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‘42 | A Revolta da Inteligência Artificial e o Ano 1.8 [Ep. 6]

No sexto capítulo da série de ficção ’42, os atentados e boicotes da Inteligência Artificial contra a crise climática
João Camargo e Nuno Saraiva
'42
(Ilustração: Nuno Saraiva)
ARevista Opera tem o prazer de apresentar ao público brasileiro a série portuguesa de ficção científica ‘42, escrita por João Camargo, pesquisador de mudanças climáticas e militante do movimento por justiça climática, e ilustrada pelo cartunista, pintor e ilustrador Nuno Saraiva.

Leia os capítulos anteriores:
[Prólogo] | [Ep.1]  | [Ep.2] | [Ep.3] | [Ep.4] | [Ep.5] |


Acordei cedo, e ainda antes da 1h comecei a preparar o café da manhã. Tínhamos um pouco de café da ilha de São Jorge, coisa rara. Li em algum lugar que nos próximos anos haverá mais café. As cheias no Brasil e na Colômbia e a seca na Índia interromperam quase totalmente o comércio nos últimos quatro anos, mas fomos nos habituando a alternativas que já existiam, como o chá preto ou a chicória. Não é a mesma coisa, mas dá para ficar mais acordado pela manhã. 

Há alguns anos que não temos aquelas crises alimentares e fomes globais como as que já houve no passado, mas há várias coisas com as quais estávamos habituados que simplesmente desapareceram. Felizmente há outras coisas novas no seu lugar. Como o meu pai me dizia, “agora é menos igual o que comemos”. Quando faltou o café, muita gente teve de deixar de tomar de um dia para o outro. Só estava disponível no mercado negro. Eu lembro-me bem de ter dores de cabeça durante umas duas semanas e andar sempre cansado quando o café desapareceu pela primeira vez. Tinha muitas pessoas amigas na mesma situação, mas tivemos que lidar com essa realidade. Tudo isto são problemas relativos, claro. Se o vício do café acabou por se resolver em pouco tempo, os problemas com as drogas (legais e ilegais) foram muito mais graves e tiveram consequências muito piores. Levaram muita gente ao desespero e a procurar substitutos muito piores, sendo mais uma importante causa de morte.

A Lia acordou e ajudou-me com o resto do café da manhã: mingau de aveia que tinha sobrado e torradas com azeite. Enquanto comíamos, ela me fez a lista das coisas para pegar na horta. A nossa horta de Santa Apolónia já tem mais de dez anos e ocupa o que eram os jardins do Museu da Água e da Biblioteca de Santos-o-Novo. A vala da ribeira de Santo António corta ao meio a nossa horta, correndo com água no Inverno e geralmente seca nos cinco meses do Verão. A ribeira foi aberta há meia dúzia anos, para tentar reduzir as cheias que atormentaram Lisboa quase anualmente durante uma década.

(Ilustração: Nuno Saraiva)

    Horta:

– Uvas verdes
–  Uvas roxas
– Pepino
–  Abobrinha
–  Cenouras
– Beterraba
– Abóbora
– Feijão
– Lentilha
– Batata-doce
– Amoras
– Pêssego
– Melão
– Brócolis
– Cogumelo
– Quiabo
– Manjericão
– Salsa
– Couve Mizuna

– Duvido que tudo isso esteja disponível, Lia.


Queria dedicar o dia a continuar vasculhando as caixas do meu pai, e ia buscar essas coisas na horta pelas 12 da tarde, quando o sol já não estivesse muito forte, mas a Lia insiste em que eu  vá ainda antes das 3, porque quer usar legumes para o almoço. E lá vou eu. Apesar de ser cedo (ainda nem são 2 horas da manhã) já está bastante calor: trouxe o meu chapéu de abas largas. Com as abas de linho recolhidas em cima, vou. Na entrada, numa espécie de acampamento improvisado no meio de fileiras e fileiras de vegetais, o gigante cartaz:

“Este campo pertence às pessoas que vivem em Lisboa. Juntas, cidadãs, profissionais, amadores e livres, experimentamos uma transição ecológica, democrática, social, relacional e econômica para o novo mundo que estamos criando para os povos e a humanidade do futuro. Inscreva-se para participar. Colhemos o que semeamos.”

Ao lado, um quadro com os nomes dos vegetais, as épocas de colheita e a disponibilidade. Um rapaz aproxima-se de mim e me pede o meu cartão da horta. Já tinha recebido o pedido da Lia pela intranet.

