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Diário do julgamento – Ato 1: ex-presidente e generais viram réus

Dentro e fora do Supremo, gestos, cenas e bastidores da primeira etapa de um julgamento histórico no STF
Alice Maciel | Edição de Thiago Domenici
O ex-presidente Jair Bolsonaro durante julgamento da 1a Turma do STF sobre tentativa de golpe. (Foto: Antonio Augusto/STF)
O ex-presidente Jair Bolsonaro durante julgamento da 1a Turma do STF sobre tentativa de golpe. (Foto: Antonio Augusto/STF)
Às 8h30 da última terça-feira (25/3) foi aberta a porta do plenário da 1ª turma do Supremo Tribunal Federal (STF), dando início ao julgamento inédito que colocou no banco dos réus por tentativa de golpe de Estado o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outros sete aliados, incluindo quatro militares da mais alta patente das Forças Armadas. Tudo corria conforme o script, jornalistas aguardavam na antessala a chegada dos advogados dos acusados para entrevistá-los, quando, por volta das 9h25, Jair Bolsonaro surgiu no elevador. Essa seria a primeira surpresa das nove horas que se sucederam do julgamento que terminou ontem (26/3) às 12h55, e foi marcado por “barraco” de bolsonaristas, detenção de advogado, combate a falsas narrativas contra o STF e alfinetadas de ministros.

O ex-presidente, agora réu, chegou sem falar com a imprensa. Sentou-se ao lado de seus advogados na primeira fileira posicionada à frente dos ministros do STF. Nas poltronas à esquerda, já estavam acomodados parentes de vítimas da ditadura militar, como  Hildegard Angel, filha da estilista Zuzu Angel; e Ivo Herzog, filho do jornalista Vladimir Herzog. “O clima ficou bastante tenso com a presença de Bolsonaro”, ressaltou Ivo, em entrevista à Agência Pública. Ele também destacou que 2025 marca os 50 anos do assassinato de Vlado. Hildegard resumiu à repórter sua presença: “Estamos aqui para que não se repita a anistia perversa de 1979”.

Hildegard Angel, filha da estilista Zuzu Angel, acompanha julgamento da denúncia do núcleo 1 da Pet 12.100. (Foto: Gustavo Moreno/STF)
Hildegard Angel, filha da estilista Zuzu Angel, acompanha julgamento da denúncia do núcleo 1 da Pet 12.100. (Foto: Gustavo Moreno/STF)
Ivo Herzog, filho do jornalista Vladimir Herzog, acompanha julgamento da denúncia do núcleo 1 da Pet 12.100. (Foto: Gustavo Moreno/STF)
Ivo Herzog, filho do jornalista Vladimir Herzog, acompanha julgamento da denúncia do núcleo 1 da Pet 12.100. (Foto: Gustavo Moreno/STF)

O cenário estava posto e às 9h45 o ministro Cristiano Zanin, presidente da primeira turma, deu início à sessão. Não passou nem meia hora, e, enquanto o relator do processo, Alexandre de Moraes, lia os primeiros parágrafos de seu relatório, ouviu-se gritos do lado de fora do plenário: “arbitrários!”. Era o desembargador aposentado Sérgio Coelho, advogado de Filipe Martins (ex-assessor da presidência que não estava entre os acusados sob julgamento no dia), que foi “barrado no baile”, como ironizou baixinho um servidor que acompanhava a audiência.

A plateia se alvoroçou, jornalistas levantaram de seus lugares para saber o que estava acontecendo, mas logo foram orientados a sentar novamente para não serem expulsos, uma vez que as recomendações de segurança e decoro dentro da sala são rígidas: “é proibida qualquer manifestação de apoio ou repúdio; falar ao celular, filmar ou fotografar, levar ou consumir bebidas”.

