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Ratzel e o embrião da geopolítica: a viagem ao Novo Mundo

Ao contrário do que diz a crítica recorrente, Ratzel abarca o fator humano, político e cultural em sua análise, recusando simples determinismos geográficos
Euclides Vasconcelos
Fonte: Google

Foi com 29 anos e ainda como correspondente de viagem do jornal alemão Kölnische Zeitung que Friedrich Ratzel iniciou a mais longa e importante viagem de sua vida, a última em que visitou terras que lhe eram desconhecidas. Por quase dois anos percorreu os Estados Unidos relatando aspectos da vida contemporânea, história e costumes do país que chamava a atenção do público leitor do jornal, uma vez que por décadas ondas de alemães haviam partido para se estabelecer na nação americana recém saída de uma guerra civil, na qual muitos deles tomaram parte como combatentes. No momento de sua viagem, o Sul derrotado estava em plena reconstrução e o Norte vitorioso experimentava um desenvolvimento industrial sem precedentes. As ferrovias assumiam papel de meio de transporte predominante, a colonização do território expandia-se ao Oeste do rio Missouri e todo o mundo tinha as atenções voltadas àquela “jovem e vigorosa” nação em crescimento. 

 Leia também – Ratzel e o embrião da geopolítica: os anos iniciais 

 A sua correspondência ao jornal durante a viagem foi reunida e publicada em 1876 em dois volumes com o título de Imagens urbanas e culturais da América do Norte (numa versão revisada e ampliada), um material que permaneceu restrito ao público alemão até 1988, quando foi traduzido para o inglês pelo historiador Stewart A. Stehlin e publicado em um único volume pela editora da Universidade de Rutgers, nos Estados Unidos (disponível on-line, em inglês). Os escritos acompanham o itinerário de Ratzel no país, de Nova Iorque a São Francisco, numa riqueza de detalhes própria de um geógrafo formado através da observação. Acontece que, na obra de Ratzel, os Estados Unidos resultaram em mais que os mencionados escritos de viagem: anos depois, já professor universitário na Alemanha, ele publicou outros dois volumes de uma obra de fôlego nunca traduzida sequer para o inglês, Os Estados Unidos da América, cujo primeiro volume (de 1878) tem como objeto e subtítulo “a geografia física e características naturais” (disponível on-line, em alemão) e o segundo (de 1880), “a geografia cultural dos Estados Unidos da América do Norte com considerações especiais das condições econômicas” (disponível on-line, em alemão). Diferente de seus relatos de viagem, majoritariamente descritivos, trata-se aqui de uma análise mais profunda e cuidadosa, escrita por um Ratzel já acadêmico e com objetivos que ultrapassam os de um correspondente.

A própria entrada de Ratzel no ambiente acadêmico alemão está também entrelaçada ao tempo que passou nos Estados Unidos. De volta ao país de origem, ele se candidatou em 1876 ao posto de professor de geografia na Universidade Politécnica de Munique, em favor do qual declinou de seu trabalho jornalístico no Kölnische Zeitung. O trabalho apresentado para sua habilitação à docência é comumente mencionado como um estudo sobre a emigração chinesa nos Estados Unidos, mas na verdade trata-se de algo muito mais amplo. Com o nome de A emigração chinesa: uma contribuição para a geografia cultural e comercial, o trabalho é um extenso estudo sobre uma China que, à sua época, vivia o auge do “século da humilhação”, nome pelo qual os chineses se referem ao período entre 1842 e 1949. Destruída pelas duas guerras do ópio e desmembrada em retalhos, a China que Ratzel escolheu como objeto de seu estudo era então uma nação milenar lançada à desgraça e colonizada pelo imperialismo europeu, que na escala dos milhões escravizou os chineses no seu próprio país e em todo o mundo. 

Mas a confusão quanto ao tema do estudo é compreensível. Por muito tempo foi um escrito de difícil acesso, e por isso a maior parte das menções foram feitas sem tê-lo em mãos, já que mesmo a única edição alemã (disponível on-line) foi digitalizada há menos de dez anos e não existe tradução para outra língua.  Além da dificuldade do acesso, a confusão tem um fundo de verdade, já que foi em sua viagem aos Estados Unidos que Ratzel atentou-se ao tema da emigração chinesa, especialmente forte na Califórnia, onde eram tantos os coolies (termo pejorativo para trabalhadores braçais oriundos da Ásia) que sua presença foi motivo para o surgimento de um movimento anti-chinês e de medidas anti-imigração já naquela época. Mas, em seu estudo, a emigração chinesa nos Estados Unidos aparece apenas como parte de uma análise mais abrangente, que primeiro discorre sobre a própria China, sua geografia física e política, seus aspectos econômicos e demográficos, para em seguida tratar das causas da emigração, das ondas migratórias para os países no entorno e finalmente para outros continentes, dentre os quais a América (Ratzel chega a mencionar até a exploração de chineses em trabalho escravo  no Panamá!).

Perto do fim, sua viagem assumiu ainda um percurso não programado. Uma vez em São Francisco, a última das cidades americanas que visitou, Ratzel encontrou oportunidade para ir ao México, visitando primeiro Acapulco, de onde partiu em direção a diversas outras localidades, desde a Cidade do México até antigos centros urbanos pré-colombianos. Chegou a escalar um vulcão a caminho de Veracruz, o vulcão de Orizaba, sempre relatando tudo para o Kölnische Zeitung. Os textos dessa rota foram reunidos e publicados em 1878 com o título de Sobre o México: notas de viagem dos anos de 1874 e 1875 (disponível on-line, em alemão) e em 2009 foi traduzido e publicado em espanhol pela Herder México, edição infelizmente esgotada nos dias de hoje. O hiato de quase 150 anos entre a publicação original e o aparecimento do material no país percorrido por Ratzel pode ser explicada, em parte, pelo conteúdo político dos escritos. Junto às suas detalhadas descrições, Ratzel não mediu palavras ao recomendar que o México fosse colonizado pelos Estados Unidos, indicando até a melhor forma de fazê-lo, ao afirmar (no primeiro volume de Os Estados Unidos da América, p. 373) que “os norte-americanos são mais adequados do que qualquer outro povo europeu para finalizar a conquista do México pela cultura, metade com violência, metade com agilidade e inteligência” – mais adequados até que os próprios alemães, a favor de quem Ratzel poderia ter tomado partido por motivos óbvios. 

