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Em busca do presidente negro: rap, Obama e Kamala Harris

Da empolgação à denúncia, a reação do rap a Obama pode nos esclarecer sobre a candidatura de Kamala Harris e sua relação com o maior gênero negro dos EUA
Marco Aurélio
Kamala Harris discursa durante um comício. Com a mão direita, aponta para frente, enquanto segura um microfone com a esquerda. Ao fundo, a bandeira dos Estados Unidos.
Fonte: Google

Há muito que a discussão sobre um candidato negro ao cargo máximo da república tem sido um ponto importante nos movimentos negros em países de grande população afro-diaspórica, como os Estados Unidos, ou onde os negros são a maioria, como o Brasil. O longo debate sobre a ocupação desse espaço, que carrega uma mística em torno de si, se dá num movimento no qual, após a abolição da escravidão nas Américas, as chamadas “pessoas de cor” buscaram se organizar afim de encontrar uma solução para os novos problemas que a modernização burguesa trouxe para a formação social desses países. Ainda que nos Estados Unidos a abolição da escravidão seja posterior ao sistema republicano, oriundo da Guerra de Independência, entre 1775 e 1783, com o primeiro presidente eleito já em 1788 – diferente do Brasil, onde a república foi estabelecida um ano após a abolição formal do trabalho escravo –, já em 1848 o grande abolicionista e escritor Frederick Douglas se tornou o primeiro canditado afro-americano às eleições presidenciais do país. Douglas repetiria a candidatura em outras ocasiões, sem sucesso em sua empreitada, apesar da sua enorme relevância no movimento abolicionista.

No Brasil, o primeiro presidente eleito por voto popular foi Prudente de Moraes, em 1894. Antes dele, Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto ocuparam o cargo, mas não por meio de eleições. Porém, um fato curioso ocorreu em 1909: após o falecimento de Afonso Pena, sexto presidente da República brasileira, seu vice, Nilo Peçanha, assumiu o cargo. A questão é que Nilo era uma pessoa negra, e isso assustou as autoridades e o povo. Apesar das discussões em torno da suposta descendência africana de Rodrigues Alves, se consolidou a ideia de que Nilo Peçanha foi o primeiro – e único – presidente negro da história do Brasil.

Desde o fim do mandato de Nilo, em 1910, o Brasil nunca mais teve um presidente negro. Tentativas mais recentes de se candidatar à presidência da República, como a de Léo Péricles, assim como de outros diversos candidatos negros, nos mostram que a ocupação desse cargo é vista como uma disputa importante nas esquerdas. Isso, porém, não reflete, necessariamente,  numa melhoria de vida concreta para o povo negro e um combate fatal contra o racismo – afinal, “O concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações”[1] –, mas, num país racista como o Brasil, e com a maior população negra fora da África, é inevitável analisarmos que em nosso sistema eleitoral, em meio aos nossos candidatos eleitos, quase não existem  pessoas negras. Esse é, também, um ponto importante para a política norte-americana, cujas particularidades oriundas da formação social da república ocasionaram um país majoritariamente branco, onde indígenas foram quase aniquilados e os negros representam uma minoria de apenas 13%. Essa realidade ocasionou uma situação política e social onde os negros eram como uma nacionalidade à parte dentro dos Estados Unidos, o que se refletiu em movimentos como o Garveysmo, o Nacionalismo Negro, e até mesmo em resoluções de base marxista, como o chamado Black Belt ou Cinturão Negro[2], fortemente amparado pela teoria marxista-leninista de auto-determinação nacional, com forte influência do escrito de Joseph Stálin O Marxismo e a Questão Nacional.

O exemplo do Brasil serve para ilustrar como a situação dos negros – e todo seu aparato político, cultural e social em diáspora –, que Nelson Werneck Sodré vai chamar de transplantados[3] se depara numa contradição quase irremediavel por meios formais com a situação concreta de países capitalistas e semi-coloniais.

O caso dos Estados Unidos é digno de nota e análise pelo fato não apenas de ser a única superpotência mundial, mas também um grande influenciador cultural pelo mundo, pregando seus valores a ferro, fogo, golpes coloridos, infiltrações acadêmicas, e um arsenal complexo de armas de destruição físicas e psicológicas. A maneira como a política interna e externa norte-americana se movimenta é sempre um termômetro de como a realidade geopolítica se comporta. Um país que tem quase mil bases militares ao redor do mundo, e que domina o capital monopolista tanto nas Américas como na Europa, é sempre o DJ que comanda a festa dos bestiais burgueses e latifundiários. Com isso, as próximas eleições presidenciais no país, marcadas para 5 de novembro de 2024, têm sido uma das principais manchetes dos noticiários mundiais. Dois fatores tornam esse evento um dos mais importantes da década: a tentativa do fascista e supremacista branco Donald Trump de voltar a comandar a máquina de guerra norte-americana, e a candidatura de Kamala Harris, pelo Partido Democrata, uma mulher negra; algo que seria histórico independente de seus resultados posteriores. Só é possível entender esse movimento, e como ele tem refletido na esquerda social-liberal brasileira, se olharmos para 2008.

A vitória de Barack Obama em 2008, tornando ele o primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos, causou um alvoço dentro e fora do país. Muitos celebraram, sob a perspectiva de que isso seria uma possível resposta para o racismo e a violência supremacista branca que assola o país há séculos, simbolizado num corpo negro alcançando o cargo máximo da maior potência mundial. Do outro lado, o supremacista branco, a vitória de Obama se tornou a válvula de escape para que esses elementos regurgitassem todo seu ódio racial, argumentando contra uma possível imigração em massa, o que acabaria com a “pureza” anglo-saxã dos norte-americanos.

No rap, movimento predominantemente negro, com suas bases fincadas na militância radical – ainda que, ao longo do tempo, isso tenha se diluído no pensamento do capitalismo negro –, a vitória de Obama representou múltiplas possibilidades. Esse evento não chegou a criar um racha no movimento, mas deixou marcas profundas sobre o entendimento diversificado dos integrantes do hip-hop sobre o que representaria um negro como presidente. Sendo um movimento com influências que vão desde o nacionalismo negro mais reacionário até o maoísmo negro, o hip-hop, à sua maneira, respondeu à realidade posta por meio de músicas, entrevistas e debates, antes, durante e após o fim dos dois mandatos de Obama, em 2017.

