão e anistia para os presos; essas são as principais reivindicações dos acampamentos desde que eles começaram em Columbia. As ações policiais também não estão atingindo o objetivo de dissuadir os manifestantes, mas sim reforçando as mobilizações: “parece que a repressão está ficando cada vez pior. Mas quanto mais nos reprimirem, mais nos rebelaremos”, disse um membro da Students for Justice in Palestine (Estudantes pela Justiça na Palestina) ao veículo de mídia norte-americano Democracy Now.
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As universidades têm demonstrado a mesma divisão que a sociedade: enquanto a maioria do corpo docente apoia os manifestantes, suas elites apelam para a repressão, expulsam estudantes em massa e suspendem as aulas. Assim, eles recebem as mesmas acusações que os partidos: de estar à mercê da narrativa sionista porque dependem do financiamento de seus lobbies, uma dependência que novamente levaria ao Macartismo dentro das universidades. O próprio Netanyahu falou há poucos dias sobre os acampamentos nas universidades, reproduzindo o discurso de que são espaços antissemitas onde os judeus têm suas vidas em risco e comparando os campi dos EUA hoje aos da Alemanha dos anos 30. A intervenção do líder israelense alimentou a percepção de que Israel intervém na política dos EUA, uma crítica condensada no termo irônico “Estados Unidos de Israel”. A interferência sionista na repressão dos EUA a seus estudantes ameaçaria o que os norte-americanos consideram ser uma parte definidora de sua identidade nacional, a primeira emenda, que garante o direito à liberdade de expressão, à liberdade de imprensa e à liberdade de manifestação.
O movimento nos campi universitários dos EUA é prova de uma divisão geracional, com os jovens se tornando mais simpáticos à luta do povo palestino. Por outro lado, os movimentos interseccionais recuperaram uma tradição anticolonialista para desconstruir as narrativas israelenses, unindo coletivos racializados que enquadram a questão israelense como mais um exemplo de colonialismo e supremacismo racistas. Esses são movimentos e narrativas que preocupam fortemente os think tanks sionistas, como mostra o relatório Navigating Intersectional Landscapes (Navegando Paisagens Interseccionais), produzido pelo Reut Institute, de Israel, e pelo Jewish Council for Public Affairs há alguns anos. Nele, é dedicada especial atenção aos movimentos judaicos antissionistas e suas alianças com outros grupos. Por outro lado, os protestos também desafiam a identidade americana, conectando os protestos ao movimento estudantil de 1968 contra a Guerra do Vietnã, desmantelando a narrativa que os enquadra como “estrangeiros” e “outros”.
Grande drama
Enquanto o número de pessoas mortas por Israel desde 7 de outubro em Gaza ultrapassa 34 mil, o mundo observa como centenas de corpos de crianças, mulheres e homens palestinos, alguns algemados, outros enterrados vivos, são recuperados de valas comuns perto dos hospitais Al Nasser ou Al Shifa, ou como o exército sionista assassina símbolos como Shaima Refaat Alareer, a filha do poeta Refaat Alareer, morto em dezembro, e seu bebê, ao passo que vários sionistas insistem nas redes sobre sua condição de vítimas de um sentimento antijudaico nos campi que lembraria o Holocausto.
A multiplicação de vídeos mostrando o suposto antissemitismo nas manifestações está chegando a um paradoxo: um vídeo que se tornou viral mostra uma mulher judia “arriscando” se expor em frente ao acampamento e questionando as pessoas presentes gritando “eu sou judia, olhe na minha cara”, sem que ninguém tenha dado a mínima importância, ou o vídeo de outra mulher com seu cachorro relatando que está cercada por manifestantes e que não se sente segura como mulher judia, enquanto os ativistas insistem que ela pode ir aonde quiser, ou o professor da Columbia, Shai Davidai, um conhecido sionista e provocador – alguns meios de comunicação ligam sua família à fabricação de armas – denunciando o antissemitismo e comparando as universidades hoje à Alemanha nazista quando lhe negam a entrada no campus, tremendo confrontos.
I still can’t get over how she tried to instigate protestors but no one gaf ? pic.twitter.com/l0pYJlBVDn
— Hurt CoPain (@SaeedDiCaprio) April 25, 2024
Davidai chamou os manifestantes judeus em solidariedade a Gaza de Kapos, em referência aos judeus que colaboraram com os nazistas, pelo que ele foi denunciado. Embora movimentos como o Jewish Voice for Peace (Voz Judaica pela Paz) ou Jews for Ceasefire (Judeus pelo Cessar-Fogo) estejam entre os organizadores dos acampamentos, e estes contem com a presença contínua de judeus, isso não parece ser suficiente para desmantelar a narrativa que confunde antissionismo e antissemitismo, uma estratégia repetidamente denunciada por essas organizações, que apontam a instrumentalização do antissemitismo para justificar a repressão ao movimento contra o genocídio.
Junto com a estratégia de autovitimização, a criminalização dos manifestantes é uma parte fundamental da narrativa sionista. O líder da Anti-Defamation League chegou a descrever as organizações Students for Justice in Palestine e Jewish Voice for Peace como representantes do Irã. Ao mesmo tempo que elas são acusadas de estarem a mando de Soros e Rockefeller.
(*) Tradução de Raul Chiliani