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Para esquerda entender os jovens, convém lembrar que o tempo passa

Milhões de jovens só conheceram os governos Temer e Bolsonaro. Cabe ao governo Lula demarcar claramente diferenças, o que não pode ser feito com o arcabouço fiscal
Pedro Marin
11.10.2024 – Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante cerimônia de entrega de novos ônibus escolares do Ministério da Educação para municípios do Ceará no Centro de Eventos do Ceará – Fortaleza. Fortaleza – CE. (Foto: Ricardo Stuckert / PR)

A esquerda enfrenta um enigma: por que os jovens viram à direita? A questão já ressoava à sombra da popularidade de figuras como Milei, na Argentina, Bukele, em El Salvador, e em alguma medida Trump, nos Estados Unidos. Também já havia aparecido com a ascensão de vultos como o deputado federal Nikolas Ferreira (PL). Mas o terror parece ter se cristalizado, ou ao menos o problema apareceu com mais clareza, com o primeiro turno das eleições municipais de São Paulo, em que Pablo Marçal (PRTB) por pouco não foi para o segundo turno, se consolidando, de qualquer forma, como concorrente a líder da extrema-direita brasileira – e tudo com um apoio amplo entre jovens pobres de São Paulo.

De frente pra esfinge, a esquerda lança suas hipóteses: seriam as redes sociais? O celular? Os efeitos da pandemia? A supremacia do consumismo globalizado? O que é que explica que a juventude, outrora símbolo da rebeldia, esteja se voltando à direita? A esfinge não dá respostas definitivas, nem eu pretendo fazê-lo. Mas convém lembrar de algo primordial: o tempo passa.

Não repito o axioma para fixar outro enigma: é que o Brasil tem, de acordo com o último censo do IBGE, 29,8 milhões de habitantes entre 15 e 24 anos. Tomando o topo da pirâmide – aqueles que têm 24 anos –, haveremos de considerar que estes, quando puderam votar pela primeira vez, aos 16, tinham Michel Temer como presidente, e chegaram à maioridade com a eleição de Bolsonaro. Além destes, há outros 13,6 milhões entre 10 e 14 anos, que em breve passarão a formar suas visões políticas. Todo esse contingente não experimentou os governos petistas. A cena política que muitos deles conheceram na adolescência era recheada de militares; quando começavam a trabalhar ou pensavam em procurar um emprego, batiam-se com o pico da desregulamentação trabalhista e das políticas antissindicais; e quanto às políticas sociais, o que encontravam era um teto de gastos, com seus cortes na saúde, educação, habitação, etc. Em resumo: uma boa parte dos jovens que hoje viram à direita, ao contrário das gerações anteriores, não experimentaram sequer as restritas políticas sociais dos governos petistas, ao menos não “por conta própria”.

Certamente, todas as hipóteses lançadas à esfinge têm também sua parcela de culpa. Mas cada uma das hipóteses revela também, por sua parte, ausências: à liberalidade das redes sociais poderíamos opor a democratização da mídia, se tal coisa houvesse sido feita; à ampla popularização do celular, uma reforma educacional efetiva, uma política séria de estímulo à leitura, ou mesmo uma política de desenvolvimento tecnológico que casasse a inserção digital com a popularização dos computadores pessoais (cujo uso tem efeitos bastante diversos daqueles do celular, via real de acesso da maioria da população brasileira à internet); frente os lamentos quanto aos efeitos da pandemia, poderíamos nos perguntar o que estavam fazendo nossos partidos de esquerda enquanto Bolsonaro aplicava sua política genocida – protestavam contra o presidente ou protestavam contra os que protestavam? –; sobre a profusão do consumismo em escala global, deveríamos questionar o que nossas organizações e governos ofereceram como alternativa de sociabilidade, se houve algum tipo de política de nacionalização da produção desses produtos que tantos desejam, ou mesmo uma política cultural ampla que buscasse disputar tais desejos. Parece, portanto, que na ânsia de buscar respostas para explicar o comportamento da juventude, deixamos de lado os pressupostos mais simples: que esta juventude não viveu o melhor que a centro-esquerda pôde entregar; que o melhor que o petismo pôde entregar esfarelou-se como de um dia para o outro; e que aqueles que lideram a esquerda hoje sequer agem no sentido de entregar algo decisivamente melhor. O mais grave: que mesmo após a eleição de Lula em 2022, o melhor que se entrega é um melhorismo rebaixado; afinal, se comemora a criação de empregos de baixíssima qualidade como se estivéssemos testemunhando um crescimento chinês; o arcabouço fiscal de Haddad só se diferencia essencialmente do teto de Temer por sua maior aplicabilidade; os militares que invadiram a cena política em 2016 têm um ministro para chamar de seu dentro do governo Lula (um ministro que inclusive se orgulha disso); as reformas e as privatizações que avançaram ferozmente a partir de 2016 não foram desfeitas nem enfrentadas pelo atual governo. Se é verdade que os governos petistas até 2016, mesmo com todos seus limites, se diferenciavam das administrações Temer e Bolsonaro, também é verdade que o atual governo, até o momento, não se diferencia tanto destas; e tudo o que o jovem conheceu em primeira mão na política brasileira, mais uma vez, é isso. 

