O parlamento israelense (Knesset) aprovou um projeto de lei no dia 28 de outubro que determina o banimento da a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados Palestinos (UNRWA) em Israel e Jerusalém Oriental.
O projeto de lei foi apresentado por dois membros do Knesset, Dan Illouz, nascido no Canadá, do partido Likud, e Yulia Malinovski, nascida na Ucrânia, do partido Yisrael Beiteinu. Ela primeiro foi aprovada pelo Comitê de Segurança e Relações Exteriores do Knesset em meados de outubro. O Knesset, com 120 membros, votou o projeto no dia 28 em uma sessão final, obtendo maioria absoluta, de 92 votos contra 10, transformando-o em lei. Sua vigência está prevista para até 90 dias.
A lei proíbe todas as atividades da UNRWA, inclusive a assistência de serviços vitais aos refugiados palestinos. Também proíbe todas as autoridades israelenses de se comunicarem com a UNRWA, ordena o fechamento de seus escritórios e revoga todas as isenções de impostos, status diplomático e vistos de entrada para a UNRWA e seus funcionários.
A lei proíbe especificamente as atividades da UNRWA “no território de Israel”. As principais atividades da UNRWA são realizadas na Cisjordânia e em Gaza, e seus escritórios ficam em Jerusalém Oriental, que não pertencem ao território de Israel de acordo com a lei internacional. Ainda assim, Israel anexou Jerusalém Oriental em 1981, o que torna a lei aplicável aos escritórios e às instalações da UNRWA no local.
No entanto, Israel também controla efetivamente a Cisjordânia e Gaza, e trata a Cisjordânia como parte de seu território, embora ainda não a tenha anexado oficialmente. Em outras palavras, não está claro o que essa lei significará para as principais atividades da UNRWA nessas áreas.
“Se Israel decidir aplicar essa lei na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, isso significaria que mais de 2,9 milhões de palestinos em cerca de 30 campos de refugiados não terão mais escolas, atendimento médico, coleta de lixo e outros serviços municipais”, afirmou Lubna Shomali, diretora do Centro de Recursos BADIL para Residência Palestina e Direitos dos Refugiados, ao Mondoweiss.
Como Israel continua sua campanha para compulsoriamente despovoar o norte de Gaza, ao mesmo tempo em que seus líderes clamam abertamente pela anexação oficial da Cisjordânia, é possível que Israel aplique sua proibição à UNRWA também nessas áreas. Essa medida acabaria de fato com grande parte do trabalho da UNRWA e com os serviços que ela presta há 76 anos, colocando em risco milhões de refugiados palestinos.
A campanha israelense contra a UNRWA
O surgimento dessa lei ocorre após meses de tentativas israelenses de desqualificar a UNRWA, o que incluiu a acusação de que doze funcionários da organização teriam participado dos ataques de 7 de outubro. Um painel independente da ONU que analisou as acusações de Israel, bem como o chefe de assuntos humanitários da UE, disse que Israel não apresentou provas de suas alegações. No entanto, Israel ainda exerceu pressão diplomática sobre os países membros da ONU para cortar os fundos da UNRWA.
A campanha contra a UNRWA também envolveu os Estados Unidos. Em 2018, o governo Trump cortou oficialmente os fundos concedidos pelos EUA à UNRWA como parte de uma série de medidas que visavam elementos centrais da causa palestina, incluindo o reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel, o reconhecimento dos assentamentos de Israel na Cisjordânia e o reconhecimento da anexação por Israel das Colinas de Golã ocupadas na Síria – tudo isso contrariando o direito internacional e as posições tradicionais dos EUA. O governo Biden restabeleceu parte do financiamento dos cortes de Trump, mas não o trouxe de volta ao seu nível anterior.
Os ataques à UNRWA durante o governo Trump foram vistos como uma tentativa de minar o direito de retorno dos refugiados palestinos. Os EUA ecoaram as alegações israelenses de que os refugiados palestinos obtêm seu status de refugiado da UNRWA e, portanto, pôr fim à agência também anularia esses direitos.
“O status de refugiado independe da existência da UNRWA e, de acordo com o direito internacional, ele dá aos refugiados o direito de escolher entre o retorno, o reassentamento ou a integração, mas enquanto eles não tiverem a liberdade de escolher, seu status permanece válido e eles têm o direito à assistência humanitária, e isso é verdade para todos os refugiados do mundo”, explicou Shomali, do BADIL, ao Mondoweiss.
