Podemos dizer a nós mesmos e aos outros qualquer coisa; o problema é acreditarmos. Os resultados das eleições municipais de São Paulo, apesar dos que insistem em tossir otimismos e iludir-se sob a presunção de combater o derrotismo, representam uma retumbante derrota para Boulos, a nível pessoal, e para a centro-esquerda em geral.
É verdade que uma disputa contra o prefeito em busca de reeleição nunca é fácil; a força da máquina é sempre desproporcional aos melhores esforços de um desafiante. No caso de Nunes, essa máquina foi reforçada pelo amplo apoio conquistado na Câmara, às custas do orçamento da cidade; orçamento este que, por meio dos vereadores, chega às pontas da cidade em melhorias e infraestrutura, mobilizando lideranças comunitárias. Por outro lado, há de se contabilizar o fato de Nunes ter sido um prefeito apagado, fundamentalmente desconhecido da maioria do eleitorado; de ter sido contínua e implacavelmente confrontado por todos os candidatos durante o primeiro turno; e de ter assistido, em meio à campanha do segundo turno, ao maior apagão de São Paulo em anos.
E, ainda assim, os resultados do segundo turno de 2024 repetem os de 2020. Naquela ocasião, Bruno Covas teve 59,38% dos votos (3,16 milhões), contra 40,62% de Boulos (2,16 milhões). Dessa vez, Nunes teve 59,35% (3.39 milhões) contra 40,64% (2.32 milhões) do psolista.
Três fatores expõem a dimensão da derrota contida nestes números: primeiro, em 2020 a campanha de Boulos contou com 7,5 milhões de reais; neste ano, com um montante mais de dez vezes maior: 81,5 milhões. Segundo, embora os resultados sejam quase idênticos, em 2020 Boulos cresceu 20.38% entre o primeiro e o segundo turno (mais de 1 milhão de votos), desta vez, cresceu 11,57% (547 mil votos). Por fim, e o mais importante, em 2020 Boulos venceu o segundo turno em oito zonas eleitorais, todas no extremo sul e leste da cidade, embora no primeiro turno Covas tenha vencido em todas as zonas; desta vez, no segundo turno, venceu em somente três zonas eleitorais, sendo duas delas no extremo sul – embora, no primeiro turno, tenha vencido em 20 zonas eleitorais, a maioria delas no extremo sul e leste.
Os resultados deixam claro que a grande pedra no sapato de Boulos foi Marçal. O candidato-coach venceu o primeiro turno em algumas zonas eleitorais do extremo leste (São Miguel Paulista, Ermelino Matarazzo, Cangaíba, Itaquera, Teotônio Vilela), mas mesmo nas zonas periféricas em que não venceu teve, no geral, uma excelente votação, ficando em segundo ou terceiro lugar, no geral com ¼ ou um pouco mais dos votos.
Os números e os mapas deixam claro que Boulos foi incapaz de conquistar os votos de Marçal, apesar de suas tentativas de identificar seu eleitorado com a “vontade de mudança”. Os 547 mil votos que obteve de um turno ao outro são inferiores aos dados a Tábata Amaral no primeiro turno (605 mil) – a candidata declarou apoio a Boulos no segundo turno. Em comparação, Nunes cresceu 1,59 milhões, pouco abaixo dos 1,71 milhões de votos que Marçal teve no primeiro turno, embora o candidato não tenha apoiado o prefeito. É de se supor que a maior parte desta diferença de 127 mil votos tenha engrossado as abstenções, que cresceram em 391 mil de um turno ao outro. Ou seja: Boulos não conseguiu nem conquistar os votos de Marçal – incluindo os votos recebidos nas periferias, o que não é desprezível – nem estimular, dentre esse público, um abstencionismo relevante.
O grande decisor das eleições de São Paulo foi Marçal. Este é um fato ao qual devemos nos atentar. Em 2020, a extrema-direita, representada por Arthur do Val e Joice Hasselmann, obteve 11,6% dos votos – e com pouca inserção nas periferias. Mesmo se adicionássemos à conta Celso Russomanno – o que não seria exatamente justo, em que pese o conservadorismo do apresentador televisivo – os votos chegariam a 22,1%, seis pontos abaixo dos 28,1% obtidos por Marçal no primeiro turno.