O niilismo que afeta o Brasil, e particularmente sua juventude, deve ser tomado por inteiro: na ausência de algo que de antemão organize sua perspectiva de futuro, o homem toma o destino nas mãos, conferindo ele mesmo sentido à própria vida. Os que, como eu, foram jovens ao longo dos governos petistas, viviam, apesar de todos os poréns, uma sensação geral de que os governos organizavam um futuro. A melhoria das condições de vida presentes, somada às políticas de ampliação do ensino básico e superior, faziam crer que era possível ascender por meios habituais, como o estudo e o trabalho; e essa ascensão, mesmo que limitada e desorganizada – abrindo caminho para perspectivas individualistas (a famosa premissa de que milhões melhoraram de vida “por esforço próprio”) –, estava intrinsecamente ligada ao Estado.

A dilapidação do Estado a partir do ajuste fiscal do último governo Dilma e dos governos subsequentes de Temer e Bolsonaro criou uma geração de jovens que não experimentou tal clima: jovens que nasceram e cresceram sob a acertada suposição de que estavam sozinhos, e que seu futuro só poderia ser diferente por meios excepcionais: por uma jogada de sorte, por uma ideia genial ou um esforço descomunal no campo do “empreendedorismo”, etc. Não será tão difícil compreender o porquê este jovem, mesmo que pobre, tão facilmente tenha a percepção de que o Estado e a política só servem para atrapalhá-lo.

Voltando ao niilismo: os mais velhos podem buscar algum sentido no passado; e os mais jovens? Num País em que objetivamente a escassez define as maiorias e a riqueza é o que confere, mais do que a percepção da vitória, a realização dos direitos, o que se pode esperar da juventude? Vários jogam nas roletas, outros voltam-se ao crime, tantos jazem mortos, muitos viram à direita, a maioria sobrevive como pode em meio às opções anteriores, todos sonhando conquistar os direitos inscritos na Constituição pelo único meio que objetivamente é possível: enriquecer. Não há nada de incompreensível nisso tudo: jogam o jogo do mundo que conheceram e conhecem. Um jogo em que os que têm a coragem de ser bandidos têm o justo reconhecimento, e em que as mentiras de coachs ou pastores não são medidas pelo seu valor moral, mas pela sua utilidade prática – embora falsas, são úteis, ao contrário dos resmungos sobre “o que é possível fazer”; aquelas mobilizam as vontades, estes paralisam.

Os “heróis” de um ambiente tão desregulado, sem horizonte de futuro e em que o Estado, em meio às privatizações, cada vez faz menos, e em meio às reformas e ajustes, cada vez faz pior (a saúde e a educação são áreas evidentes) serão quais? Seria Marçal e congêneres tão inexplicáveis assim? Que outro ambiente o governo está oferecendo para que outros “heróis” possam aparecer? É verdade que essa dilapidação do Estado avançou por sobre o petismo: mas é hoje enfrentada de forma decidida por ele?

Parte da juventude vira à direita não por convicção de que lá se encontra uma alternativa; mas por não ver alternativa a não ser esta. O discurso individualista, em que as únicas entidades gregárias viáveis são a família ou a igreja, e no qual é necessário “vencer por contra própria” se populariza porque, no Brasil pós-2016, ele é absolutamente verdadeiro. 

Caberia a um governo como o de Lula torná-lo falso. É verdade que em 2023, sob a PEC da Transição, aumentos nos investimentos em educação e programas como o Pé-de-Meia foram sinais, ainda que tímidos, neste sentido, mas a tendência de cortes para a manutenção do “arcabouço fiscal”, já demonstrada neste ano (em abril foram 4 bi cortados; agora, em outubro, já se discute um novo amplo pacote de cortes), tende a tornar o terceiro governo Lula uma reprise do que os jovens já viram. Por que optariam decididamente por ele em 2026?

​​(*) Pedro Marin é fundador e editor-chefe da Revista Opera. É editor de Opinião de Opera Mundi, autor de “Aproximações sucessivas – O Partido Fardado nos governos Bolsonaro e Lula III”, “Golpe é Guerra – Teses para enterrar 2016”, e co-autor de “Carta no Coturno – a volta do Partido Fardado no Brasil”.

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