Se Kamala Harris é a aposta da vez nas centro-esquerdas pelo mundo, frente à possibilidade de ser uma barragem contra o fascismo de Donald Trump, é importante olharmos de forma concreta sobre o governo Obama em todas as suas particularidades, principalmente pensando esse governo dentro do sistema econômico e político dos Estados Unidos, e o que podemos esperar de Harris, dentro e fora dos Estados Unidos – claro, a partir da história, do marxismo, mas também do rap.

“Presidents to represent me (Get money)
I’m out for presidents to represent me (Get money)”.[4]

“My president is black, the cocaine is white”: Obama e a esperança pela representatividade

Obama assumiu a presidência dos Estados Unidos no dia 20 de janeiro de 2009. O slogan da sua campanha, ”Yes, We Can” (Sim, nós podemos), foi inspirado no slogan da United Farm Workers – “Sí, se puede” –, um sindicato de trabalhadores agrícolas dos Estados Unidos. Ainda em 2008, durante a campanha presidencial do então senador Barack Obama, will.i.am, membro do Black Eyed Peas, lançou uma música com o slogan, numa tentativa de alavancar votos para Obama. O videoclipe da música ganhou o Emmy Award naquele mesmo ano. A música revivia o passado dos Estados Unidos e dos afroamericanos, desde a escravidão, até as formas de opressão atuais e, diante da candidatura de Obama, afirmava que, “sim, nós podemos”; uma visão de que a eleição do primeiro presidente negro da história do país traria grandes mudanças para os negros.

Essa não foi a única música em apoio a Obama que antecedeu a vitória do presidente. Já em 2004, o rapper Common, junto de Nas e Jadakiss, no remix da faixa Why, cantou: 

“Por que Bush está agindo como se estivesse tentando pegar Osama?
Por que não o destituimos e elegemos Obama?”

A faixa desempenhou um importante papel na conscientização do eleitorado americano sobre a necessidade de eleger Obama frente ao genocida e desastroso mandato de George Bush, um dos maiores criminosos de guerra do século 21.

Novamente, em 2007, Common lançaria outra faixa com linhas em elogio a Obama. The People trazia em sua letra o verso “meus raps inflamam as pessoas como Obama”, uma alusão ao reconhecimento que Obama vinha recebendo do eleitorado americano. Apesar da margem apertada – Obama recebeu 52,93% dos votos, enquanto seu opositor, o candidato republicano John McCain, ficou com 45,65% dos votos –, as profecias de Common, Nas e Jadakiss se concretizaram.

Sobre a vitória de Obama, o lendário rapper KRS-One, em uma entrevista sobre a história do hip-hop e a política americana, fez uma análise sobre a composição racial da base de eleitores de Obama:

“A verdade é que Barack Obama não foi eleito pelos negros. Mesmo que todos os negros da América tivessem votado no Obama, não seria o suficiente, porque é um grupo pequeno nos Estados Unidos. Latinos, brancos, eles disseram: ‘Nós queremos ele, um negro no governo’”.

Dados do Roper Center for Public Opinion Research de 2008 corroboram a fala do The Teacha[5]. Dos 18.018 eleitores entrevistados, 74% (13.300 pessoas) eram brancos, e 13% (2.342 pessoas) eram negros. Entre os brancos, 45% votaram em Obama, e 55% votaram em McCain. Entre os negros, 95% votaram em Obama, e apenas 4% votaram no candidato republicano. Mas, em números absolutos, o número de brancos que votaram em Obama (5.733) é mais que o dobro do número de negros (2.224). Esses dados demonstram as dificuldades que o povo negro enfrenta na política norte-americana, sendo uma minoria que, sob a guarda da democracia liberal, depende muito dos brancos, em um país extremamente racista.

O começo do governo Obama foi promissor. Um dos seus primeiros atos como presidente foi ordenar o fechamento da prisão de Guantánamo – que fica dentro de uma base naval norte-americana, ilegalmente construída no território cubano –, mas logo o Congresso rejeitou tal proposta. Ainda sobre Cuba, foi no governo Obama que os Estados Unidos voltaram a ter uma embaixada na Ilha Caribenha e uma reaproximação diplomática, o que resultou, em 2014, na soltura dos chamados “Cinco heróis de Cuba”, após passarem mais de 16 anos presos pelo crime de espionagem.

No plano interno, Obama desenvolveu uma série de pequenas reformas progressistas. Uma delas foi revogar a ordem executiva do ex-presidente George Bush que proibia ajuda federal às organizações que forneciam aconselhamento sobre aborto. É importante lembrar que Obama assumiu a presidência no rescaldo da crise capitalista de 2007-2008. Vários pacotes de estímulo à economia – um deles de quase 800 bilhões de dólares – foram sancionados por Obama, mas grande parte das assistência foram dadas a pequenas e grandes empresas, como a General Motors e Chrysler, evitando a falência de duas empresas privadas com subsídios estatais – o que, infelizmente, é mais comum do que qualquer liberal finge. Uma pequena queda na taxa de emprego foi superada ao longo do seu mandato, além da volta do crescimento do PIB.

Mas a grande política do primeiro mandato de Obama foi a chamada Lei de Proteção e Cuidado Acessível ao Paciente, popularmente conhecida como ObamaCare. Não tendo um sistema universal de saúde – o governo fornece assistência gratuita apenas para pessoas de baixa renda (Medicaid), e para as pessoas a partir de 65 anos (Medicar) –, os cidadãos americanos têm que arcar com os custos exorbitantes dos planos de saúde. Dados da KFF mostram que o custo médio de um plano de saúde familiar nos Estados, em 2023, era de quase 24 mil dólares (133 mil reais).