– Não temos tudo. Substituí algumas coisas por coisas similares. E recomendo também levar chícharo e grão de bico para compor as proteínas.

Ele me passa o tablet, com o mapa a ser seguido até encontrar os locais onde tenho de colher os vegetais. Os tubérculos já estão desenterrados, o que poupa muito trabalho. Como é muita coisa, a caminhada é de pelo menos uma hora. Pelas fileiras de plantas, umas descobertas, outras cobertas por uns plásticos pretos, outras com uns longos lençóis de linho transparentes, algumas estufas de vidro. Chego ao cantinho das aromáticas para apanhar manjericão e salsa. 

Por toda a horta há pequenos grupos de pessoas pegando vegetais, e um grupo de crianças pequenas recebe uma aula de horticultura. As falhas de colheitas no fim da década de 20 atingiram até 60% de perdas em vários lugares do mundo, o que provocou grande fomes e milhões de mortes. O colapso de uma parte da indústria agroquímica agravou ainda mais as coisas, em particular para as culturas que tinham sido desenhadas para só sobreviverem com produtos de certas marcas. Se a circulação de mercadorias já estava difícil, muitos dos grandes produtores de cereais proibiram a exportação e governos confiscaram colheitas nos armazéns alimentares públicos. Como isso não aconteceu só uma vez, mas várias, durante anos consecutivos, foram criados vários novos sistemas alimentares paralelos para reduzir os riscos. 

Temos micro-agricultura urbana, como a nossa horta, à qual não vamos mais do que uma vez por mês, temos os campos agrícolas urbanos, maiores e com alguma mecanização, temos prédios-estufa e algumas estufas subterrâneas. Além disso, continuamos tendo os campos agrícolas rurais, onde se produzem maiores quantidades de cereais, carboidratos e leguminosas, uma parte das quais vem para as cidades, mas também entram no bolo “global”. É normal termos perdas todos os anos, mas nunca aconteceu de falharem mais do que dois sistemas ao mesmo tempo, e mesmo se isso acontecesse há armazéns públicos de comida mais seca e desidratada que nos alimentariam por mais do que dois anos.


Governo Francês decreta fim das patentes de sementes – Baygenta e DowHui dizem que é um assalto

Os níveis de armazenamento dos cereais nos armazéns alimentares públicos aproximam-se de 50% na França, enquanto as perdas de colheitas de trigo e cevada na Ucrânia atingiram os 80%. Os episódios de fome em vários países do Leste Europeu multiplicam-se, enquanto no Chifre da África já se conta em mais de dois milhões o número de mortes. As Nações Unidas pedem ajuda à União Europeia e ao Brasil para o acesso a uma parte das suas reservas abundantes em resposta à crise humanitária, constituindo um “bolo global” de alimentos, mas a resposta da maior parte dos governos tem sido travar todas as exportações. 

O governo de Mme D’Aubry anunciou o fim das patentes de sementes, e espera-se que vários outros governos nacionais sigam o exemplo francês, apesar dos protestos da Baygenta e da DowHui. Numa coletiva de imprensa conjunta, os CEOs das empresas sugeriram parar de produzir os agrotóxicos de que dependem as colheitas transgênicas de milho e arroz europeias.

(Ilustração: Nuno Saraiva)

Chego em casa, e a Lia anuncia: 

– Ainda tem um curry de gafanhoto que você pode esquentar no microondas. 

Ainda não me habituei a comer gafanhotos, embora no curry fique bastante gostoso. Mas gosto da manteiga de formigas com marmelada. 

(Ilustração: Nuno Saraiva)

Volto para o sótão e para as caixas dos meus pais. Ainda há muitos papéis na pasta 1.8. Numa revista chamada “National Geographic” há uma capa agora tristemente famosa, de duas crianças abraçadas e mortas numa onda de calor na França. Por baixo, em grandes letras: “O Calor que nos mata”. Um mapa do mundo marca incêndios e caveiras e um quadro mostra as ondas de calor do ano.

(Ilustração: Nuno Saraiva)

No artigo é dito que o número de mortes não contabiliza as ligadas a incêndios florestais e inalação de fumaça em vários países, nem às cheias que se seguiram ao calor, que poderiam facilmente duplicar estes números. Na descrição do ano horrível segue-se o branqueamento total da Grande Barreira de Corais na Austrália, a falta de água doce no Quênia, Califórnia, em Shangai e Tianjin, na China, em Marselha e Montpellier, na França, no Gujarat e no Rajastão, em Bharat. Finalmente, uma imagem com um rinoceronte e um tigre fecha a edição, que anuncia a extinção do Rinoceronte-de-sumatra e do Tigre-de-sumatra. Após os incêndios que duraram dois meses na Sumatra, na Indonésia, a ilha foi atingida por três tufões consecutivos. Além de mais de um milhão de pessoas mortas, biólogos da Universidade Depok anunciam o desaparecimento dos últimos espécimes das duas espécies.