Por todo lado, viam-se seguranças do Supremo. Só dentro do plenário, conforme um deles contou à Pública, tinham dezenas, alguns identificados e outros à paisana. “Tem segurança pra todo lado aqui: em pé, sentado, mulher, homem, gente que vocês nem desconfiam”, destacou o oficial.

Após o pequeno tumulto provado por Sebastião Costa, a assessoria de imprensa do STF agiu rapidamente e emitiu uma nota explicando que ele não havia se credenciado para participar e “havia orientação de credenciamento prévio por parte de advogados” que não compunham a banca dos oito acusados. O advogado chegou a ser detido pela Polícia Judicial “em flagrante delito por desacato e ofensas ao tribunal”, mas após a lavratura de boletim de ocorrência foi liberado.

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Enquanto esse burburinho acontecia nos bastidores, o relator do caso, Alexandre de Moraes, encerrava sua primeira participação. Ele detalhou as medidas tomadas desde que a denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) chegou a suas mãos, e se antecipou aos argumentos das defesas negando qualquer cerceamento no acesso às provas.

Deu-se sequência ao julgamento com a palavra do PGR Paulo Gonet, que reiterou suas acusações, afirmando que Bolsonaro liderou a tentativa de golpe, com o objetivo de se manter no poder após o pleito de 2022. Enquanto isso, uma nova movimentação chamou a atenção. Uma tropa de choque do ex-presidente formada por seis parlamentares do PL entrou no plenário, com a sessão em andamento. Eles também não tinham feito o credenciamento prévio, mas foram liberados a posteriori por Cristiano Zanin para participar da audiência.

Ao longo da sessão, o deputado federal Zé do Trovão (PL/SC) foi abordado por um segurança porque estava tirando foto, o que é proibido. Em outro momento, ele vestiu um chapéu tipo cowboy, mas tirou em seguida, a pedido da jornalista sentada na cadeira de trás. Já o deputado federal Coronel Meira (PL/PE), fez uma algazarra na portaria do STF, porque supostamente foi impedido de subir para acompanhar a audiência. “Sou coronel, sou deputado, tem que me respeitar nessa porra! Ou me respeita, ou me respeita” esbravejou aos berros. Segundo a Corte, todos os deputados que aguardaram a liberação entraram.

Os parlamentares, assim como Jair Bolsonaro, não retornaram hoje ao STF, quando os cinco ministros da 1ª turma decidiram, por unanimidade, tornar réus pelos crimes de golpe de Estado e tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, além do ex-presidente, outro sete integrantes do seu governo: o ex-ministro e vice de Bolsonaro na chapa das eleições de 2022, general Walter Braga Netto; o ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno; o ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), deputado federal Alexandre Ramagem; o ex-ministro da Justiça e ex-secretário de segurança do Distrito Federal, Anderson Torres; o ex-comandante da marinha Almir Garnier; o ex-ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira; e o delator e ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid.

Presente no primeiro dia, Bolsonaro não foi no segundo e decisivo dia 

Entre os oito acusados, Jair Bolsonaro foi o único a acompanhar a sessão em plenário – o que não é usual nesta fase processual. Ele esteve presente no primeiro dia de julgamento, na terça-feira. O ex-presidente permaneceu sério ao longo de toda audiência e em alguns momentos demonstrou maior atenção, olhando fixamente para os ministros, principalmente quando os advogados dos acusados fizeram a sustentação oral. “Bom né”, comentou ao pé de ouvido do advogado Paulo Amado, após a sustentação oral do seu também defensor, Celso Vilardi.

Jair Bolsonaro entre os advogados Paulo Amado (à direita) e Celso Vilardi (à esquerda). (Foto: Gustavo Moreno/STF)
Jair Bolsonaro entre os advogados Paulo Amado (à direita) e Celso Vilardi (à esquerda). (Foto: Gustavo Moreno/STF)

Até o início da sessão nesta quarta-feira (26/3), às 9h50, ainda pairavam dúvidas se o ex-presidente retornaria à Corte para acompanhar o desfecho do caso, enquanto o clima da defesa já era de derrota. A reportagem apurou que Jair Bolsonaro estava indeciso, e só bateu o martelo de que não compareceria à audiência no último minuto. Seguranças do STF demonstraram incômodo com a indecisão do ex-presidente, já que sua presença demandaria uma outra organização: “Ele gosta de surpreender”, ouvi de um policial judicial, em tom de ironia.