Uma das premissas do ObamaCare era ampliar a faixa econômica de acesso ao programa Medicaid, além de obrigar empresas com mais de 50 funcionários a oferecer planos de saúde para os trabalhadores. Ainda que não se aproximasse de um sistema como o SUS, em 2015 o programa era apoiado pela maioria da população americana. Os grandes beneficiados pelo ObamaCare foram os negros, que, pela desigualdade social e racial nos Estados Unidos, eram mais afetados pela falta de acesso à saúde. Uma pesquisa de 2013 mostrava que 91% dos afro-americanos aprovaram as novas políticas de saúde do governo Obama, enquanto somente 29% dos brancos aprovavam as mudanças.

Além desses programas, Obama também trabalhou ativamente sobre outras questões sociais, como a regularização de imigrantes ilegais nos Estados Unidos – apesar de não conseguir superar as obstruções do Senado –, além de tentar reformar o sistema judiciário do país no que tange à política de drogas, encarceramento e controle de armas, e sancionou uma lei que tornava crime de ódio o ataque contra mulheres e a população LGBT, revogando, também, a política “Don’t ask, don’t tell”, de 1993, que impedia pessoas LGBT de ingressar nas Forças Armadas.

Todas essas reformas trouxeram visões completamente distintas sobre Obama. Se, por um lado, sua aprovação chegou a 82% em janeiro de 2009 – percentual que oscilaria muito nos oito anos que ocupou a Casa Branca, mas que, ao fim do segundo e último mandato, em 2017, ficou em 60% –, Obama foi muito criticado por seus opositores republicanos, que o acusaram de ser um marxista.

Sendo um presidente negro, vale ressaltar que a média de aprovação de Obama entre os afro-americanos, até 2014, era de 84%. Se pudéssemos resumir esses números em uma faixa, ela seria Country Boy, do icônico rapper Soulja Boy:

“Eu vivi para ver um presidente negro,
vivi para ter uma residência de 20 milhões de dólares.”

Fato é que Obama teve uma grande relação com vários rappers, e com o  movimento cultural afro-americano como um todo. No que foi chamado de New Deal da cultura, Obama apoiou uma série de reformas e deu diversos incentivos para o campo das artes. Sendo um amante do basquete e do rap, Obama se aproximou não apenas dos artistas e jogadores, mas também do eleitorado, principalmente afro-americano, pela sua postura de “gente como a gente”. Em 2016, durante o programa Sway in the Morning, ele elencou seus cinco rappers favoritos. Um deles, Jay-Z, foi um grande parceiro e apoiador de Obama, chegando a ser homenageado pelo presidente no Hall da Fama dos Compositores. Em contrapartida, Obama afirmou que a faixa My 1st Song’, de Jay-Z, o ajudou durante a presidência. Essa relação com os rappers seria expressa de forma um tanto cômica em Palmolive, faixa de Freddie Gibbs para seu álbum Bandana, em parceria com Madlib. Nela, o lendário rapper Pusha T conta sobre sua visita à Casa Branca:

 “Obama abriu suas portas mesmo sabendo que eu fui um criminoso”.

A experiência retratada por Pusha T aconteceu durante uma reunião sobre a iniciativa My Brother’s Keeper – junto de Obama, e os rappers Nicki Minaj, Rick Ross, J. Cole, Ludacris, Alicia Keys, e Chance the Rapper –, que visava apoiar programas que mantêm os jovens fora do sistema de justiça criminal.

Diante desse panorama, é interessante notar como o primeiro mandato de Obama foi, dentre todas as limitações, diferente da maioria dos outros governos – democratas ou republicanos – no tratamento à população negra. Mas o povo negro não é unido essencialmente por sua cor, e o fato de Obama ser negro não o impediu de ter políticas tão ou mais exploratórias do que seus antecessores. Os Estados Unidos, nunca é demais lembrar, são uma nação cujos interesses internos estão intimamente ligados à política externa e a manutenção do capitalismo em seu próprio território, ainda que possa haver pequenas mudanças sobre renda, participação do estado e pequenas reformas que beneficiem os mais pobres. Essas contradições inconciliáveis no sistema de mais-valia se expressaram nas políticas internas de Obama, e principalmente no seu papel como condutor da máquina imperialista fora dos Estados Unidos. Esse processo refletiu numa outra parcela de rappers, que não se contentavam apenas com um presidente negro – queriam, mais do que isso, um presidente que tratasse os demais povos com dignidade. Era necessário olhar para fora, e entender a política concreta de Obama, dentro de todas as suas múltiplas determinações, indo além da representatividade para os negros americanos.

Rappers e fãs de rap do lado de fora da Casa Branca em 19 de janeiro de 2009, durante a presidência Obama. (Foto: Michael Foley / Flickr)

“I’m Obama pushing the button”: as desilusões com um representante negro do imperialismo e colonialismo

“Há um descompasso entre o Obama simbólico e o Obama prático, entre o dito e o feito. Se a vida dos norte-americanos mais pobres melhorou sob sua gestão, a política externa de seu mandato foi a de implantar o terror e a barafunda em outras terras.”

A citação acima foi feita pelo jornalista Haroldo Ceravolo Sereza, em matéria para a Opera Mundi, em 2017, dias antes do final do último mandato de Barack Obama. Ela resume muito bem o que foram os oito anos em que Obama esteve à frente dos Estados Unidos. Essa relação entre políticas internas e externas pode parecer fútil para países chamados “em desenvolvimento” ou que não têm grande protagonismo no cenário global. Mas é importante não perder de vista a relação dialética entre essas duas arenas de disputa quando analisarmos os Estados Unidos, uma potência global, como outrora foram a França, a Inglaterra, e outros países europeus no período mais recente da história; países de grande tradição colonial e imperialista.

No clássico Como a Europa subdesenvolveu a África, do importante historiador e militante pan-africanista Walter Rodney, essa relação entre política interna e externa fica explícita em sua análise do subdesenvolvimento como uma via de mão dupla. A grande tese de Walter é que a África desenvolveu a Europa na mesma proporção em que a Europa subdesenvolveu a África. Isso também vale para os Estados Unidos, e todos países que eles colonizaram, saquearam ou fizeram de quintal – Filipinas, Iraque, Afeganistão, Cuba, Vietnã, Laos, Camboja e América Latina são só alguns exemplos.

