A Revista Opera tem o prazer de apresentar ao público brasileiro a série portuguesa de ficção científica ‘42, escrita por João Camargo, pesquisador de mudanças climáticas e militante do movimento por justiça climática, e ilustrada pelo cartunista, pintor e ilustrador Nuno Saraiva.
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Em Lisboa faz muito calor. Apesar de não ser um ano de temperatura recorde (aqui já batemos os 50ºC mais do que uma vez), é difícil estar na rua. Corremos de jardim em jardim e de sombra em sombra, e temos de parar para nos refrescarmos nos pontos de água espalhados pela cidade (agora há muitos), enchendo os copos de lata que todo mundo traz à cintura no verão. Há três anos foram levantadas as restrições de circulação nos picos de calor no verão, mas sei que não devia andar na rua a essa hora, mesmo não estando na idade de risco. Só que a pessoa que vou entrevistar só estará aqui por dois dias, e hoje é o último.
Consegui marcar um café com Olívia Anwar, uma comunicadora e produtora de conteúdos de São Francisco, na República da Califórnia. Ela está atravessando a Europa para falar com viajantes, diz que quer ser como Homero e escrever uma nova Ilíada, desta vez contando as incríveis histórias dos refugiados que abandonaram as suas casas a milhares de quilômetros de distância, algumas há muitos anos, e que finalmente encontraram lar no sul da Europa, em particular no interior rural.
Esse não é o assunto desta entrevista de hoje. O objetivo é entender melhor o que aconteceu na América do Norte nos últimos anos: a guerra, as secessões e a nova realidade daqueles territórios e países. Ela é jovem (deve ter a minha idade, mas estudou bastante os quatro anos da 2ª Guerra Civil dos Estados Unidos, ou a 2ª Guerra da Independência, dependendo de com quem falarmos).
A Olívia me mandou uma mensagem dizendo que está atrasada. Fiquei observando as ruas da cidade sob a sombra das árvores e dos toldos brancos. São 8 da tarde e Lisboa está adormecida. Há uma ou outra loja aberta, principalmente as lojas de consertos. Aqui na rua Morais Soares há mais de 20 lojas de consertos de coisas antigas como frigoríficos, rádios, microondas ou computadores. Eles conseguem estar abertos porque nunca lhes faltam ares condicionados (para consertar e consertados). Também há uma grande biblioteca nova, onde antes havia uma loja onde se vendiam animais mortos para comer. Combinei a entrevista com a Olívia na Biblioteca.
Às vezes ainda é difícil de acreditar que há apenas alguns anos a maior parte dos materiais eletrônicos eram descartados e substituídos rapidamente. Hoje os reutilizamos quase completamente. Sei que isso acontece porque não há tantos produtos novos como antes. Mas é mesmo difícil entender como é que alguém achava que era possível descartar tantas coisas tão rápido, sem consequências.
Enfim, estas também são algumas das questões que vou colocando nas minhas notas quando olho para o presente e penso no passado sobre o qual estou escrevendo.
Por exemplo: o novo painel de temperatura de bulbo úmido. Em Portugal não serve muito, e ainda bem. Indica que, apesar da temperatura estar alta, não corremos risco de vida – como acontece todos os anos nos países asiáticos ou na América do Sul. Acho que só puseram aqui o painel para tranquilizar as pessoas que chegam da Índia e do Bangladesh, que ainda trazem o trauma coletivo de mortes na rua – e em casa – pela combinação de calor e umidade.
Por toda a avenida há placas nas várias línguas – português, inglês, hindi, nepalês, francês – que anunciam os negócios das pequenas lojas e também que agradecem e dão as boas-vindas às pessoas recém-chegadas à cidade. Para comemorar as novas populações que chegam a Lisboa há todos os anos o festival da Cidade Nova, que parte da praça no topo da Avenida – a Praça da Revolução de Janeiro – e desce a Morais Soares, acabando na Alameda. No meio da avenida estão plantados ciprestes e também há umas pequenas alfarrobeiras, e outros arbustos coloridos. Têm um ar de muito bem tratadas. Todos os dias as equipes de “cirurgiões de árvores” e jardineiros cuidam das árvores de manhã e de noite. Ouvi dizer que fazem registros precisos acerca do estado de saúde de cada planta.