Depois de seis meses percorrendo o México, fez seu caminho de volta à Alemanha contando ainda com uma breve escala em Cuba, que ao que parece rendeu apenas algumas anotações usadas para suas aulas na Universidade de Leipzig anos depois.

Se tratamos anteriormente da importância do trabalho jornalístico na passagem de Ratzel da zoologia à geografia, a sua viagem à América e particularmente o tempo que passou nos Estados Unidos deu-lhe as bases para as produções pelas quais se tornaria mundialmente conhecido. As ondas migratórias, a expansão territorial e o estabelecimento das fronteiras, os ensaios imperialistas para com o vizinho México, o aumento populacional, a atenta observação da questão racial (especialmente a negra); tudo isso e muito mais aparece nos seus escritos do período. Em seu estudo sobre a China, ele utiliza pela primeira vez o termo “geografia cultural”, repetindo-o no subtítulo do segundo volume da obra de 1880 sobre os Estados Unidos. Reeditada em 1893, o subtítulo passa a ser “a geografia política dos Estados Unidos da América do Norte com considerações especiais das condições econômicas” – anos mais tarde, em 1897, a politische geographie voltaria a aparecer, dessa vez como uma de suas obras mais conhecidas e polêmicas. 

Se no primeiro escrito desta série predominou a descrição biográfica, este agora inaugura um exercício mais profundo. A produção intelectual de Ratzel no curto período visto nesta introdução – que vai de 1873, quando parte para os Estados Unidos, até 1880, quando publica o segundo volume de Os Estados Unidos da América – é extensa e por demais importante para não ser analisada com maior atenção. Trata-se da virada para o início de sua vida universitária para o geógrafo a quem se atribui a paternidade da geopolítica. Aqui algumas ausências se farão sentir: seu estudo sobre a China, que, pela abrangência e relevância para os nossos dias, será tratado em um texto à parte, e a obra Os Estados Unidos da América, que pela dimensão (cerca de 1300 páginas no total) e barreira linguística, não será analisada aqui. É apenas sobre a literatura de viagem desse período que nos debruçaremos: as quase 400 páginas de relatos enviadas ao Kölnische Zeitung durante o percurso nos Estados Unidos e o igualmente vasto material produzido no período no México.

Rota de viagem de Ratzel nos Estados Unidos. Trata-se de um mapa simplificado, já que ele visitou mais que os lugares indicados em seus escritos e muitas vezes tomou rotas mais complicadas do que as que aparecem no mapa. Disponível em Sketches of urban and cultural life in North America (Ratzel, 1988), traduzido e editado por Stewart A. Stehlin.

A terra das possibilidades ilimitadas

Ratzel percorreu os Estados Unidos de agosto de 1873 até outubro de 1874 numa viagem que, como já dito, rendeu-lhe pelo menos quatro livros: dois volumes (1876) de seus escritos de viagem para o jornal no qual era correspondente e outros dois volumes de uma obra de maior fôlego (1878 e 1880), escrita já na Alemanha. Mas, para além disso, a experiência nos Estados Unidos lhe rendeu dividendos até sua morte. Além de chamar atenção para temas que assumiriam papel central em sua geographie, o país seguiu no centro de suas atenções até o final de sua vida. É o caso do ensaio A alma e o povo da América do Norte – publicado em 1902, apenas dois anos antes de sua morte  –, onde analisa a colonização dos Estados Unidos, a expansão para o Oeste, o papel dos imigrantes e outros vários temas para responder à pergunta “como se forma e em que consiste a alma de um povo?”

Seu fascínio pelos Estados Unidos fica evidente quando tomamos contato com as impressões da viagem transmitidas in loco para o  Kölnische Zeitung. Os escritos do período abordam um leque de temas variados: o planejamento das grandes cidades e a vida dos que nela viviam e trabalhavam, o sistema educacional estadunidense, a arquitetura das diferentes cidades, as instalações de transporte, as relações raciais, as razões e as consequências do rápido desenvolvimento do país, etc. Trata-se de uma visão muito mais ampla que outros relatos de viagem da época costumavam trazer e, segundo o tradutor dos textos para o inglês, ainda mais ampla do que a forma que os próprios estadunidenses costumavam descrever o seu país.

O público alemão já contava com uma série de publicações sobre os Estados Unidos: folhetos informativos, relatórios estatísticos e obras escritas por outros viajantes os inundavam de informações sobre a joia do Novo Mundo. Também, pudera: quantidade considerável dos imigrantes europeus que chegavam à América do Norte era de alemães, que mandavam de volta para casa notícias do crescimento de seu novo país, criando e reforçando o mito da terra de possibilidades ilimitadas (das Land der unbegrenzten Möglichkeiten). Mas raras eram as obras que, mais que descrever, eram capazes de oferecer uma análise mais detalhada dessa grande novidade, e isso Ratzel pôde oferecer assim que colocou os pés no país. 

Em sua introdução à edição estadunidense, Stewart A. Stehlin destaca a linha mestra dos relatos do geógrafo alemão:

“O que torna Ratzel diferente de qualquer outro alemão ou, para tanto, qualquer outro visitante estrangeiro, é seu fascínio pela cidade. Para ele, esse tema se tornou o ponto em torno do qual organizaria suas observações e análises. Sua análise do impacto das cidades na totalidade da vida americana é incomumente perceptiva para algo escrito já em meados da década de 1870. Ao contrário de outros comentaristas, que descrevem a América como ainda basicamente uma nação rural, repleta de campos de trigo e impressionantes maravilhas naturais, Ratzel se concentra no fluxo de população para as cidades, especialmente para as grandes. Ele está intrigado com o processo de urbanização e seus fatores sociais concomitantesas escolas primárias, o arranjo das cidades, o transporte de massa e a maneira como a nação é unida por um sistema ferroviário abrangente. A forma pragmática com que os americanos superaram os obstáculos físicos para construir trilhos de uma costa a outra foi, ele sente, um tributo à sua habilidade prática de modernização.” (1988, p. 22)

Em pouco tempo a situação se inverteria, e os Estados Unidos passariam a enviar observadores para estudar novas ideias sobre planejamento urbano na Europa, mas àquela época a maior parte dos centros urbanos europeus amontoava seus habitantes de maneira desordenada, sem nenhum planejamento sistemático – enquanto no Novo Mundo Ratzel testemunhava grandes cidades surgidas no espaço de uma ou duas gerações.