Lélia Gonzalez, em Por um feminismo afro-latino-americano, nos elucida que “Como já disse o grande escritor negro assassinado na Guiana, Walter Rodney, o modelo de desenvolvimento econômico estabelecido no Brasil pelos militares foi para subdesenvolver os setores mais pobres deste país e, portanto, os setores negros. Está lá. […] Companheiros, não nos esqueçamos”.[6]

Resolvida a questão da contradição entre política interna e externa, a faixa Song 32, de 2020, da rapper socialista noname, resume de forma rápida o que foi a política externa do primeiro presidente negro dos Estados Unidos:

“Eu sou o patriarcado no domingo, não me provoque, eu sou a Viacom
Vocês, manos, têm o dinheiro do Diddy, não me provoquem
Eu sou a bomba atômica, eu sou Obama apertando o botão, na Líbia, no Paquistão
Humanamente um hipócrita, o pecador e o civil
O mais mesquinho que existe, eu sou a América no seu melhor”

Noname é um grande nome de uma nova geração de rappers que tem se alinhado cada vez mais à esquerda. Indo além, para questões como o machismo e o patriarcado como formas concretas de dominação no capitalismo, e fazendo uso de um eu-lírico que ironiza a política norte-americana, ela cita dois fatos que ocorreram durante a administração Obama: o bombardeio do Paquistão e da Líbia. Em novembro de 2011, na fronteira com o Afeganistão, 24 soldados paquistaneses morreram após um bombardeio da OTAN comandado pelos Estados Unidos, sob a figura do seu presidente. A desculpa foi que “soldados paquistaneses abriram fogo contra o exército da OTAN”, o que logo foi desmentido. Em resposta, a então secretária de estado norte-americana, Hillary Clinton – a mesma que, em 2017, defendeu abertamente o bombardeio da Síria pelos Estados Unidos –, ligou para o presidente paquistanês, lamentando este “trágico” e “involuntário” acidente, e ressaltando o “respeito dos Estados Unidos pela soberania do Paquistão”.

Meses antes do ataque que matou 24 soldados paquistaneses, os Estados Unidos já haviam invadido o país de forma ilegal para capturar Osama Bin Laden, o famoso algoz do 11 de setembro, que, por anos, foi não apenas financiado pela CIA, mas, por meio dela, se tornou um líder reacionário e herói da resistência afegã contra a invasão soviética em 1979.

Mas ainda mais sanguinário foi o episódio da Líbia, relatado por Noname em Song 32. O país africano, dirigido por quatro décadas por Muammar Gaddafi – figura controversa, avessa à democracia burguesa e ao marxismo, desenvolvendo uma espécie de democracia popular e socialismo árabe, presentes em seu Livro Verde – tinha uma das maiores economias do continente africano. Dentre várias iniciativas, Gaddafi esteve à frente da Organização Africana de Comunicação Regional, cuja finalidade era a criação de satélites próprios para os africanos, o que permitiria maior autonomia frente aos valores exorbitantes de satélites europeus. Além disso, Gaddafi liderou a União Africana, organização que tentava frear as aspirações intervencionistas dos Estados Unidos, que desejava instalar no continente o Comando Militar da África. Em 20 anos, a Líbia investiu mais de 150 bilhões de dólares em vários países africanos, ajudando no desenvolvimento da economia e infraestrutura dessas nações. Sua grande cartada, a tentativa de criar a Gold Dinar, uma moeda única africana que seria usada em todas as transações com o petróleo líbio, foi o último suspiro de seu governo.[7] Em 2011, a Líbia foi afundada em uma guerra civil entre as forças leais a Gaddafi e o chamado Conselho Nacional de Transição da Líbia, fortemente apoiado pela OTAN. No mesmo ano, Gaddafi foi capturado e morto pelas forças opositoras líbias, após seu carro ser atingido por um míssil disparado por um avião militar francês. Obama, uma das lideranças por trás da guerra que assolou a Líbia, disse que “a morte do ditador” encerra um “capítulo doloroso para a Líbia”. Não foi o que aconteceu. Em 2015, os Estados Unidos fizeram uma intervenção no país, sob a desculpa de estar combatendo o Estado Islâmico (ISIS), e o resultado foi tão desastroso que o país, além de mergulhar numa enorme dívida com empréstimos externos, foi tomado por gangues armadas e até mesmo pelo estabelecimento de um mercado de escravos, sendo vendidos por pouco menos de 2 mil reais.

Segundo a CNN Brasil, em 2021, a Líbia vive uma “estranha saudade de Gaddafi”. Talvez o jornalista Márcio Sampaio de Castro possa explicar essa estranheza[8]:

“Retornando à Líbia, o país que apresentava, até o início de 2011, o maior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da África, um PIB per capita superior ao brasileiro e uma taxa de crescimento de 10,64%, segundo dados do FMI, encontra-se agora às voltas com uma infraestrutura bastante danificada, principalmente pelos bombardeios humanitários, uma sociedade em estágio de pré-anomia e um Estado tomador de empréstimos internacionais voltados à sua reconstrução. A pergunta que fica é: para quem a guerra foi um bom negócio?”

Um ano antes do final de seu mandato, Obama declarou que “o pior erro do seu governo foi não ter pensado no futuro da Líbia”. O futuro foi pensado, e Obama sabia qual era: trazer a Líbia novamente para a órbita do colonialismo norte-americano foi o objetivo inicial, alcançado em seu mandato. A ironia disso tudo é que, em 2009 – com apenas um mês de governo –, Obama recebeu o Prêmio Nobel da Paz, por, supostamente, abrir um diálogo com países muçulmanos e outros inimigos dos Estados Unidos. Em 2017, a BBC noticiou um segundo prêmio a Obama, não tão glamuroso como o Nobel: ele se tornou o primeiro presidente da história dos Estados Unidos a estar em guerra durante todos os dias de seus dois mandatos. Só em 2016, os Estados Unidos realizaram 26.171 bombardeios, o que daria algo em torno de 70 ações de bombardeios por dia, em países como Síria, Afeganistão, Iêmen, Líbia, Somália, Paquistão, entre outros. Cada um dos mísseis usados nos quase 27 mil ataques tiveram seus botões de disparo acionados por Obama.

