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‘42 | A Segunda Guerra Civil Americana [Ep.4]

No quarto capítulo da série de ficção ’42, as mudanças ocorridas nos EUA e no mundo após a Segunda Guerra Civil
João Camargo e Nuno Saraiva
'42
Fonte: Google
ARevista Opera tem o prazer de apresentar ao público brasileiro a série portuguesa de ficção científica ‘42, escrita por João Camargo, pesquisador de mudanças climáticas e militante do movimento por justiça climática, e ilustrada pelo cartunista, pintor e ilustrador Nuno Saraiva.

Leia os capítulos anteriores: [Prólogo] | [Ep.1]  | [Ep.2] | [Ep.3]


Era tanta informação que eu pedi à Olívia para fazermos uma pequena pausa. As crianças da escola entraram para terem aulas na biblioteca. Há muito tempo que as bibliotecas deixaram de ser locais silenciosos. Quando se tornaram locais mais públicos e frequentados, passou a ser normal haver barulho. As aulas nas bibliotecas são de história e geografia, muitas vezes com as próprias bibliotecárias, que se tornaram com os anos grandes organizadoras da informação e da educação, em sintonia com as novas escolas teóricas e profissionais. A barulheira acaba quando o Leo, bibliotecário do dia, entra vestido de pirata. A aula de hoje promete! Ele nos pede desculpa e encaminha as crianças para uma sala que diz “Passado”. A Olivia se diverte com tudo aquilo e eu tento recuperá-la para a nossa conversa. 

– Então o Texas declara independência e vários outros estados preparam-se para fazer o mesmo. Mas a Califórnia tradicionalmente não defendia as mesmas posições…  Qual é a posição da Califórnia nesse momento?

– A Califórnia nunca esteve do lado do Texas! Mas estava frontalmente contra o início de uma guerra civil e contra a ocupação dos órgãos governativos dos restantes estados. As eleições presidenciais tinham sido suspensas, mas a Califórnia manteve as eleições para Governador e Senado estadual. A plataforma que venceu, de independentes que concorreram contra o Partido Democrata, defendia a recusa da intervenção militar nos outros estados. 

Quando o presidente mandou o exército invadir o Texas e começou a guerra, muitas divisões militares por todo o país se amotinaram. Em particular as que tinham novos recrutas eram muito indisciplinadas. A maior parte dos militares do Texas tinha aderido ao Texit e estavam servindo neste momento nas forças armadas da nova república. Começou a invasão sangrenta e os texanos resistiram violentamente nas batalhas de Texarkana, de Wichita Falls e de Boise, com as escaramuças espalhadas ao longo das fronteiras norte e leste.

– E as tropas da Califórnia?

– A Guarda Nacional da Califórnia e as unidades militares que estavam ali sediadas se recusaram a obedecer às ordens federais de marchar pelo Arizona e Novo México e invadir o Texas pelo Oeste. E por outro lado, havia os gigantes incêndios de Abril e centenas de milhares de pessoas tinham de ser evacuadas do Norte da Califórnia. Foram as Forças Armadas do estado que o fizeram. Também nesse momento, o presidente americano ordenou a militarização da indústria fóssil, mas a Califórnia fechou as suas infraestruturas, até porque já tinha assinado há muitos anos o Tratado de Não-Proliferação Fóssil. Mas a Califórnia não tinha até então feito qualquer ameaça secessionista, apesar dos advogados do Calexit se mobilizarem por isso. 

– Então como é que aconteceu a separação? 

A primeira incursão do exército americano no sul ficou atolada, sem grandes resultados, porque os combates mantinham-se nas zonas fronteiriças do Texas. Houve uma fase morna que durou quase um ano. A marinha americana estava mais organizada que o exército, e bloqueou os navios do Texas, em particular os petroleiros e metaneiros. Mas as cheias e as ondas de calor interromperam várias ofensivas e batalhas – apesar de se manterem escaramuças ao largo das fronteiras e em outros estados. O furacão Lukoil matou mais soldados do que os combates naquele ano! E foi também por essa época que a fumaça dos incêndios da Amazônia cobriu toda a zona sul dos Estados Unidos durante dois meses e meio. Nunca estava sol, o mais claro que tínhamos era um céu laranja escuro.

(Ilustração: Nuno Saraiva)

– E mesmo assim os combates continuaram e o Texas se mantinha irredutível?  