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No fim das contas, Jair Bolsonaro optou por acompanhar o voto dos ministros sobre o mérito da denúncia, do gabinete do seu filho, o senador Flávio Bolsonaro (PL/RJ), junto a aliados políticos, como o ex-ministro Gilson Machado, a senadora Damares Alves (Republicanos/DF) e o deputado federal Rodolfo Nogueira (PL/MS). “Ontem fui ao Supremo, foi uma decisão de última hora. Hoje resolvi não ir, motivo: obviamente sabia o que ia acontecer”, disse Bolsonaro em coletiva de imprensa em frente ao Senado, após se tornar réu. “Parece que eles têm algo pessoal contra mim, e as acusações são muito graves e infundadas”, acrescentou.

Ao final do julgamento no STF, os advogados de Bolsonaro, Paulo Amado e Celso Vilardi saíram às pressas do plenário que fica no terceiro andar, sem nem esperar o elevador chegar. Desceram de escada, deram uma rápida declaração à imprensa no hall do prédio e foram embora.

“Na verdade, a materialidade que foi dita hoje nesse julgamento é do dia 8 [de janeiro]- e, com isso, o presidente [Bolsonaro] não tem nem remotamente um envolvimento. E a segunda coisa é: eu não quero parecer repetitivo – como eu disse, decisão do Supremo se cumpre -, mas nós avisamos que a defesa teria um prejuízo concreto com a questão de não ter a totalidade dos elementos de prova. E, hoje, o que aconteceu aqui? Trechos de diálogos, partes de depoimentos… Não sabemos em qual contexto eles foram colocados”, ressaltou Celso Vilardi.

Ao longo de sua sustentação oral ontem, o advogado protestou por não ter acesso à íntegra das provas que basearam a denúncia. Vilardi iniciou sua fala afirmando que Bolsonaro foi “o ex-presidente mais investigado da história deste país” e acrescentou que, ainda assim, a denúncia da PGR não conseguiu apresentar nenhuma prova de sua ligação com o plano golpista ou com os ataques de 8 de janeiro de 2023.

Argumentos de advogados foram derrotados pelo relator

Em linhas gerais, os advogados dos oito denunciados contestaram, na manhã de ontem, a robustez das provas apresentadas, questionaram a falta de acesso a todo o material apreendido que foi usado contra seus clientes pela PGR e a validade da delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid.

“Eu estou impressionada com o universo paralelo desses advogados porque nós vimos, ouvimos, nós vivemos isso, acompanhamos o desenvolvimento disso tudo, acompanhamos as bombas que foram encontradas no aeroporto, acompanhamos as invasões, acompanhamos as declarações, as provocações. Então, eu acho que eles podem se esgoelar, dizer o que querem dizer, mas está mais do que evidente”, ressaltou Hildegard Angel à Pública, após as manifestações dos defensores dos acusados.

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Hoje, o relator do processo, ministro Alexandre de Moraes, contrapôs os argumentos dos advogados de cada um dos denunciados durante seu voto. Mas antes de entrar nos pormenores, o magistrado transmitiu um vídeo com imagens de violência da invasão dos três poderes, em 8 de janeiro de 2022, segundo ele, para rememorar o que ocorreu naquela data.

Moraes, que é o principal alvo dos bolsonaristas, também aproveitou o espaço para combater a falsa narrativa propagada nas redes sociais, de que os invasores “eram velhinhas com a Bíblia na mão”, que eram “pessoas estavam passeando, que estavam com batom, e foram lá passar um batonzinho na estátua” – disse em tom irônico, referindo-se ao caso da cabeleireira que pichou a estátua da Justiça.