Por conta dessa desastrosa e inevitável política de Obama com o país africano, Killer Mike, na faixa Reagan, cantou:

“Ronald Reagan era um ator, não um fator
Apenas um funcionário dos verdadeiros mestres do país
Assim como os Bush, Clinton e Obama
Apenas mais um cabeça falante contando mentiras em teleprompters
Se você não acredita na teoria, então argumente com esta lógica:
Por que Reagan e Obama foram atrás de Gaddafi?
Invadimos solo soberano, indo atrás do petróleo
Tomar países é um hobby pago pelo lobby do petróleo”

Killer Mike dá uma ótima dimensão das causas atuais do imperialismo norte-americano, e um certeiro e melancólico diagnóstico: os ocupantes da cadeira presidencial da América são apenas fantoches da burguesia, ventríloquos que, parte ou não do conglomerado econômico e social que domina a sociedade ocidental, regem as políticas que beneficiam os parasitas, em troca de alguns trocados e milhões de vidas.

Na mesma linha de Killer Mike, em junho de 2011, o rapper Lupe Fiasco chamou o presidente Obama de “terrorista”:

“Para mim, o maior terrorista é Obama nos Estados Unidos da América. Estou tentando lutar contra o terrorismo que está causando as outras formas de terrorismo. Você sabe que a causa-raiz dos terroristas é o que o governo dos EUA permite que aconteça. As políticas externas que temos em vigor em diferentes países inspiram as pessoas a se tornarem terroristas.”

No mesmo ano, o rapper lançou a faixa Words I Never Said. Fiasco afirmou que “A Faixa de Gaza foi bombardeada, o Obama não falou merda nenhuma. Por isso não votei nele e não vou votar na próxima”. Esse verso demonstra a insatisfação de uma parcela da população americana e dos rappers com a política externa de Obama. Apesar das cínicas doações de Obama aos palestinos nas últimas horas de seu governo, e da declaração em defesa da criação do Estado Palestino, o que Obama fez por debaixo dos panos foi fortalecer a máquina de guerra israelense, cujas armas de última geração, acompanhadas por uma das mais potentes agencias de informação, acertam, em sua maioria, civis inocentes.  Em 2016, penúltimo ano de seu segundo mandato, Obama ofereceu um pacote de ajuda militar a Israel no valor de 38 bilhões de dólares, o maior já oferecido pelo governo americano na história. O valor equivale a três vezes o PIB da Palestina em 2016.

Um dado importante sobre a bilionária ajuda dos Estados Unidos ao Estado de Israel pode ser encontrada em matéria do jornal O Globo, de 14/09/2016 [9]:

“Uma das condições impostas pelos EUA é que, gradualmente, Israel desembolse todo o dinheiro na compra de equipamento militar dos Estados Unidos.”

O complexo industrial-militar dos EUA é um dos maiores braços da burguesia imperialista norte-americana. Em 2022, 45% das exportações de armas pelo mundo saíam de empresas dos Estados Unidos. Além disso, cinco das maiores empresas de armamento no mundo são norte-americanas. Em 2023, as projeções eram de que a indústria armamentista norte-americana teria o maior lucro da história, movido pelos conflitos em Gaza e na Ucrânia.

Não é à toa que Obama, por diversas vezes, não apenas injetou bilhões de dólares na Ucrânia, mas também declarou que “uma intervenção (russa) na Ucrânia teria custos”. Os custos seriam mais injeção de dinheiro no país, não para que a Ucrânia possa se defender da invasão russa, mas para que o complexo industrial-militar possa lucrar ainda mais dinheiro, para, quem sabe, colocar em prática o que Hitler não conseguiu: uma Drang nach Osten (necessidade de ir para Leste), em nome do capital, da abertura de mercados, e da submissão do que resta de países autônomos.

O governo Obama deixou um rastro de destruição pelo mundo, principalmente no Oriente Médio, África e Leste europeu, e nada disso pode ser ignorado em função das importantes mudanças domésticas que executou nos Estados Unidos – a maioria delas logo seriam destruídas pelo governo de Donald Trump, um fascista um pouco menos limpinho e carismático. Corroborando, de forma crítica, o que cantou o rapper Baco Exu do Blues, em 2018, eles realmente “têm muito medo de um próximo Obama”. Mas, diferente do que acredita o rapper, não são os brancos que temem esse próximo Obama –, incorporado na candidatura de Kamala Harris –, mas sim os africanos, árabes, os latino-americanos, e povos do leste europeu, que são os alvos do teatro de guerra do imperialismo, seja ele branco, preto, marrom, amarelo ou vermelho.

Num discurso proferido no dia 23 de Março de 1969[10], o histórico militante do Partido dos Panteras Negras, Landon Williams, fez uma análise que, direcionada para os defensores de um capitalismo negro da sua época, serve muito bem para pensar Obama, Kamala ou qualquer outro presidente negro dos Estados Unidos:

“Nós no Partido dos Panteras Negras nos recusamos sermos enganados pela palavra ‘negro’. Entendemos que o capitalismo, o capitalismo burocrático como existe no mundo hoje, é o nosso principal inimigo, e não importa qual cor você coloca como prefixo, ele continua o mesmo. Tão sangrento e perverso quanto.”

Os devaneios de uma esquerda anti-comunista e entregue aos deleites de um identitarismo desligado da luta de classes, mais alinhado ao pós-modernismo, não podem tratar o imperialismo como uma brincadeira de Twitter. Obama e Kamala não são de Wakanda, nem de terreiro, como a jornalista Cynara Menezes, conhecida pelo seu site, Socialista Morena, vem insinuando – o que não faria a menor diferença caso fosse verdade.

Inclusive, em artigo de 20 de janeiro de 2017, a jornalista afirmou:

“Vi muita gente de esquerda compartilhando estatísticas sobre como sua presidência (de Barack Obama) foi tão assassina quanto às demais. O governo Obama matou mais civis inocentes em ataques de drones, inclusive crianças, do que seu antecessor, o republicano George W.Bush. Não vou nem mencionar a descarada espionagem sobre outros países e o apoio ao golpe parlamentar que derrubou Dilma Rousseff. Uma decepção para quem esperava algo diferente vindo do ‘império’.