Em Lisboa, as diferentes regiões e as encostas da cidade têm diferentes espécies plantadas, além das zonas de árvores e arbustos frutíferos. Há as tradicionais figueiras, oliveiras-bravas, sobreiros e azinheiras, mas também há árvores que há alguns anos não eram consideradas nativas, como os acers negundo, as tamareiras, os cedros-do-Atlas, os pinheiros de Alepo, as arganias e os estranhos ciprestes do Saara. O próprio conceito de espécie nativa mudou, com a grande migração de plantas, animais e pessoas, e também porque o nosso clima já é mais parecido com o que há umas décadas existia no Norte de Marrocos.
Apesar de eu nunca ter feito este trabalho nas minhas rotações, a Lia já o fez durante vários anos intercalados. É um trabalho muito interessante, mas cansativo. O discutimos muitas vezes, tanto em casa como nas reuniões do bairro, porque sempre que há problemas com as árvores e, se começam a morrer, algumas pessoas entram em pânico.
Desde que estou aqui já passaram vários bondes. Passa um a cada 10 minutos. Trazem os três vagões ainda meio vazios. Daqui a poucos minutos passarão seis vagões e virão cheios de pessoas a caminho dos seus turnos de três horas de trabalho vespertino, ou a caminho da diversão.
Por vezes os bondes especiais para transporte das colheitas também passam por aqui em direção aos pontos de moenda e entrega de comida: ali em baixo, atrás do cemitério e descendo até aos vales de Chelas está uma das maiores zonas agrícolas da cidade de Lisboa. Entre os campos e os edifícios-estufa produz-se comida para alimentar centenas de milhares de pessoas. Mas não é suficiente, claro, e uma parte dos cereais vêm do campo. Além das grandes áreas agrícolas geridas pela Assembleia da Cidade, há também pequenas hortas de bairro, nos jardins e nos telhados verdes dos prédios. Por exemplo, este prédio aqui em frente onde estou tem pequenas árvores no topo.
Olívia toca-me no ombro, interrompendo os meus pensamentos.
É uma mulher nos seus trinta anos, cabelo pintado de verde e piercings no nariz e orelhas. Veste azul escuro com um casaco de linho e tem um gorro cobrindo a cabeça. Em Lisboa, o azul escuro é a segunda cor mais utilizada no verão, depois do vermelho escuro, que predomina. Cumprimenta-me efusivamente, mas à americana, sem abraços.
Entramos na biblioteca, onde nos sentamos para beber um chá gelado. Ela diz que a abundância de livros nas bibliotecas em Lisboa é impressionante. Explico-lhe que nos últimos anos os espólios das livrarias foram todos transferidos para as bibliotecas e que o grande número de bibliotecas se deve em particular à transformação das livrarias em espaços públicos e de abrigo do calor, quando foi criado o primeiro Comissariado do Calor de Lisboa.
Isso não aconteceu na Califórnia, que estava nessa altura entrando na sua guerra civil, responde-me ela com alguma tristeza. Peço para começar a gravar a nossa conversa.
– É dia 12 de Agosto de 2042, e estou com Olívia Anwar, cidadã da República da Califórnia, criadora de conteúdos, que está neste momento viajando pela Europa.
– Olá, Alexandre. É um prazer poder falar contigo.
– Olivia, como te expliquei, estou fazendo um levantamento do que aconteceu nos últimos 20 anos, é um projeto para mim e para a minha família, e te agradeço a disponibilidade para nos falar um pouco sobre a Califórnia e os Estados Unidos, o que aconteceu estas décadas e o que se passa agora.
– Sim, claro. Quer que eu comece? Por onde?