Os eventos que levaram à unificação da Alemanha e à proclamação do Império Alemão sem dúvida influenciaram o olhar de Ratzel, já que muitos paralelos entre as duas nações foram traçados por ele. Guardadas as devidas e consideráveis diferenças, ambos os países haviam passado recentemente por uma guerra de unificação que consolidou o país politicamente e unificou seu sistema monetário, de pesos e medidas, de tarifas e até mesmo o sistema legal. Ambos os países, depois de suas respectivas guerras, contaram com um período de paz que propiciou o desenvolvimento econômico e que foi assombrado pela necessidade de “deixar para trás” o trauma nacional do conflito. O mesmo vale para a construção de ferrovias, que nos dois países assumia o papel de unificação do território – no caso dos Estados Unidos, graças à dimensão territorial e, no da Alemanha, à relativa distância político-econômica entre os pequenos Estados que anteriormente compunham o país unificado. Ratzel tinha esse paralelo em mente, como apontou Stewart Stehlin na mencionada introdução:

“Um homem como Ratzel, que inicialmente estava ciente da importância dos fatores geográficos e cujas teorias foram reforçadas por suas experiências americanas, naturalmente gostaria de compartilhar suas observações com seus conterrâneos alemães, como uma base de comparação e como meio de destacar o que poderia ser feito na Alemanha, que então passava por um período de grande preocupação nacional, vivenciando sua fase de grande expansão industrial, comercial e urbana. Ele foi capaz de apontar as razões de por que e como isso estava acontecendo, observando o fenômeno na América, onde ocorreu um pouco antes e de maneira um pouco mais rápida do que na Europa.” (p. xxii)

A questão racial, uma constante em sua obra, dá seus primeiros sinais já no prefácio do livro, quando, tratando do estilo de vida da população estadunidense, Ratzel aponta que “a população de todas as cidades americanas, com exceção das do Sul, onde os negros exibem sua indolência, se distingue por seu estilo de vida versátil, ativo e industrioso” (p. 8, destaques meus). Ao mesmo tempo, mais à frente, ao relatar sua passagem pela Filadélfia, narrando a situação do Public Legder, um pequeno jornal local, Ratzel louva a posição contrária aos linchamentos da população negra tomada pelo periódico: “No final da década de 1830, quando a população começou a fazer tumultos contra os negros na Filadélfia, o Ledger imediatamente se colocou em um nível acima dos outros jornais baratos ao defender aqueles que haviam sido atacados.” (p. 125.) 

Mas é na parte II, dedicada às cidades sulistas, que a questão aparece com mais centralidade. O preâmbulo à parte II, que trata das diferenças entre o Norte e o Sul dos Estados Unidos e relata as grandes transformações no Sul pós-guerra civil, dá uma atenção especial ao proletariado negro. Vejamos:

“A maioria do proletariado negro, que desde a abolição da escravidão mostrou uma forte tendência a se mudar para as cidades, também tem uma certa responsabilidade por permitir que essas características [a relativa estagnação das cidades quando comparadas às áreas rurais] se tornem proeminentes, e com sua pobreza e inatividade, eles se agarram como um peso de chumbo às classes mais produtivas da população. Onde quer que esses negros estejam fortemente representados, a agitação, a discórdia e a hostilidade que suas demandas políticas provocam, e a corrupção que acompanha o conflito racial, impediram cidades importantes como Nova Orleans e Charleston de participar da revitalização que pareciam destinadas a ter no fim da Guerra Civil. Esse proletariado negro também é bastante grande nas cidades do Norte, na costa, especialmente em Boston, Nova York e Filadélfia, e agora uma onda de negros começa a ser vista como uma tendência importante em Baltimore e Washington. Em vez de ser cercada por fábricas em seus arredores, como as cidades do Norte, Richmond está cercada por vilas de negros, que superam em sujeira, inatividade e desmoralização, em uma desordem pitoresca e falta de comodidades civilizatórias que se assemelha aos campos ciganos nos arredores das cidades da Hungria e Romênia. Em muitas das cidades mais ao sul, o negro e o mulato determinam o caráter da vida nas ruas mais do que o branco.” (p. 146-147, destaques meus)

O tema do conflito racial e as demandas políticas da população negra, ainda que vistas como “agitação, discórdia e hostilidade”, não são considerados sem explicação. Ao abordar a importância dos depósitos de carvão e ferro do Alabama para o desenvolvimento industrial do Sul pós-guerra, Ratzel aponta os “ultrajes cometidos pelos brancos” como uma das razões da discórdia racial comprometedora do progresso:

“Mas a população trabalhadora branca, que é absolutamente necessária para a utilização desses recursos, se desenvolve lentamente em um estado onde, durante anos, o espectro das revoltas negras e os ultrajes cometidos pelos brancos eram generalizados, e, como em todas as outras questões relacionadas ao progresso da civilização, deve-se acostumar-se a um ritmo significativamente mais lento aqui do que no Norte. No entanto, não se deve deixar as esperanças afundarem muito rapidamente, mesmo que o conflito racial, que já foi tratado de forma frívola como uma inevitabilidade por anos, deva adiar o desenvolvimento emergente da região por mais alguns anos.” (p. 148, destaques meus)

Os efeitos do regime escravista sobre a vida intelectual das cidades sulistas não lhes passaram despercebidos. Depois de evidenciar a discrepância entre estas e as cidades do Norte e até mesmo as recém fundadas cidades do Oeste, Ratzel atribui o atraso sulista ao “domínio dos proprietários de escravos”:

“A vida intelectual das cidades do Sul nem sequer pode ser remotamente comparada com a amplitude ou profundidade das cidades do Norte ou Oeste. Um olhar geral sobre as condições culturais na América torna isso evidente. Mesmo nas novas cidades do Oeste, que mal existem há uma geração, há mais interesse estimulante e criativo pelo conhecimento, mais se lê, ensina, escreve e publica, e, acima de tudo, mais dinheiro é gasto em educação superior e primária do que até mesmo em Nova Orleans ou Charleston. Nenhuma cidade do Sul pode se orgulhar de ter bibliotecas públicas bem organizadas, ricas e acessíveis, como, por exemplo, Cincinnati ou St. Louis, ou até mesmo a nova cidade de São Francisco. Antigamente, em tempos melhores, as grandes somas alocadas em alguns estados do Sul para fins educacionais eram mais um luxo, considerando o pequeno número de pessoas que precisavam de uma educação ou que eram capazes de recebê-la, quando se lembra da proibição à liberdade de expressão que existia durante o domínio dos proprietários de escravos; na realidade, poucos efeitos duradouros desses gastos permanecem. Muito foi feito nos últimos dez anos para as escolas primárias, especialmente para aquelas que se destinam a educar crianças negras, mas o tempo foi muito curto para avaliar o valor das centenas dessas escolas que foram tão repentinamente criadas ou para julgar os resultados práticos da educação dada aos jovens negros. Assim, de maneira geral, pode-se apenas dizer que o novo caminho no qual o povo do Sul, antes tão indolente e autossatisfeito, foi jogado, os fez perceber a necessidade de conhecimento mais do que teria sido possível durante a era da escravidão.” (p. 148-149, destaques meus)

O tema da “indolência” do negro e sua “pouca predisposição” ao trabalho aparece outras vezes nas observações de Ratzel, cujo preconceito racial se mostra de uma forma não supreendente tratando-se de quem era. Ao mesmo tempo que reconhece e até certo ponto denuncia os horrores da escravidão e comemora seu fim (principalmente pelos entraves que o regime escravista impunha à industrialização, a bem da verdade), Ratzel não poucas vezes se utiliza das caricaturas do negro preguiçoso, rebelde e do mito do “bom negro”, aquele que não ultrapassa os limites do aceitável, que se comporta de maneira “civilizada” e não recorre à violência. Em uma dessas suas “constatações”, chega mesmo a comparar negros a mendigos italianos que, nas suas palavras, eram até mais civilizados:

“Se as poucas dezenas de negros que vejo descansando em frente ao hotel fossem um pouco menos morenos e um pouco mais civilizados, realmente pareceriam os mendigos ou os ociosos das ruas de Palermo, pois o que eles têm em comum com seus pares europeus é que apreciam a vida, estão satisfeitos com sua existência, não precisam de trabalho, roupas boas ou comida requintada, e não precisam empregar nem a mente nem as mãos, já que sua satisfação não provoca uma sensação de vazio ou desconforto, que exigiria algum esforço ou trabalho para ser satisfeito.” (p. 150-151, destaques meus)

Uma vez em Columbia, na Carolina do Sul, ele volta os olhos para os oradores e legisladores negros, de relativa fama nacional – a ponto de relatar, de certa forma impressionado, que as primeiras palavras com que era recebido pelos locais eram “você já viu nossa menagerie [zoológico]? Já foi ao nosso chiqueiro de porcos? Você tem que ver o nosso teatro de macacos.”, ao que completou: “Eu não precisei perguntar o que essas palavras significavam, pois já sabia que tipo de expressões os brancos amargurados da Carolina do Sul usavam para falar sobre sua legislatura negra.” (p. 166-167)

Demonstrando certa simpatia condescendente pelos oradores negros na Assembleia Legislativa local, Ratzel primeiro equipara os discursos ouvidos. Segundo ele, os oradores negros demonstraram em seus discursos tanto bom senso quando os oradores brancos. O que ele identificou como desvantagens dos oradores negros, atribuiu à pouca instrução e pouco tempo de aprendizado: “Quem poderia culpar os negros, já que ainda não tiveram tempo para aprender algo melhor, quando, por ora, recorrem a imitar as frases e gestos de seus antigos mestres e acabam, de vez em quando, ultrapassando um pouco a linha.” (p. 168). 

Na visão de Ratzel, aquela Carolina do Sul pós-guerra civil, governada por negros, não poderia durar muito tempo. Ele chega a ensaiar uma proposta, nada inédita na época, de que os negros deveriam buscar refúgio em outro lugar, pois o retorno dos antigos proprietários de escravos era apenas uma questão de tempo:

“Os mestres americanos rancorosos realmente perdem a paciência com a leviandade com que seus ex-escravizados conduzem os negócios do governo. Mas aqui eu não poderia compartilhar totalmente seus sentimentos ao refletir sobre o quanto de hipocrisia mesquinha e estupidez está por trás da seriedade com que seus partidos políticos e corpos legislativos gostam de cercar suas próprias atividades – que nem sempre foram exatamente limpas – como eles têm de afirmar isso seriamente para superar a pequena, mas de modo nenhum insignificante, maioria negra, e finalmente, como será curta a alegria desses pobres diabos, os ex-escravizados, e quão amargo será seu desencanto quando os ex-senhores voltarem a se tornar os governantes efetivos do estado. O governo desajeitado dos negros é certamente apenas um curto interlúdio, algumas semanas de carnaval antes e depois dos tempos sombrios de completa degradação e privação. Observando essas circunstâncias anormais, eu constantemente tinha um desejo, que parece impraticável, mas que me parece seria o melhor para ambos os grupos conflitantes, brancos e negros: antes de serem destituídos do cargo, os administradores negros deveriam decretar que eles, juntamente com todo o seu povo, pretendem procurar um novo lar nas Índias Ocidentais, na América Central ou na parte mais quente da América do Sul, ou até mesmo na África novamente, uma pátria que os alimentaria com mais facilidade, uma pátria onde menos trabalho seria exigido deles do que aqui. Isso ajudaria ambas as partes e seria menos desumano do que se eles permanecessem. Os brancos incansáveis, como moinhos de pedra, levarão essa gente devagar e alegre entre eles e, em poucas décadas, os negros deste país serão reduzidos a ciganos, e apenas alguns deles terão se salvo subindo até as ‘alturas protetoras’ culturais dos brancos.” (p. 170, destaques meus)

E assim o foi. Em 1877, apenas três anos depois da passagem de Ratzel pelo estado, o Compromisso de 1877 entre o Norte e o Sul determinou a retirada das tropas federais do Sul derrotado na guerra civil, fato que marcou o fim do período conhecido como a Reconstrução. Com a saída das tropas, o domínio branco foi restaurado e foram implementadas as leis de segregação racial e o sistema de apartheid conhecido como leis Jim Crow. O pouco mas relativo avanço da população negra durante a Reconstrução (1865-1877) foi revertido brutalmente pelo domínio do partido dos antigos senhores de escravos – o Partido Democrata. 