Mas, com tudo isso, eu ainda acho que Obama e sua mulher Michelle foram o melhor que os EUA tiveram a oferecer ao mundo até hoje, em termos de governantes. Duvido que saia coisa melhor dali.

Em primeiríssimo lugar, por haver representado uma inegável injeção de autoestima à população negra norte-americana e de todo o planeta. Yes, they can. Os negros podem.”

Os bombardeios, o colonialismo e a pilhagem de corpos pelo mundo são mero detalhe.

Essa é uma tentativa, um tanto quanto caricata, de emplacar o partido democrata como a espada que vai impedir o mundo de cair novamente nas garras do fascismo Trumpista, e uma visão idealista e anti-dialética de como pessoas negras se comportam em determinadas circunstâncias históricas. Da mesma forma que o governo Lula, sempre protegido a qualquer custo contra o “retorno da direita”, tem sido defendido de forma cega, a-histórica e completamente fora da realidade que cerca o terceiro mandato do que foi uma das maiores lideranças da esquerda de outrora.

Isso vale para os Estados Unidos, como vale para o Brasil – um quintal norte-americano –  onde os partidos de esquerda prezam muito mais pela propaganda oportunista, utilizando as minorias como palanque – algo como a celebrada imagem de Lula subindo a rampa do Planalto, em 2023 – e prometendo uma mudança radical pela representatividade, ao invés de uma frente realmente de esquerda, que, dentre as exigências e necessidades justas das minorias oprimidas, se levantasse contra o capitalismo no Brasil e no mundo.

Longe de generalizar esses atores – basta pegar como exemplo o trabalho maravilhoso que a deputada Erika Hilton vem conduzindo –, é necessário nos isolarmos dos oportunistas, pensarmos nas lições que grandes pensadores negros nos deixaram, e ignorar os brancos que, por uma espécie de culpa, vêem nos povos racializados a mudança que eles esperam, mas não têm coragem de ajudar a executá-la, nos usando sempre como bucha de canhão.

A palavra da moda é o identitarismo. Sendo uma faca de dois gumes, ou a “unidade dos contrários”, como afirmaria o Presidente Mao Tsé-Tung, essa categoria serve tanto como espantalho dos supremacistas brancos, como dos marxistas ortodoxos – não os ortodoxos no método, mas nas análises mais simplistas de um mundo recentemente modernizado pela máquina, pela indústria e pelo capital.

O psicanalista e doutor em ética e filosofia política, Douglas Rodrigues Barros, em sua crítica ao identitarismo como categoria, elucida como as identidades minoritárias foram da exclusão à aparente inclusão por meio da sua captação pelo mercado: 

“Para legitimar a exclusão, a noção racial tornou-se o onipresente azeite a lubrificar a máquina de um inconsciente que naturalizou a separação humana entre raças. Basta olhar o levante de extrema-direita no Reino Unido, ocorrido na semana passada, para entender como a noção racial é sempre a alavanca privilegiada dos fascismos.

Não bastasse isso, o capitalismo do século XXI aprendeu que, distante da tensão do senhor e do escravo, o trabalhador podia ser conduzido à colaboração. Para tanto, sequestrar sua demanda atrelando-a ao consumo seria fundamental ao passo que na gestão da vida social era preciso um reconhecimento unilateral das demandas de pertencimento de grupos que serviriam para encobrir a dimensão concreta das lutas.”

Se Kamala, como afirmou Obama, é sua herdeira política, por afinidade política, cavada num identitarismo liberal, devemos combate-la da mesma maneira, caso contrário, a história irá se repetir como farsa.

Um grito contra o nacionalismo cultural: o rap e a linha de massas contra o imperialismo colorido

“Vai, Rihanna, vai
Veja o jato de caça voar alto
A máquina de guerra fica glamourizada
Nós jogamos o jogo para passar o tempo
Vai, Beyoncé, vai
Veja o jato de caça voar alto
A máquina de guerra fica glamourizada
Nós jogamos o jogo para passar o tempo
Vai, Kendrick, vai
Veja o jato de caça voar alto
A máquina de guerra fica glamourizada
Nós jogamos o jogo para passar o tempo”
Noname em Namesake, do álbum Sundial, de 2023.

Uma segunda parte da já citada entrevista do lendário rapper KRS-One pode servir como uma síntese da relação contraditória entre um representante negro do governo norte-americano, e o que ele realmente pode fazer pelos negros, não apenas dos Estados Unidos, mas de todo o mundo:

“É claro que nós, negros da América, apreciamos isso (a vitória de Obama). ‘Finalmente, nós temos um presidente negro, e blá, blá, blá, e agora, podemos passar para um outro nível.’ Mas essa alegria e excitação .. vai com calma, menos, ok?”

A maneira como KRS enxerga essa questão vai além de uma representatividade vaga. A faixa Namesake, que abre esse trecho do texto, serve como um outro ponto de inflexão no rap norte-americano em relação à ligação de alguns rappers com a política. Se em 2020 Noname já havia atacado, em Song 32 – de forma honesta e certeira –, o rapper J Cole, que zombou da cantora em sua música Snow On Tha Bluff, Namesake é um ataque ainda mais direto contra os artistas e rappers negros norte-americanos, muitos deles bilionários, por se absterem de políticas mais concretas contra o racismo, e por serem o símbolo de um capitalismo e uma elite negra.

Essa elite representa o que Linda Harrison, lendária revolucionária negra e militante do Partido dos Panteras Negras, chamou de Nacionalismo Cultural. Para Harrison [11]:

“O nacionalismo cultural se manifesta de muitas maneiras, mas todas essas manifestações estão essencialmente baseadas em um fato: uma negação e uma ignorância universal das atuais realidades políticas, sociais e econômicas e uma concentração no passado como quadro de referência. (…)

Como o nacionalismo cultural não oferece nenhum desafio ou risco contra a ordem social vigente, o aumento no contingente de atores, estrelas de cinema, assistentes sociais, professores, oficiais de condicional e políticos ‘negros e orgulhosos’ é imenso. A posição da burguesia e da classe superior não é um obstáculo para o negro e vice-versa. A estrutura de poder, depois da necessária luta, tolera e até venera esse orgulho recém-encontrado, o qual ela utiliza para vender cada produto que existe sob o sol. Ela venera e tolera qualquer coisa que seja inofensiva e não apresente qualquer ameaça à ordem existente. Até mesmo seus maiores representantes dão boas-vindas a este orgulho e o transformam em ‘capitalismo negro’ e fenômenos relacionados. Todo mundo é negro e a burguesia continua a odiar seus irmãos e irmãs negros menos afortunados, e os oprimidos continuam a desejar.”