– Acho que seria interessante entender os acontecimentos que levaram à Guerra Civil e às secessões…
– Bem, acho que não há como escapar do início disto tudo – se é que podemos falar de início –, o fim do estatuto de superpotência e polícia do mundo dos Estados Unidos, com o 6 de Janeiro de 2021 e a guerra de baixa intensidade dos anos seguintes. O terrorismo neonazi nos Estados Unidos começou a evoluir quando o partido Republicano se dividiu, depois de perder mais uma eleição presidencial. Começaram os atentados a igrejas e discotecas durante uns seis meses, enquanto o sistema energético (em particular o elétrico) estava em constante ataque por sabotadores.
A instabilidade no país era enorme, todo mundo tinha muito medo e muito ódio. Havia luxo obsceno no meio de pobreza, milhões de moradores de rua e dependentes de opióides. No meio disso, parte da sociedade vivia em medo permanente, alimentando-se da violência de milícias identitárias nas ruas – contra moradores de rua, contra mulheres, comunidades de pessoas negras e todas as comunidades que não eram heterossexuais brancas.
Do outro lado, grupos violentos sabotavam o estilo de vida dos ricos, invadiam os hotéis e resorts de luxo, destruíam símbolos de opulência, desde stands de carros até campos de golfe, ocupavam plataformas petrolíferas e sabotavam gasodutos. O estado violento, a polícia e os militares já não eram dissuasores o suficiente para impedir extremistas de qualquer lado.
As transformações internacionais tornaram a coisa ainda mais instável. Quando a Federação Russa se desagregou, houve um súbito vazio internacional que fez com que os militares se concentrassem em criar um grande inimigo: a China.
No meio disto, tivemos oficialmente pela primeira vez mais de um milhão de mortes no primeiro verão de ondas de calor globais. Morreram principalmente idosos, crianças e os mais miseráveis da sociedade, mas os números seguramente foram muito maiores do que os oficiais. Na Europa, a questão com as grávidas e os bebês foi mais grave, mas aqui também houve um movimento “As nossas crianças”, que mobilizou os setores evangélicos mais conservadores, convencidos online de que tinha sido o governo quem organizou aquilo. A reação internacional ao inferno de calor e ao caos que se seguiu foi criar o Tratado Mundial do Clima. Os Estados Unidos se recusaram a entrar, como muitos outros, mas ainda assim o governo deu um sinal público, com a moratória de exploração de novas reservas de petróleo e gás.
– Na época eram o maior produtor mundial?
– Sim, de petróleo e gás. Os estados que mais produziam eram o Texas, o Novo México, o Alasca e nós, a Califórnia. Depois da moratória, o Governador do Texas proclamou que iam criar um processo de independência, com o apoio dos presidentes das grandes petrolíferas e dos principais partidos herdeiros dos antigos republicanos. Todo mundo achava que era só uma ameaça para romper a moratória, mas houve grandes atentados em Nova Iorque, em Washington D.C., em Atlanta e em Tallahassee, e o hackeamento dos sistemas de segurança. Pouco tempo depois houve o golpe na China e os Estados Unidos deixaram de ter inimigos externos visíveis.
– Quais foram as consequências do golpe na China?
– O novo governo chinês declarou que cessaria todas as atividades no mar da China e em Taiwan e que iria construir um caminho de paz com todos, especialmente com os Estados Unidos… Com isso e com o Tratado Mundial do Clima, os Estados Unidos perderam um componente essencial do seu poder no mundo: o domínio sobre a energia. Sobravam o cada vez mais instável dólar e os militares… Mas sem um inimigo externo claro, não era possível continuar com essa história.
– A política mundial estava em ebulição… Além da China…
– Sim, era o caos total. Estava ocorrendo por todo o lado: além do golpe dos jovens comunistas na China, colapsou o governo nacionalista na Índia, deu-se o Setembro Vermelho na Europa, com a suspensão das transações de capitais, na África do Sul grupos de mercenários tentavam manter a produção de petróleo e carvão mesmo contra o governo, que tinha assinado o tratado… Enfim, a loucura da que você se lembra.
– Sim, a informação era muito desorganizada e sabíamos que era pouco credível, muito lixo para se entender com clareza o que se passava. Pior ainda com o AshGPT e o que a Inteligência Artificial fez às grandes redes. Que impacto teve nos EUA?