Ao longo de seu voto, que durou cerca de duas horas, Alexandre de Moraes destacou ainda que “há indícios razoáveis que apontam Jair Messias Bolsonaro como líder da organização criminosa” que tramou o atentado golpista. Ele afirmou não haver “nenhuma dúvida” que Bolsonaro “conhecia, manuseava e discutiu a minuta do golpe”.

 Leia também – O golpe não passou, mas o golpismo não é passado 

O relator do processo também rebateu os argumentos do advogado Paulo Renato Garcia Cintra Pinto, que atua na defesa do deputado federal Alexandre Ramagem. Ao longo de sua explanação, Paulo Renato disse que a Abin teria a função de atestar a segurança e fiscalizar as urnas eletrônicas. O advogado foi contestado ontem pela ministra Cármen Lúcia, presidente do Tribunal Superior Eleitoral e hoje pelo ministro Alexandre de Moraes. Os magistrados destacaram que a Abin não tem função de fiscalizar urnas.

Na sequência, Moraes afirmou que há indícios suficientes para receber a denúncia contra  o ex-comandante da Marinha almirante Almir Garnier Santos. O advogado do militar, Demóstenes Torres, alegou ontem que as provas reunidas pela PF contra seu cliente são falsas.  Demóstenes teve o mandato de senador cassado em 2012, após suspeitas de envolvimento com o bicheiro Carlinhos Cachoeira.

Durante sua sustentação oral, o advogado Eumar Roberto Novacki, que defendeu o ex-ministro da Justiça Anderson Torres, disse que no dia 12 de dezembro de 2022, a minuta do golpe – com mesmo teor que fora encontrado pela PF na casa do ex-ministro em 10 de janeiro de 2023 – já estava disponível publicamente nas redes sociais. Segundo Moraes, indícios apresentados pela PGR “mostram o exercício do cargo de ministro da Justiça para atuar claramente contra as instituições, em especial contra a Justiça Eleitoral e contra o livre exercício de voto direto, secreto, universal e periódico”.

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Já Matheus Mayer Milanez, que trabalha em favor do ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional Augusto Heleno, ao longo da defesa, comparou as provas reunidas pela PF com uma série de streaming sobre “terraplanismo” e o advogado de Paulo Sérgio Nogueira, Andrew Fernandes Farias, fez uma referência à obra “Hamlet”, de William Shakespeare, ao se referir à receptividade dos ministros da Corte. Para Moraes, a PGR também apresentou provas robustas que os colocam entre os suspeitos de terem participado da trama golpista.

Ao rebater argumentos da defesa do ex-ministro Braga Netto, liderada por José Luís Oliveira, Moraes leu mensagens em que o ex-ministro orientava atacar a família do comandante da aeronáutica, Baptista Júnior, e afirmou que “até a máfia” tem código de conduta para preservar familiares.

A defesa de Braga Netto havia dito ontem que Mauro Cid “mente e mente muito” na delação, enquanto o advogado Cezar Bittencourt, que defende o tenente-coronel, fez uma breve fala, em que ressaltou não haver necessidade de novos argumentos para rebater a acusação contra seu cliente, uma vez que já havia o acordo de delação premiada.

Após o voto de Alexandre de Moraes, os ministros Flávio Dino, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin acompanharam o relator para aceitar a denúncia contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e aliados, formando unanimidade.

Cármen Lúcia chegou a citar durante seu voto o livro da historiadora Heloisa Starling, a “Máquina do Golpe”, que mostra como a democracia foi desmontada até o golpe de 1964, para lembrar que um golpe não acontece de um dia para o outro. “Como diz Heloisa Starling, não se faz um golpe em um dia. E o golpe não acaba em uma semana, nem em um mês.”

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