Se a eleição de Donald Trump, em 2016, demonstrou uma imensa aversão dos negros à figura do multi-bilionário fascista, isso diz mais sobre o medo de ser governado por um supremacista branco do que pelas qualidades de Obama, Kamala e os democratas em geral. Esse nacionalismo cultural, que afaga o ego das elites negras, mas também de pessoas comuns, nos Estados Unidos e no Brasil – representado por setores das esquerdas eleitoreiras, alguns grupos autônomos de panafricanistas à direita e até por grandes autores do pensamento decolonial –, serve como uma proteção dupla, que reage tanto ao lado do receio quanto à política institucional, dominada por uma branquitude racista, ou alheia à realidade do povo negro, mas também como um alívio para a falta de partidos e organizações de grande porte que possam representar os interesses das massas, e que poderiam fazer o trabalho árduo, longo, mas funcional, para criar uma vanguarda realmente popular.

Esse fenômeno foi observado e desenvolvido pelo grande marxista e sociólogo Clóvis Moura, em Sociologia do Negro Brasileiro.

“(…) nesse momento cruzam-se duas unidades: o negro candidato e o negro eleitor, o primeiro saído do universo letrado e o segundo, quase sempre, do universo plebeu. E, conforme já analisamos anteriormente, se o primeiro universo, letrado, aparece como o componente de prestígio social e político, compondo o setor politizado e instruído, com isto capacitando-se a cargos de status elevado política e economicamente, o segundo continuará sendo objeto, elemento passivo no processo eleitoral e com isto não vê diferença entre votar em um candidato branco ou em um negro, pois ambos o tratam da mesma forma, isto é, como objeto dos seus desejos de mobilidade social e política. (…) Toda uma carga ideológica do negro plebeu ou marginal é descarregada catarticamente por ele contra o ‘negro branco’, isto é candidato. (…)

A princípio, com o objetivo de reencontrar e recuperar a identidade étnica, o Movimento Negro busca um retorno à África, através da valorização de sua cultura e da raça negra, embora não se proponha à recuperação da totalidade africana mas apenas ao reconhecimento de uma marca cultural historicamente identificada ao grupo.

É evidente que esse discurso cultural como articulador de uma estratégia político-eleitoral tem pouco significado para o universo do negro da plebe. Embora se possa supor, em nível teórico, uma possível revivescência, através dele, da consciência étnica do negro plebeu, na prática eleitoral isto no entanto não se verifica.”

Dadas as questões ligadas ao tempo histórico em que Clóvis escreveu esse texto, principalmente na tese de que os “candidados negros saem do universo letrado” – hoje vemos uma quantidade imensa de jovens negros ingressando na política institucional, e até mesmo obtendo certa quantidade de votos e cargos – o autor articula a necessidade histórica da junção da identidade racial com a consciência da classe, uma “classe para si”.

Para isso, o negro precisa se organizar numa luta jamais vista contra o capital, o imperialismo, o colonialismo, e se aliar a todos aqueles povos que, por séculos, vem sofrendo, dia após dia, com o massacre de sua identidade e sua existencia. Se nosso líder for um negro, que ele seja, como cantou Edi Rock, “de crédito popular, como Malcom X em outros tempos foi na América, que seja negro até os ossos, um dos nossos.”[12]. Nosso arsenal é repleto de “um dos nossos” e não precisamos de nenhuma mão negra apertando os botões que levam ao apocalipse uma imensa parcela do mundo para que sejamos livres.

A acadêmica e ativista negra Keeanga-Yamahtta Taylor, em seu artigo O pecado original de Barack Obama: a ilusão pós-racial da América, reafirma a necessidade de uma organização de massas que lute contra a raiz do racismo, em contrapartida às eleições e ao pequeno poder das urnas:

“A formação de organizações dedicadas a combater o racismo por meio de mobilizações em massa, manifestações de rua e outras ações diretas era evidência de uma esquerda negra em desenvolvimento que poderia disputar a liderança contra forças mais estabelecidas — e mais conservadoras tática e politicamente.

O establishment político negro, liderado por Obama, mostrou repetidamente que não era capaz de realizar a tarefa mais básica: manter crianças negras vivas. Os jovens teriam que fazer isso sozinhos.”

Houve muita crença na amenização do racismo, ou mesmo no seu fim, mas o assassinato de George Floyd, em 2020, e os conflitos entre neonazistas norte-americanos e militantes negros, e do chamado New Afrikan Black Panther Party, são pequenos sinais de que não apenas o sonho de um presidente negro não se transformou numa realidade pós-racismo, mas também de que a exterma-direita nos Estados Unidos está mais viva do que nunca.

Se a nova era do rap Bling Bling [13] é ainda mais avassaladora do que a que assolou o gênero nos anos 1990, é certo que ainda existe uma tradição alternativa dentro do hip-hop, que vem desde a velha guarda – simbolizada por KRS-One, Tupac, Dead Prez, Immortal Technique, MF DOOM, Aesop Rock, etc –, até a nova escola, liderada por rappers como Noname e JPEGMafia, que reivindica o socialismo e uma nova forma de sociabilidade onde pessoas sejam desalienadas da produção, e o fetichismo da mercadoria seja abolido. Eles querem o socialismo, e, como artistas, expandem essas ideias por meio de suas músicas, ou em projetos como o Noname Book Club, que leva literatura negra, indigena e revolucionária para pessoas dentro do sistema carcerário, seguindo a tradição do emblemático George Jackson.