– Sim. Militarmente, o Texas era incapaz de avançar para fora do seu território, mas o tempo jogava a seu favor. A violência entre americanos era cada vez mais difícil de ser defendida do lado de Washington, em particular quando havia um nível de pobreza tão alto e escassez de bens, quando as cheias e ondas de calor não davam tréguas e requeriam muitos recursos. Muitas pessoas mobilizadas eram deixadas para segundo plano – e rebelaram-se. As unidades militares insurretas foram desmanteladas, e o governo tentou consolidar o poder nos outros estados independentistas, lidando com as milícias de extrema-direita e restabelecendo uma parte do poder estadual sob proteção federal, acabando com quaisquer vias institucionais de secessão. 

A violência miliciana, em particular contra as comunidades negras e LGBT+ permitia ao governo continuar a retratar os secessionistas como seitas religiosas ultra-conservadoras, o que era parcialmente verdade. Com forte apoio militar foi possível recriar instituições nos estados independentistas, criar novos governos de aliança entre democratas e a parte mais centrista dos antigos republicanos, agora organizados no Partido Federal. 

Mas a norte, a crise desencadeava motins civis em Boston, Detroit, Seattle, Chicago, Nova Iorque e Portland. Os soldados insurretos desmobilizados eram particularmente ativos. A ocupação do canal do Panamá pela marinha encareceu ainda mais os produtos. O governo sentiu que precisava de agir ou ia perder a guerra e provavelmente o país.

A migração para o Canadá explodiu, e nesta altura já eram milhões de refugiados e desertores lá em cima. Começaram os rumores de que havia campos de concentração para as comunidades negras e LGBT+ no Texas. 

Quando houve uma ameaça pública por parte dos texanos de usarem as bombas nucleares táticas que tinham, o exército americano partiu para a ofensiva. Num ataque relâmpago usou armas nucleares de pequena escala em várias bases militares, inutilizando o armamento texano, e lançou uma grande ofensiva para tomar o Pantex, mas o resultado não foi o esperado – nem militarmente, nem politicamente. 

Não foram encontrados campos de concentração e o exército só conseguiu ocupar menos de metade do Texas: tomaram Dallas mas não conseguiram avançar até San Antonio, Austin ou Houston. A marinha texana conseguiu manter os portos. E foi aí que aconteceu uma coisa estranha: uma enorme onda de simpatia pelo Texas correu o país, com novas insurreições nas forças armadas e a ideia de que esta era uma guerra de agressão, uma ideia defendida mesmo entre democratas. Ou seja, Washington tentava uma guerra na frente, mas fomentava uma revolução nas costas. Seattle e Portland declararam-se cidades livres, as primeiras no território, juntando-se a cidades de outros países. Foi nessa altura que a Califórnia organizou um referendo e anunciou a sua independência de Washington.

E isso foi surpreendente! Mudou o rumo do conflito?

– Sim, no início do Ano do Leão a guerra era extremamente impopular para os Estados Unidos. O sul do Texas teimava em recusar a rendição. Os combates tornaram-se muito violentos. A guerra civil tornou-se uma guerra de guerrilha, expandindo-se para os outros estados. Nas cidades do Sul, a guerrilha começou a atacar o exército e a provocar fortes prejuízos. Ao mesmo tempo, um grupo bem treinado começou a destruir a infraestrutura fóssil do Sul do país. Mais tarde soubemos que era do Exército Verde. Na Flórida, no Alabama e na Louisiana as estruturas, portos de petróleo e GLP, gasodutos e oleodutos foram sujeitos a uma campanha sistemática de seis meses de destruição, e isso resultou num sistema fóssil incapaz de operar.

– E na Califórnia? 

– Na Califórnia, depois de mais um verão de terror entre chamas e ondas de calor, as tensões por causa dos refugiados, quer do Norte, quer do Sul, aumentaram. O governo fechou as fronteiras e decretou o isolamento californiano. Mas o povo não queria. E a revolução começou aí, com a derrubada do governo do Calexit. Mas era um movimento maior. Poucas semanas depois haveria eventos como estes na França e no Brasil. E Washington também se apercebeu disso. Os chefes das Forças Armadas dos Estados Unidos recusaram-se a continuar a guerra e forçaram o presidente a declarar um cessar-fogo e demitir-se. 

– E nessa altura a guerra acabou?

– Sim. A contrapartida foi a entrega de todas as armas nucleares e o arsenal BCQ texano, que eles aceitaram. A Louisiana, a Florida, o Mississippi, o Arkansas, o Tennessee e o Novo México tornaram-se estados independentes. O Texas propôs aos novos estados independentes criar uma confederação, mas nenhum aceitou.