Embora não sem motivo a questão do negro tenha chamado a atenção de Ratzel, uma vez que o país acabara de abolir o regime escravocrata ao custo de uma guerra civil, a questão racial de maneira mais ampla estava na lente de observador estrangeiro de Ratzel. Quando em São Francisco, ficou impressionado com a variedade de povos convivendo na cidade da costa oeste:

“Como em todas as cidades norte-americanas, não falta a presença de membros da raça negra de todas as tonalidades aqui, e para os muitos milhares de filhos do Império Celestial atualmente vivendo nos Estados Unidos, São Francisco, com uma população chinesa agora de quase 20 mil, é tão metrópole para eles quanto é para os americanos. A população branca, por sua vez, devido à forte adição de sangue espanhol e mexicano e ao número relativamente grande de judeus, italianos e franceses que vivem em São Francisco e arredores, tem uma tonalidade mais meridional do que, por exemplo, a população de Nova York, e às vezes até parece possível reconhecer essa mistura pelas cores extravagantes das roupas. […] De vez em quando, misturados a essa diversidade de línguas, se pode ver alguns tipos de estrangeiros mais raros trazidos pelos navios. Vi várias vezes malaios de aparência sombria, reconhecíveis pelos pequenos turbantes pretos e caftãs negros, mexicanos de rosto largo, marrom e ósseo, índios reais, japoneses e russos.” (p. 282)

Desse mosaico de povos, foi a grande concentração de chineses que lhe chamou atenção. Como já adiantado, foi a partir dessa viagem que o tema da imigração chinesa no mundo pareceu-lhe importante ao ponto de ser tema de um estudo separado. Uma passagem de seu relato sobre a cidade dá a dimensão da presença chinesa na cidade da costa Oeste dos Estados Unidos:

“Os chineses, que assumiram um papel muito importante aqui, continuam virtualmente com todos os aspectos daquele estilo de vida específico que se encontraria nas margens do Yangtzé. Sempre que não residem nas casas de seus empregadores, eles ficam aglomerados em algumas ruas estreitas, onde vivem tão próximos uns dos outros que realmente dão às ruas aquela aparência de formigueiro que os viajantes descreveram como característica das grandes cidades chinesas. Ao final do expediente, não há ruas em todo o restante de São Francisco que se assemelhem, nem remotamente, às de Chinatown, com sua vida pulsante, e a semelhança no corte e na cor das roupas dos chineses, todos igualmente altos, confere à cena um caráter notavelmente uniforme, algo a que não estamos nada acostumados a ver na América. Enquanto dura a jornada de trabalho, no entanto, a maioria deles está sempre ocupada. Através das portas abertas, pode-se ver que em seus ateliês estão lavando, passando, costurando, enrolando charutos, abatendo os porcos, que lhes fornecem a principal fonte de carne, com notável cuidado e deliberação. Ao longo da rua, vê-se os chineses serrando madeira, carregando grandes pacotes, recolhendo lixo e até cuidando das crianças. Nas casas dos brancos, desempenham todos os tipos de trabalhos que seriam, em nosso país, responsabilidade das ‘empregadas faz tudo’. Assim, você não pode escapar deles em nenhum lugar, e em todos os lugares estão ocupados da mesma maneira um tanto lenta, cuidadosa, cautelosa, porém diligente, sempre parecendo ser os mesmos seres limitados e passivos, com os mesmos rostos amarelados, de olhos puxados, sem expressão e sem barba, uma dúzia ou mais de faces. Você não esperaria isso pela sua aparência, mas assim que estão entre eles mesmos, tagarelam como um bando de gansos, e suas risadas e gritos nunca parecem cessar.” (p. 283)

Muitos outros são os assuntos que figuram nos 21 capítulos do livro de sua viagem pelos Estados Unidos. O material é tão diverso que seria impossível esgotá-lo aqui, mas sem dúvida carece de mais atenção. Temas como as colônias alemãs, a Ferrovia do Pacífico – à época um complexo de sete linhas diferentes e independentes ligando Nova Iorque a São Francisco – e o transporte ferroviário em geral, os portos e o comércio marítimo, o sistema educacional; tudo e mais um pouco pode ser encontrado nos relatos de sua viagem à nação que atraía os olhares da Europa, figurando como a terra das possibilidades ilimitadas. Sem dissimular o interesse e a busca por exemplos que pudessem ser replicados em seu país, Ratzel não dissimulou também o que considerou a outra face da moeda do desenvolvimento econômico e industrial e da rápida urbanização da sociedade estadunidense: as cidades fantasmas e locais abandonados, os destroços observados ao longo das ferrovias percorridas, o desperdício e a falta de planejamento daquele crescimento em ritmo relâmpago, etc. Em linhas românticas – bastante características de um alemão de sua posição, diga-se de passagem – chama atenção para a falta de gosto arquitetônico, de maneira nenhuma compensada pela riqueza daquela sociedade extremamente prática, que dava pouca atenção aos valores estéticos e se preocupava exclusivamente de ganhos materiais em detrimento do incentivo à arte e filosofia. No fim das contas fica claro que, apesar de inegavelmente impressionado com o que pôde observar nos Estados Unidos, Ratzel era antes de tudo um europeu e, acima de tudo, um alemão.

A ‘degeneração bárbara’ ao Sul do rio Grande

Partindo de São Francisco graças a uma casualidade, sua viagem pelos Estados Unidos se estendeu ao vizinho México e rendeu-lhe quase vinte relatórios enviados ao Kölnische Zeitung para publicação. Esse material foi editado e publicado em 1878, três anos após o fim da viagem em que percorreu o país. Contou ainda com uma reedição em 1969, mas só recentemente a obra extrapolou as fronteiras da língua alemã, sendo traduzida em espanhol e publicada no México em 2009. Composto de um prefácio, uma introdução, 17 capítulos, uma seção de notas e apêndices e um mapa, seu Aus Mexiko compila-os. Seu prefácio e introdução são de escrita posterior, quando da publicação do material reunido em livro.