O que deve ficar claro com a leitura desse artigo, aos que ainda insistem numa ideia antinômica de bem e mau, de que os benefícios podem suprimir os malefícios § como elaborou Marx, em sua crítica à Proudhon, usando como pano de fundo a escravidão africana[14] –. é a seguinte síntese:

Um carro desgovernado, com suas rodas furadas e sem freios, só pode ser parado pela força de um objeto maior, mais forte, mais resistente.. O governo dos Estados Unidos, longe de qualquer positivismo que lide com suas estruturas em bases duras e estáticas, é um carro desgovernado, que, sob essas condições, só pode causar mais e mais destruição. O objeto maior, mais forte, mais resistente, e que consiga frear esse imperialismo de papel, é a revolução socialista, e não urnas eletrônicas ou fichas de papel com figuras negras e um número ao lado. A ciência histórica do marxismo comprova isso, e, enquanto não houver algo superior a ela, é com essa ciência, e a sua crítica das armas, que devemos trabalhar para dizimar o carro desgovernado do capitalismo, onde quer que ele esteja e qual seja a cor que  tenha.

Longe de assumir uma postura pequeno-burguesa de apologia as armas, ao passo que se dispensa a luta política e as condições sociais e históricas, seria importante que o movimento negro e seus falsos apoiadores olhassem para essa África que tanto reivindicam, e vejam quem foram os seus reais libertadores, quais políticas adotaram, e em qual práxis se apoiaram para tal. A história serve para isso, e não para resgatar, como simples memória a-política, um momento longínquo que em nada interfere na nossa realidade.

Mais uma vez recorrendo ao artigo de Douglas Rodrigues Barros – seu último parágrafo, que lembra um dos grandes discursos de Fred Hampton, Isso é uma luta de classes –, fica evidente qual o tipo de negro, de indígena, de árabe, ou seja qual for a minoria racial, que o capitalismo realmente teme:

“Malcolm X foi morto justamente porque queria ir além dos limites identitários. Retornar à sua resposta é mais do que necessário, é urgente num mundo no qual o futuro do capitalismo ameaça nos levar à extinção. Se o racismo será superado com uma nova forma de sociabilidade… Isso eu não sei. O que sei, com toda certeza, é que nessa forma que vivemos, ele nunca será porque é parte fundante do sistema e nesse momento ele tece um genocídio horripilante em Gaza. Aliás, esse é o local onde o identitarismo se mostra em toda sua potencialidade catastrófica.”

O rap pode e deve ser a linha de frente cultural desse movimento, se ele ainda quiser ser chamado por esse nome e honrar sua tradição. Caso contrário, seguiremos empilhando bombardeios e genocídios – nos aproximando ainda mais do fim do mundo –, como nesse gráfico, que ficou popular na internet. Encontre o ano que nasceu, e lá estará um bombardeio norte-americano para celebrar ou lamentar. O rap, os negros, e os demais povos de cor e classes oprimidas precisam urgentemente de uma data para que esse sistema seja dizimado de uma vez por todas, e não de um dirigente negro para mantê-lo intacto.

Notas:
[1] MARX, Karl. Introdução à Contribuição para a Crítica da Economia Política. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/marx/1859/contcriteconpoli/introducao.htm>. Acesso em: 14 ago. 2024
[2] HAYWOOD, Harry. A Luta pelo Posicionamento Leninista sobre a Questão Negra nos EUA. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/haywood/1933/09/04.htm>. Acesso em: 14 ago. 2024
[3] YACI. “Síntese de História da Cultura Brasileira”, Nelson Werneck Sodré, 1983.Disponível em: <https://ay-aci.medium.com/fichamento-síntese-de-história-da-cultura-brasileira-nelson-werneck-sodré-1983-parte-i-7e02c847012e>. Acesso em: 14 ago. 2024.
[4] Na faixa Dead Presidents II, do clássico Reasonable Doubt, Jay-Z usa a metáfora dos presidentes mortos para se referir ao seu desejo de ganhar dinheiro, já que, nos Estados Unidos, as sete notas de dólar em circulação retratam cinco ex-presidentes dos EUA: George Washington (1732-1799), Thomas Jefferson (1743-1826), Abraham Lincoln (1809-1865), Andrew Jackson (1767-1845) e Ulysses S. Grant (1822-1885).
[5] Kris Parker, The Blastmaster, The Teacha e The Philosopher são alguns dos apelidos de KRS-One, reconhecido como um dos maiores rappers de todos os tempos, e um importante intelectual do hip-hop e do seu quinto elemento, o conhecimento. 
[6] GATO, Matheus. Walter Rodney e a formulação de um conceito emancipatório de desenvolvimento. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2022/11/29/walter-rodney-e-a-formulacao-de-um-conceito-emancipatorio-de-desenvolvimento/>. Acesso em: 19 ago. 2024
[7] CASTRO, Marcio Sampaio de. Líbia, um ano depois. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/mundo/libia-um-ano-depois>. Acesso em: 19 ago. 2024
[8] CASTRO, Marcio Sampaio de. Líbia, um ano depois. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/mundo/libia-um-ano-depois>. Acesso em: 19 ago. 2024
‌[9] GLOBO. EUA fecham acordo de US$ 38 bilhões em ajuda militar para Israel. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/mundo/eua-fecham-acordo-de-us-38-bilhoes-em-ajuda-militar-para-israel-20107968>. Acesso em: 26 ago. 2024.
[10] ANDRADE, Arthur. Capitalismo Negro e o que significa – Arthur Andrade – Medium. Disponível em: <https://medium.com/@chorarthur/capitalismo-negro-e-o-que-significa-8ab7f09eb3ef>. Acesso em: 26 ago. 2024.
[11] MANOEL, Jones.; LANDI, Gabriel. Raça, Classe e Revolução A Luta Pelo Poder Popular Nos Estados Unidos. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.
[12] Ver Voz Ativa, dos Racionais MC ‘s, lançado em 1993, no disco Raio-X do Brasil.
‌[13] MACIEL, Raul. Bling Bling, da Katú Mirim: aos rappers que ainda estão nessa de ostentar ouro. Disponível em: <https://medium.com/@raulmaciel/bling-bling-da-kat%C3%BA-mirim-aos-rappers-que-ainda-est%C3%A3o-nessa-de-ostentar-ouro-88ecba108a94>. Acesso em: 26 ago. 2024.
‌[14] MARX, Karl. A Metafísica da Economia Política. In: MARX, Karl. Miséria da Filosofia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2017, p.126.
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