– Com o fim da guerra civil, como passou a ser a vida nesses novos territórios? 

– O governo revolucionário da Califórnia fez um acordo de fronteiras abertas com o México e criou o que chamamos afetuosamente de Mexicali. Parte do acordo era a ideia do México fechar a sua indústria fóssil. Nesta altura, mais de 10 milhões de refugiados já subiam da América Central e precisavam da nossa ajuda – e nós da ajuda deles. Houve uma profunda transformação na agricultura e mesmo nas áreas mais tecnológicas. A escassez de água e de energia levaram a uma grande modificação social. Mas tudo isto aconteceu enquanto continuávamos com outra guerra.

(Ilustração: Nuno Saraiva)

– Outra guerra?

– Sim, a guerra permanente que o clima movia contra nós, com cheias, secas, ondas de calor e incêndios florestais todos os anos. Precisávamos dos imigrantes para fortalecer e transformar a nossa agricultura, para realizar grandes assentamentos de terras e transformar a nossa paisagem. Além de um enorme trabalho mecânico, era um trabalho humano, de manutenção diária. Precisávamos deles para pensar o futuro, porque nós e eles éramos o futuro que havia. Ainda tínhamos muita capacidade tecnológica e agora tínhamos muito mais gente. Nos Estados Unidos houve novas eleições presidenciais e foi eleita a primeira presidente “independente”, sob a promessa de paz, cuidado e o fim do caos climático, prometendo literalmente um novo sistema político e econômico. 

– Helen Vargas. 

– Sim, Helen Vargas. Ela acabou com o sistema arcaico do Colégio Eleitoral e passou a vigorar o sistema “uma pessoa, um voto” em todo o país. Houve novas emendas à constituição e os estados perderam autonomia.

– Os que restavam… 

– Sim, os independentistas já tinham saído mesmo… A produção energética foi socializada, foi  criado um gigante programa de obras públicas, o agora famoso “Climate Corps”, e instituiu-se o Serviço de Saúde Universal. A maior parte das cidades proibiu a circulação de automóveis. O que pouco antes parecia impossível agora era banal. 

– Como você acha que isso foi possível? 

– Porque a guerra, a escassez, a fome, as perdas, o caos climático abriram novas perspectivas. Os anos de guerra fizeram com que o papel dos Estados Unidos no mundo agora fosse outro. A ideia do excepcionalismo americano estava acabada. Copiávamos o que a França e a China estavam fazendo de bom…  O resto do mundo também tinha estado embrulhado em outros conflitos e no caos. Várias cidades americanas aderiram à federação de cidades livres e foi feito um acordo para que as pessoas desses territórios votassem em eleições federais e, dependendo dos estados, até em eleições estaduais – embora mantivessem um elevado nível de autonomia e autogestão financeira e social. Houve um referendo para a entrada dos Estados Unidos no Tratado Mundial do Clima e para adotar a sua moeda, o Carbo. Venceu por pouco o “Sim”. Nessa votação foi decisiva a transformação da maior parte das forças armadas e os veteranos da guerra em forças de proteção civil e no Climate Corps.

– E as outras novas repúblicas?

– A República do Texas passou, pouco depois, a denominar-se a República Cristã do Texas, e tornou-se um lugar ainda mais conservador, a que muita gente chamava de Gilead – por causa das memórias do livro de Margaret Atwood. Houve uma revolta em Austin, que quis tornar-se uma cidade livre, mas ela foi esmagada. Depois, houve um enorme êxodo das populações negras e das cidades para o México, o Novo México e a Louisiana.

– Mas a Louisiana também era secessionista… 

– Não, entretanto o Louisiana tinha pedido a reintegração nos Estados Unidos. O Texas fechou as  fronteiras, tentando impedir que uma parte da sua população – em particular mulheres – continuasse a fugir. O “triângulo evangélico” composto por Arkansas, Mississippi e Tennessee reforçou o seu pendor agrícola e religioso. Os outros estados tornaram-se pequenos países, alguns juntaram-se ao Tratado Mundial do Clima e voltaram a ter relações normais com os vizinhos. As novas identidades nacionais, além da religião, eram muito pouco marcadas e o novo governo americano tinha de fato aberto uma nova página… O acordo social anterior estava completamente destruído e era preciso construir um novo.