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No afã de explicar o fenômeno Marçal, mil-e-um fatores deverão ser levados em conta. Mas não se deve excluir deles o fato do candidato-coach de extrema-direita, paradoxalmente, ter sido o que mais ferozmente denunciou as agruras dos mais pobres, chegando a chamar favelas de “campos de concentração”, a declarar a pobreza sua maior inimiga e a prometer que ninguém mais seria humilhado “vivendo em casas de lata” – discurso que certamente, ao lado da promessa de uma cidade radicalmente voltada para a “prosperidade” de seus habitantes, teve impacto nas periferias. Se quisermos representar a mudança, convém aprendermos a dar à situação o nome que ela merece. Por que é tão difícil para a esquerda, nas eleições, chamar as coisas pelo nome?
Evidentemente, não há resposta única para explicar a derrota de Boulos, nem uma fórmula mágica para ter transformado-a em vitória. Mas a derrota certamente poderia ter sido menor se a campanha não tivesse insistido na presunção de que as eleições municipais repetiriam as eleições presidenciais de 2022, numa grande luta entre o “bolsonarismo” e o “lulismo”, na qual convinha ao representante da última posição perseguir uma estratégia de frente ampla, buscando atrair os votos da classe média e diminuir rejeições. Além do perigo de não empolgar nem gregos nem troianos, há o perigo de que a tática dilua qualquer ganho político em termos de consciência e hegemonia: aparentemente tudo isso ocorreu em São Paulo.
Ainda que os primeiros debates e a ascensão de Marçal tivessem deixado claro para todos que a disputa não se resumiria ao “candidato de Bolsonaro contra o candidato de Lula”, a campanha de Boulos insistiu na fórmula durante todo o primeiro turno. Embora tenha sido o candidato que mais visitas fez às periferias, sua comunicação – da campanha formal às redes – voltou-se à classe média, especialmente aos jovens da classe média, embora a concentração de jovens eleitores fosse maior nas periferias. Tendo-se negado a confrontar Marçal no primeiro turno, Boulos tampouco aprendeu com ele no segundo: é verdade que foi mais combativo a partir de então, mas além das críticas ao prefeito – críticas na esfera da corrupção, do caráter pessoal do prefeito e de sua má gestão – o que Boulos ofereceu, além de um gerencialismo de esquerda com “boas ideias” tiradas de Xangai, Paris e Santiago, que falava em “mudança” como se a repetição de palavras tivesse o poder de conjurar sentimentos no eleitor?
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A “mudança” comunicada por Boulos, mesmo no segundo turno, era uma meia-mudança, embora quase ⅓ do eleitorado tenha optado pela promessa de mudança radical de Marçal – mesmo que incerto sobre o rumo de tal mudança. Certamente, tratava-se do voto da classe média emergente do Tatuapé à Penha, que Boulos não capturaria com uma posição mais à esquerda – mas e os votos de São Miguel, Guaianases, José Bonifácio? É compreensível que Marçal tenha tido ¼ dos votos em Indianópolis e no Jabaquara, mas como explicar o mesmo montante em Capela do Socorro, Grajaú e Parelheiros?
A vida dos 1,4 milhões que vivem em São Paulo em grave insegurança alimentar é certamente um inferno, mas os 4,8 milhões que vivem nos níveis moderado e leve tampouco podem contentar-se com transformações tíbias. Em outras palavras, é decididamente pior a vida de quem só pode contar com o Bolsa Família para sobreviver em São Paulo, mas não é boa a vida dos que cortam a cidade – de ônibus, dirigindo um carro ou no corredor – por dois salários mínimos ou um pouco mais ou menos. A perda absoluta do “cinturão vermelho” nas periferias da cidade demonstra que nem um nem outro preferiu Boulos decididamente; e o esforço por comunicar-se com aqueles que se liberaram há muito (ou que já nasceram liberados) das imposições primárias da vida – comer, vestir, dormir, morar – tampouco teve melhor resultado.
O futuro político de Boulos não está exaurido pelos resultados destas eleições, mas se esvai a perspectiva de que o psolista pudesse representar nacionalmente, num futuro breve, um sopro de esquerda para uma centro-esquerda que cada vez mais se orienta à direita: porque o candidato nem ruma à esquerda, nem ruma ao poder. E pôs tudo à prova – as próprias bases e partido – em nome de tão retumbante realização de coisa alguma.
(*) Pedro Marin é fundador e editor-chefe da Revista Opera. É editor de Opinião de Opera Mundi, autor de “Aproximações sucessivas – O Partido Fardado nos governos Bolsonaro e Lula III”, “Golpe é Guerra – Teses para enterrar 2016”, e co-autor de “Carta no Coturno – a volta do Partido Fardado no Brasil”.