Uma nota pessoal pertinente ao leitor é que, apesar da disponibilidade do texto integral em espanhol, não obtive a tempo um exemplar da edição mexicana para os estudos que deram origem a este texto. Tendo restado o acesso apenas ao original, as páginas indicadas nas citações desta parte dirão respeito, portanto, à edição alemã (Breslau, 1878) e foram traduzidas de maneira livre, embora cotejadas por quem melhor que eu entende a língua. Meu agradecimento à amiga Catherine, que se ofereceu para trazer do México a cobiçada edição de 2009 – e que chegando lá descobriu estar esgotada. Até que algum exemplar seja finalmente desenterrado de um sebo, teremos de nos contentar com o que a limitação linguística nos dará acesso, bem como com o intermédio de pesquisadores que puderam lê-lo sem as dificuldades mencionadas.

Já no prefácio e na introdução, Ratzel condensa sua visão sobre o México evidenciando a diversidade natural dos países hispano-americanos, que ocupam uma posição geográfica das “mais notáveis e peculiares” que “em termos de abundância e diversidade de seres orgânicos, talvez apenas as ilhas do sudeste asiático possam ser comparadas com a América Central, desde o sul do México, e com o norte e leste da América do Sul” (prefácio, s.p.), em seguida voltando atenções especiais para a diversidade demográfica dos habitantes daquela terra. A variedade do gênero humano, resultado da mistura entre povos indígenas, brancos europeus e negros, chama sua atenção, especialmente por essa mistura ser, à época, objeto de ainda pouca atenção.

E logo nas primeiras páginas surge sua leitura dos “diferentes elementos” da sociedade mexicana:

“Em nenhum lugar se observa tanta variedade do gênero humano em um espaço tão pequeno, e em nenhum lugar há tanta oportunidade de estudar os resultados de suas interações físicas (mistura) e intelectuais. Em toda parte, a cultura europeia foi implantada e os habitantes desses países se lisonjeiam por serem seus eminentes portadores. Na realidade, no entanto, trata-se apenas de uma degeneração bárbara dessa cultura, que cresceu aqui em condições menos propícias ao incentivo ao trabalho e mais ricas em forças que nutrem as paixões inferiores e sensuais. Como ‘meia-cultura’, originada pelo declínio de um ramo da cultura europeia que uma vez foi transplantado para um solo desfavorável e que por si só não pertencia aos mais saudáveis — o espanhol —, este conjunto de desenvolvimentos estagnados ou distorcidos é único em seu gênero e merecia maior atenção devido ao seu interesse filosófico-histórico e etnológico do que recebeu até agora na Europa.” (Idem, s.p., destaques meus.)

Essa visão é reforçada na introdução, que detalha os termos da “mestiçagem”:

“Os mestiços têm sangue branco, indígena e negro em várias proporções. Na costa sul, há até mesmo vestígios de malaios e chineses. Os brancos são predominantemente espanhóis, mas é quase certo que seu número seja menor do que indicam as estatísticas, pois a linha divisória da mestiçagem tende a ser um pouco obscurecida, e os mestiços de quarta ou oitava [gerações] às vezes são superficialmente difíceis de distinguir dos antigos espanhóis. Entre os brancos, o poder pertence à cultura europeia e ao dinheiro; entre os mestiços, a força está na massa e no forte impulso das raças inferiores para se elevarem. Os indígenas se unem a eles, na medida em que emergem da selvageria. (…) Os brancos são um fator político apenas com base no apoio dos mestiços; seus elementos indígenas ou inclinados para o indigenismo, em outras palavras, os mais bárbaros, têm grandes seguidores no país. Como os espanhóis contêm mais desses elementos do que todos os outros povos europeus, eles se amalgamam com os povos de cor para formar uma massa de pessoas cuja marca é a semicultura ou, se preferirem, a semi-barbárie. A vida intelectual estagna na direção produtiva, dissipando-se nas tentativas dos mestiços e dos índios de lutar pelos modelos europeus e norte-americanos.” (p. 12-13, destaques meus.)

Além da caracterização semi-bárbara dos povos indígenas ou das “paixões inferiores e sensuais” com que descreve o elemento miscigenado, chama atenção a forma como o alemão se refere ao espanhol, povo “que por si só não pertencia aos mais saudáveis”, certamente uma referência à própria composição e formação étnico-racial da Península Ibérica, que por cerca de cinco séculos esteve sob o domínio árabe vindo do Norte da África.

Mas antes de qualquer coisa, antes até mesmo das considerações demográficas e raciais, Ratzel trata de justificar ao leitor a necessidade de voltar os olhos ao México com um argumento essencialmente geopolítico, ainda que faltassem décadas para que o termo viesse a surgir: “Como único estado fronteiriço ao sul da grande união norte-americana, e o único estado que impõe limites à sua expansão nessa direção, o México não pode ser negligenciado.” (p. 1, destaques meus). Ou seja: é principalmente em razão do centro de gravidade do vizinho ao Norte, os Estados Unidos, que deve-se notar o México, essa nação cuja “antiga cultura, ou semi-cultura, confere-lhe uma dignidade pela qual outros estados deste grupo, que emergiram quase que abruptamente do anonimato histórico para a intensa luz da história moderna, como o Equador ou a Colômbia, tentariam em vão alcançar.” (p. 1).

O tema do olhar em razão dos Estados Unidos surge outras vezes (outra vez ao lado da depreciação pela “parte periférica” da Europa):

“Enquanto observamos os Estados Unidos da América do Norte com o envolvimento que um homem vigoroso desperta ao empregar toda a sua rica energia para alcançar metas específicas, às vezes sentimos diante dos distúrbios e desesperanças mexicanas um desejo semelhante ao de um enfermo febril que se contorce de um lado para o outro em agitações inúteis: o desejo de nos afastarmos de tal espetáculo desagradável. Talvez estejamos mimados pelo vigoroso e frutífero ritmo de vida dos povos ao nosso redor, e talvez seja mais justo ajustar o padrão pelo qual medimos a vida política e social do México para níveis semelhantes aos da Espanha ou Portugal, em vez de compará-lo diretamente com o da Europa Ocidental, Central ou da América do Norte.” (p. 3, destaques meus.)