– Mas havia nessa época um problema de falta de gente…

– Os Estados Unidos tinham perdido 100 milhões de habitantes na guerra da secessão, mais de um terço da população. Não podemos esquecer que a Califórnia, o Texas e a Flórida eram os três estados mais populosos. Havia um problema de falta de gente, mas havia principalmente um problema de refugiados em grande escala: muitas das novas repúblicas não os queriam. 

A nova presidente dos EUA foi duramente testada quando permitiu a entrada de 40 milhões de refugiados climáticos (vindos do Canadá e também da América Central). A contrapartida foi coagir a maior parte destes refugiados a fazer trabalho agrícola no Iowa, Nebraska, Kansas, Indiana e Carolina do Norte. Foi uma concessão aos setores mais conservadores. 

(Ilustração: Nuno Saraiva)

No entanto, o movimento ecomunista foi descriminalizado e começou a organizar vários sindicatos e comissões agrícolas no país. Foi também nessa época que ocorreu o jubileu internacional e começaram os cancelamentos de dívidas externas, um enorme alívio para vários países mais pobres, o que até reduziu ligeiramente as migrações. 

Com a vitória no referendo pela entrada no Tratado Mundial do Clima, houve motins nos Estados Unidos. Os estados e cidades pertencentes ao tratado passaram a ser obrigados a receber refugiados quando tinham condições para tal. A comoção social foi bastante pior do que quando foi proibida a venda de carros a combustão interna – porque com os transportes públicos gratuitos esta questão tinha se tornado muito mais secundária. 

Mas as primeiras Rotas do Futuro acabaram sendo problemáticas do que se antevia e o fluxo de entradas e saídas tem-se estabilizado, com muita organização, para que todo mundo chegue ou parta em segurança e possa ficar, se assim o desejar. 

– Não no Texas?

No Texas e no triângulo evangélico não, claro! Passamos o tempo todo ouvindo que aquilo não está indo bem. Há sempre muita gente fugindo e contando o que ocorre: da degradação social e do autoritarismo da igreja e do governo, da perseguição e submissão das mulheres. “Gilead”, nos diz quem foge. Neste momento o Texas só tem uma população de cerca de 15 milhões de pessoas.

– E agora, como estão as coisas lá?

– Os anos imediatamente seguintes ficaram marcados pelo Grande Julgamento. Foi nessa altura que ficamos satisfeitos por já não sermos os Estados Unidos da América. Foi bárbaro o que aconteceu, um horror. Mais de 50 CEOs e administradores de petrolíferas foram executados nos estados onde ainda havia pena de morte. Na República do Tennessee usaram mesmo a velha cadeira elétrica. Na Califórnia estiveram presos alguns anos.

(Ilustração: Nuno Saraiva)

– E o clima?

– As coisas têm melhorado nos últimos anos. Houve um abrandamento dos incêndios e ondas de calor e a agricultura tem se recuperado, também com a expansão da agricultura urbana. A Califórnia tem relações comerciais cordiais com os Estados Unidos, e existe algum comércio internacional, principalmente de alimentos vindos de e para a América do Sul e de alguma tecnologia que vem da Ásia. A nossa frota, tal como a dos Estados Unidos e até uma parte da texana, é composta por grandes veleiros que usam um mix de energia eólica e solar, mas a verdade é que é apenas uma fração do que já foi, porque quase metade era para transportar petróleo, gás e carvão.

O Atlântico Norte tornou-se muito perigoso e às vezes intransitável de Agosto a Janeiro, por causa dos furacões, e mesmo na nossa costa Oeste temos sofrido com furacões que atravessam a terra vindos do Golfo do México. No Pacífico, a época de tufões tem aumentado, agora é entre Maio e Janeiro. As janelas de navegação segura estão muito mais pequenas, mas tentamos aproveitá-las. As ferrovias mais que triplicaram entre o México e o Canadá, cortando toda a América do Norte, e a aviação está basicamente limitada ao combate a incêndios e ao transporte médico de urgência. A maior parte dos aviões em circulação são antigos jatos privados e aviões militares, já que a indústria aeronáutica foi convertida para a  produção de infraestrutura energética e de transportes terrestres. 

– E o Texas? 

– O Texas é o último reduto da indústria fóssil no continente, ainda tem transportes públicos, caminhões e carros a gasolina e diesel, mas são relíquias. A maior parte da energia deles é renovável também, mas a produção fóssil ocupa áreas agrícolas produtivas, os terremotos estão sempre acontecendo, danificando edifícios e infraestruturas, e o gás faz com que as pessoas fiquem muito mais doentes (e lá eles continuam a não ter médicos e enfermeiros para todo mundo). Mas o pior tem sido mesmo a Flórida.