“Esse direito é coletivo para todos os refugiados palestinos porque, no caso dos palestinos, está ligado ao seu direito nacional de autodeterminação. Mas também é um direito humano individual e básico que nenhum acordo político de nenhuma autoridade pode cancelar. A UNRWA representa o reconhecimento internacional dessa realidade legal e política, e é por isso que Israel vem tentando liquidar a UNRWA há tanto tempo”, destacou ela.
Reagindo à votação do Knesset, o Comissário Geral da UNRWA, Philippe Lazzarini, enviou uma carta ao presidente da Assembleia Geral da ONU (AGNU), Philemon Yang, pedindo que a AGNU intervenha para impedir a implementação da lei. A carta alertava que a lei teria um impacto “perigoso” sobre os esforços humanitários em Gaza, onde toda a população foi deslocada e depende de ajuda humanitária.
Lazzarini acrescentou que a situação em Gaza está “além da linguagem diplomática”, observando que “nenhuma outra entidade além da UNRWA pode oferecer educação a 660 mil meninos e meninas. Uma geração inteira de crianças será sacrificada”.
Anteriormente, Lazzarini escreveu em sua conta no X que a lei israelense é nada menos do que “punição coletiva”, acrescentando que o fim dos serviços da UNRWA “não privará os palestinos de sua condição de refugiados”, que é protegida pela Resolução 194 da Assembleia Geral da ONU, aprovada em 1949, afirmando que os refugiados palestinos têm o direito de retornar e de serem indenizados.
A UNRWA em campo
Atualmente, a UNRWA opera em 58 campos de refugiados palestinos identificados na Faixa de Gaza, na Cisjordânia, na Jordânia, na Síria e no Líbano, atendendo mais de 5,9 milhões de refugiados palestinos. Os serviços da UNRWA abrangem 706 escolas, que oferecem ensino fundamental e, em alguns casos, ensino médio para mais de 660 mil crianças e adolescentes. A UNRWA também administra 147 centros médicos, com uma média de sete consultas médicas por pessoa a cada ano. Esses centros oferecem medicamentos básicos gratuitos e de baixo custo aos residentes de baixa renda dos campos de refugiados.
Em Gaza, a UNRWA é a maior organização de assistência humanitária, já que 78% da população de Gaza é constituída de refugiados oriundos de 1948 e seus descendentes. Durante o atual genocídio israelense, a agência desempenhou um papel central nos esforços humanitários para ajudar a população de Gaza, que foi quase totalmente deslocada, muitos se tornando refugiados pela terceira vez em suas vidas.
Nos últimos meses, a ONU lançou uma campanha de vacinação em massa para crianças a fim de enfrentar a disseminação da poliomielite, que ressurgiu em Gaza durante o genocídio em curso devido à destruição dos sistemas sanitários por Israel. Embora a campanha tenha sido planejada e dirigida pelo UNICEF e pela OMS, a execução logística da campanha foi realizada fundamentalmente pelos mais de 1,2 mil funcionários da UNRWA em Gaza, já que a agência tem o maior número de funcionários da ONU na faixa.
No dia 29, a UNICEF disse em um comunicado que a proibição da UNRWA por meio da recém-aprovada lei israelense poderia resultar no “colapso do sistema humanitário” em Gaza, colocando em risco a vida de mais crianças.
No dia anterior, o secretário-geral da ONU, António Guterres, pediu a Israel que “aja de forma consistente com suas obrigações nos termos da Carta da ONU e o direito internacional”, acrescentando que “legislações nacionais não podem alterar essas obrigações”.
A Anistia Internacional disse em um comunicado que a lei israelense equivale à “criminalização da ajuda humanitária”, enquanto no dia 27, 52 organizações humanitárias internacionais assinaram um “apelo global para salvar a UNRWA”.
O apelo enfatizava que as ações de Israel contra a agência, incluindo a votação dos projetos de lei anti-UNRWA, são “parte de uma estratégia mais ampla do governo de Israel para deslegitimar a UNRWA, desacreditar seu apoio aos refugiados palestinos e minar a estrutura legal internacional que protege seus direitos, incluindo o direito de retorno”, acrescentando que “se aprovadas, essas leis terão um impacto severo não apenas nas operações da UNRWA, mas também nos direitos dos refugiados palestinos”.
“Os países membros da ONU precisam exercer pressão real sobre Israel e suspender os laços econômicos e diplomáticos, se necessário, para salvar a UNRWA”, disse Lubna Shomali à Mondoweiss. “Se Israel conseguir banir uma instituição internacional criada por uma resolução da ONU, o que o impediria de banir instituições da sociedade civil palestina e outras organizações internacionais? Quem seria o próximo?”
(*) Tradução de Raul Chiliani