Até aqui, pouco ou quase nada do que foi visto pode ser atribuído exclusivamente a Ratzel. Na verdade, estranho seria se um intelectual europeu, sem vínculo com o movimento operário de seu tempo (ou mesmo sem vinculação a uma pequena-burguesia radicalizada) fugisse à regra do eurocentrismo e do chauvinismo. Não que “o seu tempo” seja alguma espécie de justificativa absoluta. Cabe lembrar que Marx e Engels eram seus contemporâneos e conterrâneos e ainda assim nadavam contra a corrente de pensamento onde Ratzel não só navegou, como ajudou a cartografar. O tema do ambiente intelectual europeu e alemão, a relação dos pensadores das metrópoles com os povos da periferia do mundo e a questão colonial merecem atenção, já que nem mesmo os supostamente comprometidos com a emancipação dos povos consideravam todos os povos dignos ou capazes de emancipação, vide o marxismo da Segunda Internacional. As questões se entrelaçam de tal forma – e a degeneração da Segunda Internacional era tanta – que mesmo o pensamento de Ratzel e certo marxismo chegaram a se cruzar: assim foi com Plekhanov e a tentativa de ensaio de um “materialismo geográfico” do marxista russo, que não pode passar sem nota.

Superada qualquer impressionabilidade com o seu eurocentrismo, não é de se deixar escapar que seu olhar esteve atento ao que muitos não viam. Logo depois de afirmar que o México não poderia ser visto como se vê o “normal” com que se está acostumado, Ratzel diz que “é fácil considerar um estado como patológico simplesmente porque é menos comum do que aquilo que chamamos de normal. Mas esse normal não necessariamente representa o nível ao qual tudo o que é diferente deve ser reduzido.” (p. 4, destaques meus.) Para ele, a riqueza da realidade mexicana estava no fato de que o país era uma chave, “um grande estado de transição entre um passado concluído e um futuro ainda não aberto”. Uma “manifestação de valor mais amplo” da qual o México seria “o tipo mais proeminente deste estranho estado de transição que abriga novas nações em seu seio”, e por isso “permanece uma das mais notáveis manifestações para o estudioso da história das nações” (idem). O “estado de transição” a que se refere, é claro, é o que se instaura a partir do momento em que as ex-colônias da hispanoamérica conseguem sua independência formal para encontrarem-se submetidas a outras formas de coação, especialmente os países mais próximos do grande centro de gravidade ao Norte.

Não à toa, considerações políticas sobre a geografia física do México ocupam praticamente todas as páginas seguintes de sua introdução. Ele abre estas considerações dizendo que “à primeira vista, a localização geográfica do México parece excelente, e seria, se os contornos e a posição em relação a outros estados fossem decisivos para isso” (destaques meus). A isto se segue uma prolongada descrição geográfica do território: a forma do solo e o clima, a “localização alongada” entre os oceanos Atlântico e Pacífico, incluindo o estreitamento territorial em direção ao sul, onde estão rotas mais curtas para conectar esses oceanos; a fragilidade da integração de Yucatán, que “tirada a linha política de fronteira, poderia tão facilmente pertencer à Guatemala e Honduras quanto ao México. É apenas um elo solto.” (p. 5, destaque meu); a pobreza de ilhas do país “lamentavelmente continental”, que na costa do Pacífico conta com alguns bons portos “que são como que esculpidos nas rochas” (idem), enquanto na costa atlântica conta com portos quase que exclusivamente fluviais. Discorre também sobre o clima, a vegetação e mesmo a diversa fauna mexicana. Sobre o tema dos rios e seu uso para o deslocamento, as considerações de Ratzel são úteis para pensar além do país em questão:

“A configuração do solo na maior parte do México é igualmente desfavorável à acessibilidade. Isso é evidenciado pela escassez de grandes rios. Na verdade, só se pode penetrar no interior do México por terra, pois nenhum dos rios do norte e do centro é navegável por longas distâncias, com a única exceção do Rio Grande, que, no entanto, não é considerado aqui por ser um rio de fronteira. No sul do México, do lado atlântico, há alguns rios com largura suficiente, abundância de água e baixa inclinação, mas todos esses rios têm cursos curtos. Pode-se dizer que o México, embora não seja pobre em rios menores, obtém o mínimo proveito de seus cursos d’água. Muito dessa situação se deve às condições naturais, e parte dela à intervenção humana, que pouco faz para corrigir a natureza nem sempre favorável.” (p. 6, destaques meus.)

O cuidado com a descrição do terreno e sua compreensão aparece justificado ao fim do volume, numa nota ao mapa que acompanha publicação: “das muitas concepções equivocadas sobre as características do México, especialmente em relação ao clima, fertilidade e habitabilidade, as quais dependem da formação do terreno, atribuo parcialmente à pouca clareza com que este último é representado na maioria dos mapas acessíveis ao grande público”. (p. 420) Mas esse não se trata de um mapa qualquer. Ratzel está especialmente preocupado com a predominância “neglicenciada” do planalto mexicano sobre a planície, bem como sinaliza a “característica dominante” das cadeias montanhosas, muitas vezes representadas de maneiras secundária nos mapas da época, e  por isso, lhe pareceu “altamente desejável incluir um mapa que resumisse de maneira clara e compreensível as condições do solo do México e, assim, elucidasse as numerosas referências feitas a elas na introdução e no texto” (idem).

Mapa anexo à edição alemã de Sobre o México (Ratzel, 1878).

Sem dúvida faz falta no Brasil um estudo mais atento das impressões de Ratzel no país latino-americano, especialmente suas notas sobre a necessidade (e possibilidade!) de contornar uma geografia de alguma forma desfavorável. Embora muito atento às características físicas do país, mais de uma vez ele evidencia como a ação humana poderia, mas não operou para desviar dessas desvantagens, contrariando a visão de certa forma vulgar que lhe é atribuída em virtude do “determinismo geográfico”. Se tem algo que podemos desde já observar é que – sem negligenciar os fatores físicos –, Ratzel coloca o fator humano, político e cultural também no centro da análise, recusando determinações simplistas com base em localização ou características físicas, de clima, etc. – sempre, é claro, com o eurocentrismo que lhe é característico.

* * *

Uma vez de volta à Alemanha, muito mais geógrafo que o zoólogo de outrora, Ratzel iniciou sua carreira acadêmica com os acúmulos dessa viagem, a maior de sua vida e a última para terras que não conhecia. Como já dito, a realidade da imigração chinesa no país o provocou a realizar um estudo aprofundado sobre o fenômeno da imigração chinesa a nível mundial, apresentando essa monografia no processo de admissão ao posto de professor de geografia na Universidade Politécnica de Munique, para o qual foi aprovado.