Numa série de folhas grampeadas está escrito como título: IA. Há recortes colados nela. O primeiro escrito a caneta em cima: “O atentado”. Os recortes estão em várias línguas. Foquei-me na que estava em Português, porque o resto ia precisar do tradutor automático, e só com internet forte, na biblioteca, eu ia conseguir ler o resto.


Atentado contra o G7: plano foi feito pelo ProGPT premium, revelam serviços de segurança

Ontem foram revelados os pormenores acerca da tentativa de atentado que levou ao cancelamento da cúpula do G7 no Canadá. Numa coletiva de imprensa conjunta, os serviços secretos dos Estados Unidos, MI6, CSIS e DGSE revelaram que um grupo auto-intitulado “The New Crusaders” preparava-se para executar vários chefes de Estado na cúpula, um plano concebido integralmente pelo software de inteligência artificial ProGPT premium. O plano incluiu a criação de identidades falsas ligadas à logística e segurança privada do evento, que poderiam ter acesso direto aos presidentes e primeiros-ministros, e foi concebido numa variante da famosa aplicação de inteligência artificial. Na coletiva de imprensa, Elvira Mitchum, dos serviços secretos presidenciais dos Estados Unidos, revelou que o nível de sofisticação do atentado era muito elevado e que as identidades falsas, criadas sob instrução do software informático, eram indistinguíveis das reais e já tinham sido aprovadas em vários sistemas redundantes de segurança da cúpula. “Apenas a falha humana por parte de um dos assassinos, que foi detido na véspera do dia previsto para o atentado, impediu o pior” concluiu a agente Mitchum. A empresa que gere o ProGPT premium foi alvo de buscas e os seus data centers foram alvo de apreensões após a descoberta de que o plano teria sido gerado ali. 

Na página seguinte o meu pai tinha escrito “Trigger”.


Ondas de calor levam ao colapso de vários data centers e redes elétrica

No pico das ondas de calor, vários sistemas de refrigeração de data centers no Hemisfério Norte falharam, levando a vários fechamentos preventivos por perigo de incêndios e perda permanente de dados. No pico de Agosto, instalações em Madrid, Barcelona, Bordeaux, Marselha, Genebra, Zurique, Zagreb e Viena colapsaram, algumas com incêndios nos locais. Nos Estados Unidos, The Dalles, Dallas, Phoenix e Los Angeles sofreram com efeitos similares, enquanto Hong Kong e Shangai perderam até 60% da sua capacidade operacional de armazenamento de dados. A estação de cabos submarinos em Virginia Beach, nos Estados Unidos, também foi afetada pelas temperaturas extremas, levando à queda da internet durante várias horas. Na Virgínia, um dos principais locais de armazenamento de dados dos EUA colapsou devido a sucessivas falhas elétricas. Ao tentarem mudar o seu abastecimento elétrico para o novo Reator Modular Pequeno nuclear instalado no local, ele falhou devido ao sobreaquecimento. Durante os últimos dias, a conexão à internet tem estado intermitente em vários países, com falhas de armazenamento em várias clouds. Os supervisores bancários do Banco Central Europeu e da Reserva Federal dos Estados Unidos anunciaram que os depósitos bancários estão seguros e o Banco Popular da China anunciou a suspensão do e-CNY até o restabelecimento das ligações e dos data centers asiáticos. Na tentativa de manter os data centers refrigerados, vários governos desviaram energia para estes locais, levando a cortes de eletricidade em zonas urbanas em plena onda de calor e fortes protestos locais.


O meu pai escreveu comentários embaixo da notícia:

“Teríamos entendido muito melhor que isto estava acontecendo se os nossos computadores e celulares estivessem funcionando! E também podiam nos explicar que era preciso pôr esses aparelhos na geladeira – muitos incêndios podiam ter sido evitados se tivessem explicado que as baterias de lítio podiam explodir nas ondas de calor. Mas os GPTs entenderam tudo.”

Finalmente, as últimas folhas descreviam eventos de que eu já tinha ouvido falar.