– Acho que ajudou um país que já estava polarizado a ficar ainda pior. Espalhava-se todo tipo de propaganda em relação ao que ocorria na Europa: os Neoluditas, a ORCA, a Descarbonária… E principalmente coisas que nem sequer existiam. Isso eram tudo coisas que estariam sendo importadas para os EUA através das migrações e dos globalistas. Era nestes termos que os conservadores falavam: essa era a base da guerra cultural, que estava sendo plantada há décadas, e nessa altura dava frutos e militantes. Isso funcionava porque ao mesmo tempo escasseavam produtos e os combustíveis estavam mais caros do que sempre haviam estado. Estava tudo insuportável. Todas as fragilidades dos EUA – e eram mesmo muitas – apareceram.
– Mas como você explica a divisão do país? Isso não aconteceu nenhum outro lugar…
– Bem, aconteceu em outros países, como na Rússia, em países africanos, no Golfo. Existiram e ainda existem várias tentativas de independência de partes de estados. Acho que as cidades-livres acabaram por ser válvulas de descompressão em vários países, mas no caso dos Estados Unidos só apareceram depois do conflito ter começado. A dimensão do país foi importante. Estamos falando de um autêntico continente, com culturas e interesses contraditórios.. A desigualdade, os ódios históricos entre Norte e Sul, as armas e a militarização da sociedade foram decisivos, mas não os únicos fatores.
– Qual você acha que foi o fator decisivo?
– O declínio acelerado da indústria fóssil foi central para explicar o que nos aconteceu politicamente. O governo passou a ser visto como um inimigo ativo, como um opressor, mesmo quando fornecia coisas boas. A contaminação ideológica na imprensa e nas redes sociais, que durante décadas tinham servido para consolidar na sociedade o American Dream, agora servia para polarizá-la. É até surpreendente que os 50 Estados tenham se mantido unidos tanto tempo… Quando deixou de haver um inimigo externo evidente, só tínhamos a nós mesmos para odiar. Foi nessa altura que o Texas anunciou a sua secessão e tudo desmoronou…
– Mas não foi só o Texas…
– Não. Quando o governo texano anunciou a formação da República do Texas, a Flórida, o Alabama, o Novo México, a Louisiana, o Mississippi e a Geórgia, quer dizer, os estados do Sul, anunciaram referendos à independência. O Oklahoma, o Arkansas e a Virginia Ocidental começaram os seus próprios processos institucionais de independência também. O presidente americano mobilizou as tropas, ocupou os congressos de todos estes estados e fez um ultimato ao Texas para que acabasse com o processo. As guardas nacionais em todos esses estados ficaram do lado do Governo Federal. Houve confrontos com as milícias de extrema-direita, que num primeiro momento foram derrotadas sem dificuldade. Mas depois do chamado “Texit”, o novo governo do Texas formou o seu próprio exército. O Texas já era o segundo estado com mais militares do país, mas o governo independentista juntou a estes as milícias civis, e até propôs ao México – que irônico! – que fizessem uma federação a quatro, com o Novo México e o Arizona. O impasse durou alguns meses.
Pela primeira vez em quase um século houve greves gerais nos Estados Unidos por falta de comida. O governo começou a distribuir comida diretamente à população e a introduzir os transportes públicos e a energia gratuitos, enquanto recrutava soldados. Naquele momento de caos econômico, muitos aceitaram juntar-se às forças armadas para conseguirem acesso permanente aos serviços que nunca tinham tido na vida. Entretanto, o MERs-CoV foi detectado no gado do Brasil e começou o embargo global ao comércio de carne, o que fez com que a questão alimentar ficasse ainda mais difícil. Os secessionistas acusaram o governo americano e a Organização Mundial de Saúde de terem inventado a crise para dificultar ainda mais a vida das populações. O Texas rejeitou o embargo internacional de carne e tentou distribuí-la, mas não conseguia descarregá-la nos vários portos internacionais (que na verdade se recusavam a receber todos os navios vindos do Texas, sob ameaça do governo americano).
(continua)…