Como dito anteriormente, os outros dois volumes que Ratzel escreveu sobre o país que visitara – Os Estados Unidos da América, publicados em 1878 e 1880 – nunca foram traduzidos e podem ser consultados apenas em alemão. É essa obra, muito mais que o relato de viagem traduzido para o inglês, que certamente contém os frutos teóricos da viagem e seus desdobramentos em termos de teoria. Se os relatos de viagem explorados neste texto revelam as impressões, surpresas e interesses de um jovem correspondente interessado em informar seu público do outro lado do oceano, em Os Estados Unidos da América Ratzel elabora em termos teóricos tudo que acreditava caracterizar o país visitado. A barreira linguística por ora impediu um exame cuidadoso desse material, mas sem dúvida ali está o maior tesouro em termos de entender o que veio depois, o quanto a teoria de mundo que deu a Ratzel fama mundial carrega de suas experiências no Novo Mundo.

Ainda que com essa lacuna a ser preenchida em um estudo mais aprofundado, esse panorama dos escritos feitos durante a viagem propriamente dita já nos dá alguma noção do que se ocupava Ratzel à época. Sua preocupação com o desenvolvimento industrial, a dinâmica demográfica, a expansão fronteiriça, a questão racial, tudo isso se tornaria uma constante na sua obra dali em diante – a obra pela qual lhe foi atribuída a paternidade da geopolítica, não esqueçamos. 

Na teoria ratzeliana, isso a que chamamos questão racial, em especial, é de tal forma complexo e presente que seria impossível desenvolvê-la a fundo sem uma visão completa de sua produção. Ao mesmo tempo que ao longo desses seus escritos de viagem fica latente o racismo e o eurocentrismo na forma com que olha para todos os povos não-brancos, esse mesmo Ratzel se torna responsável, mais à frente, por toda uma mudança de paradigma na geografia e antropologia europeias, ao olhar esses povos em termos menos biológicos e mais culturais. É o caso, por exemplo, de sua monumental Völkerkunde (Etnologia), uma obra em três volumes que ganhou projeção continental e foi traduzida para o inglês (com o título The History of Mankind) e espanhol (Las razas humanas) ainda durante seu tempo de vida. Nesta obra, Ratzel opera um verdadeiro compilado de tudo que há de “mais moderno” na ciência europeia da época sobre as raças do mundo – leia-se: todo material produzido principalmente a partir da literatura inglesa, dos registros e incursões através de seu vasto império colonial. Sem abandonar de todo o racismo científico da época, Ratzel opera o que pode ser considerado uma mudança de paradigma analítico da questão racial, observando atentamente as características culturais das sociedades não-brancas, reconhecendo sua complexidade e recusando a tratar do tema em termos puramente biológicos e deterministas. 

Essa “mudança de paradigma” pode ser ilustrada por um dos seus últimos embates em vida. Em 1904 – ano de sua morte – Ratzel publica no periódico Türner-Fahrbuch o artigo “Nacionalidades e raças” (Nationalitäten und Rassen), alertando explicitamente contra as teorias raciais de Gobineau e Houston Chamberlain – francês e britânico, respectivamente –, dois dos mais relevantes “racialistas” de seu tempo, responsáveis pela formulação de nada menos que a teoria da superioridade da “raça ariana”, ancestral de todas as “classes superiores” europeias e da Ásia – inclusive afirmando que essa raça não havia sido extinta, mas se mantinha em estado puro na Alemanha e no norte da Europa. Notório antissemita, Chamberlain se mudou para a Alemanha e naturalizou-se alemão durante a Primeira Guerra Mundial, escrevendo inúmeros textos contra a Inglaterra e advogando por um etnonacionalismo alemão, o que lhe rendeu um convite para a corte do Kaiser Guilherme II. Anos depois tornou-se membro do partido nazista e amigo pessoal de Hitler, a quem influenciou a tal ponto que chegou a ser conhecido como “o João Batista” do líder nazista – uma das poucas pessoas presentes no funeral do inglês naturalizado alemão em 1927.

Como entender, então, que um dos últimos atos de Ratzel em vida tenha sido um embate teórico contra as citadas teorias raciais de Chamberlain? O mesmo Ratzel cuja visão dos negros estadunidenses e dos mexicanos, acabamos de ver, era carregada do mais estereotipado racismo; o mesmo Ratzel cujo pangermanismo proclamava abertamente por uma política colonial alemã capaz de equilibrar o atraso de seu país quando comparado a outras potências industriais européias. Parte da explicação pode ser encontrada na própria virada de chave na conjuntura mundial: o racismo europeu passava, à época, por uma certa “situação de transição”. Embora o racismo biológico só tenha sido derrotado depois da Segunda Guerra Mundial – com a vitória soviética sobre o projeto nazista e a consequente onda de descolonização afroasiática –, já na virada do século XIX para o século XX ele começou a perder espaço diante do novo cenário global. A unificação alemã e sua entrada na corrida colonial, a restauração Meiji no Japão e o cada vez mais forte imperialismo japonês na Ásia, o tímido mas não totalmente desprezível desenvolvimento do norte da Itália, além da própria decolagem estadunidense, colocaram na ordem do dia o desenvolvimento e a imposição de povos e nações que contrariavam os modelos rígidos das teorias racialistas, do racismo “científico” e biológico que até então imperava com pouco ou nenhum questionamento no campo teórico. 

Embora careça de uma avaliação mais cuidadosa, podemos dizer que diante de tais mudanças na divisão colonial do mundo – basta observar os principais países envolvidos na Conferência de Berlim – e na própria divisão internacional do trabalho, onde povos não-brancos como o japonês passaram a compor o hall das grandes potências, cada vez mais a chave da cultura parece ter tomado lugar na observação e explicação das diferenças entre os povos e “raças”, e talvez aqui se insira a teoria de Ratzel – que por óbvio nada tinha de antirracista –, que por uma ótica diferente tentava explicar o “papel civilizatório europeu” e a complexidade e variedade das raças humanas a ponto de, como vimos, enfrentar no campo teórico o racismo científico que cada vez mais rondava os círculos políticos e intelectuais alemães. Seja como for, teremos um pouco mais de tempo para avaliar o quanto a teoria de Ratzel se diferencia do racismo biologizante e como se mantém definida pelo eurocentrismo quando chegarmos às obras do Ratzel maduro, o geógrafo academicamente respeitado em plena atividade na universidade alemã.

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