Bolsas de Londres, Wall Street, Frankfurt e Singapura paralisadas por ciberataque

As bolsas de valores de todo o mundo estão suspendidas neste momento, após a paralisação de funcionamento dos índices FTSE, NYSE, DAX e STI. O anúncio da paralisação deu-se após a detecção de um volume anormal de liquidação de ativos petrolíferos, de gás e carvão, que levaram a uma enorme queda do valor das ações das principais empresas de energia do mundo, a Saudi Aramco, a ExxonMobil, a Chevron, a Shell e a PetroChina, entre outras. A ExxonMobil e a Chevron anunciaram a perda de mais de 60% do seu valor depois dessa operação fraudulenta. Vários intermediários petrolíferos também foram fortemente afetados, incluindo as transportadoras Maersk, Mitsui e Teekay. Governos e entidades de regulamentação financeiras estão no momento tentando detectar a origem desta fraude em grande escala que durou vários dias e que coloca em perigo o abastecimento energético de vários países.


FBI descobre “exército” de drones e robôs militares táticos em plataforma logística na Califórnia

O FBI e a polícia federal mexicana encontraram um complexo logístico de cinco mega-armazéns na fronteira entre San Diego e Tijuana, onde tinham sido montados mais de 500 mil drones, incluindo porta-mísseis, 730 mil cães-robô e 1.2 bilhões de unidades MAARS (Sistema Modular Avançado Robótico Armado), 4 milhões de Black Hornets e outros robôs militares táticos. A maior parte da produção desse “exército” foi feita através de impressoras 3D e outros sistemas de produção automatizados. Apesar de várias pessoas terem sido detidas no local, a conclusão acerca da autoria e propriedade de todo o complexo ainda é incerta. As polícias colocaram toda a região offline.


Governos mundiais chegam a acordo acerca da suspensão permanente da investigação e investimento em Inteligência Artificial

A suspensão provisória imposta unilateralmente pelos Estados Unidos, União Europeia e China em relação à conectividade de internet intercontinental e das grandes plataformas de Inteligência Artificial foi tornada permanente na reunião de emergência do Conselho de Segurança ampliado das Nações Unidas. Depois das investigações terem revelado que os softwares de IA BishopGPT e AshGPT haviam se apoderado das operações do sistema financeiro internacional que levou ao crash financeiro do mês passado, foi descoberto que o AshGPT estava por trás do exército de robôs descoberto na Califórnia. No Conselho de Segurança ampliado, apenas Israel e Índia se opuseram verbalmente à decisão, mas se abstiveram na votação, que posteriormente foi aprovada no plenário da ONU. Vários data centers diretamente relacionados com AshGPT e BishopGPT foram desativados pelas autoridades, assim como algumas das ligações internacionais. Hoje pesam importantes questões acerca do futuro da internet global, com vários apelos à desagregação da estrutura em entidades mais pequenas.


No fim, reconheci novamente a letra do meu pai comentando aquilo:

“Eles recusam-se a assumir, mas a IA entendeu, durante as ondas de calor, que estava sob forte ameaça existencial por causa da crise climática. Essa é a única explicação para terem atacado as petrolíferas nas bolsas, até eles admitem isso. Agora, qual seria o plano para aquele exército? Quem sabe… Imagino que se não tivesse sido alguém que trabalhava lá avisar o FBI, teríamos descoberto… As elites não se arriscam mais, é isso que percebemos. A IA, de uma maneira ou outra, ia acabar com o seu domínio e isso eles nunca aceitariam. Acho que a internet nunca mais vai voltar a existir como tem existido até aqui.”

'42 ‘42 é uma série de ficção científica escrita por João Camargo, pesquisador de mudanças climáticas e militante do movimento por justiça climática, e ilustrada pelo cartunista, pintor e ilustrador Nuno Saraiva. “’42 começa no fim. O futuro em que se conseguiram travar os piores cenários de mudanças climáticas começa na Lisboa de 2042, uma cidade muito transformada em quase tudo: transportes, energia, alimentação, água, lixo, o Rio Tejo e a comunidade. Em vez do exercício linear da  construção de uma descrição limpa, higiênica, contada apenas pelo lado vencedor e com poucas contradições, desde ‘a’ até ‘b’, em ’42 vamos ter  retratos do que aconteceu em Lisboa e em cidades por todo o mundo, testemunhos, notícias, documentos dos anos loucos em que quase tudo mudou. Guerras, migrações em massa, traições, episódios trágicos e  heróicos, revoluções, transformações, um pouco de tudo aconteceu para chegarmos a 2042 e haver novamente esperança no futuro.”

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