– Como assim?

– São catástrofes sem parar. Quando não são três ou quatro furacões por ano, são ondas de calor letais, muito mais frequentes que no resto do continente (e a população mais velha é ainda mais vulnerável), surtos de chikungunya e dengue durante todo o ano e a diminuição da água doce. O nível médio do mar já subiu entre 10 e 30 polegadas [25 e 75 cm] em alguns locais como Pensacola e Vaca Key, destruindo centenas de milhares de casas na costa. Há enchentes repentinas que podem chegar aos dois metros de altura. Mais de 500 mil pessoas tiveram de abandonar o litoral. No caso de idosos, muitos regressaram aos seus estados de origem. Os crocodilos passaram a nadar por todo o lado. 

– Em Miami em particular a situação é grave?

– Miami é uma cidade semi-fantasma! Perdeu dois terços dos habitantes. Há sempre enchentes em algum local, mesmo com todas as medidas que foram tomadas, os diques construídos, as bombas permanentemente bombeando água. É um lugar inviável.

– Ainda tem gente lá?

– Sim, há milhares de pessoas que insistem em ficar. Por isso se declararam recentemente uma cidade-livre, porque não aceitam a evacuação. Mas a Flórida não tem sequer agricultura para a sua população. Acho que é inevitável que a maior parte das pessoas abandonem o território. 

– E a sua cidade natal, São Francisco?

– Está diferente. O Embarcadero já foi abandonado à água, com o Ferry Building e o Pier 29 parcialmente submersos. São Francisco já não é a cidade do nevoeiro que sempre foi: no verão já só aparece uma ou duas vezes por semana, o que está destruindo uma parte dos animais e plantas, que também sofrem com o aumento de temperatura e a seca. Os grandes incêndios anuais pintam o céu de vermelho e laranja, por vezes mais do que um mês inteiro. É preciso sair à rua de máscara na época de incêndios, mas há muitas pessoas com dificuldades respiratórias que têm de usar máscara de oxigênio para estar na rua. Nos últimos cinco anos a situação tem melhorado… como aqui também, não é?

(Ilustração: Nuno Saraiva)

– Sim, Portugal e a Califórnia têm climas similares, mediterrâneos. Aprendemos isso em Climas e Crise Climática nos primeiros anos da escola.

– Acho que acabamos chegando a lugares e momentos similares. Nos fazem falta essas bibliotecas todas… mas continuamos a ter Hollywood em Los Angeles.

– Já não chegam tantos filmes aqui.

– Sim, a guerra civil abriu muito espaço ao cinema de outros países também. Mas agora temos finalmente pequenos cinemas e teatros locais onde podemos ver arte de vários outros lugares. E é bom. A fixação com os Estados Unidos, e estar sempre olhando pra nós mesmos era algo que tinha de acabar. Hoje, ser californiano, americano ou mexicano não tem tanto significado. Nascemos ali, como podíamos ter nascido em qualquer outro lugar. E recebemos pessoas em fuga, como tantas tivemos de fugir também. E o que temos, principalmente, é umas às outras. Ah! E a comida está mais picante, há menos vinho e mais cerveja. Por falar nisso, tenho de ir, vou jantar com uns viajantes do Bangladesh que chegaram no ano passado.

– OK. Sua ajuda foi preciosa, Olívia. Boa sorte com as suas viagens, e mande notícias sobre a obra em que está trabalhando.

– Sim, claro. Foi um prazer, Alexandre.

'42 ‘42 é uma série de ficção científica escrita por João Camargo, pesquisador de mudanças climáticas e militante do movimento por justiça climática, e ilustrada pelo cartunista, pintor e ilustrador Nuno Saraiva. “’42 começa no fim. O futuro em que se conseguiram travar os piores cenários de mudanças climáticas começa na Lisboa de 2042, uma cidade muito transformada em quase tudo: transportes, energia, alimentação, água, lixo, o Rio Tejo e a comunidade. Em vez do exercício linear da  construção de uma descrição limpa, higiênica, contada apenas pelo lado vencedor e com poucas contradições, desde ‘a’ até ‘b’, em ’42 vamos ter  retratos do que aconteceu em Lisboa e em cidades por todo o mundo, testemunhos, notícias, documentos dos anos loucos em que quase tudo mudou. Guerras, migrações em massa, traições, episódios trágicos e  heróicos, revoluções, transformações, um pouco de tudo aconteceu para chegarmos a 2042 e haver novamente esperança no futuro.”

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