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Bolívia: lições de um golpe de estado (parte 1)

O golpe na Bolívia desafia as narrativas de “tempos de paz” que chegam com o “fim da história” e de que “vivemos em outros tempos”.
por André Ortega | Revista Opera
(Foto: Eneas De Troya)

Essa é a primeira parte de um artigo dividido em duas. Leia aqui a segunda parte.

“Agora que estamos a salvo, agradeço ao povo boliviano e ao povo mexicano. Não daremos um passo atrás ante os racistas e os golpistas. Hoje vemos que são os verdadeiros inimigos de nosso povo. Enquanto existe vida, a luta segue. Pátria ou Morte! Venceremos!”

Essa foi a mensagem que o presidente boliviano Evo Morales compartilhou em suas redes sociais depois de chegar ao destino de seu exílio, o México. Fala de ameaças contra a vida, de inimigos do povo, de golpe, e termina com a consigna consagrada da Revolução Cubana, “Pátria ou Morte!”, como cunhou Fidel Castro em 1960 e eternizou Che Guevara na Assembleia Geral das Nações Unidas em 1964.

Não estamos mais nos anos 60. Intervenção militar. Eleições anuladas. Violência nas ruas. Governo deposto. Motim policial. Presidente exilado. Estes acontecimentos estavam fora de cogitação para muitos na América Latina nos últimos anos, enquanto a democracia liberal fazia um autoelogio triunfante, os tempos de paz que chegam com o “fim da história” – e até esquerdistas diziam que “vivemos em outros tempos”.

Dentre os vários acontecimentos que desafiam essa confiança – ou essa ingenuidade – estão os fatos que abalam a Bolívia entre outubro e novembro de 2019.

É necessário olhar com atenção aos acontecimentos bolivianos, com o duplo objetivo de compreender melhor a situação de nossos vizinhos e de retirar lições políticas para o Brasil. Ali ocorreram acontecimentos excepcionais que devem ser levados a sério, e não como trivialidades.

Os acontecimentos na Bolívia são de primeiro interesse na América do Sul e partem de um contexto de intensificação de contradições internacionais, de ofensiva imperialista ou uma “contrarrevolução neocolonial”. No já antigo programa de vídeo “Posto Sul” ensaiei observações sobre a estratégia de Donald Trump, além de ter falado de desestabilização internacional no mais recente “Carta no Coturno”; no mesmo ritmo e apresentando o livro sobre a volta do Partido Fardado, Pedro Marin especificamente cobrou no decorrer do ano para que nossos leitores e ouvintes prestassem atenção na Bolívia, como próxima parada do militarismo e ponto de primeiro interesse da geopolítica dos Estados Unidos.

Como sempre, as redes de comunicação viraram um grande campo de batalha. E apesar de toda excepcionalidade dos fatos, jornais internacionais que não se preocuparam em aplicar seus recursos abundantes para reportar da Bolívia durante as eleições e as tensões de outubro, se apressaram em produzir artigos em seguida à queda de Evo para justificar que “não ocorreu um golpe na Bolívia”, apelando até mesmo para a redação de evocação à autoridade: “dizem especialistas”. Jovens preocupados com formalismos políticos e defensores da queda de Evo Morales também elencaram explicações para dizer que não houve golpe de estado.

A queda do presidente boliviano segue um roteiro mais do que uma sucessão de acontecimentos espontâneos. Evo Morales foi derrubado com um roteiro. Como ele foi derrubado?

Muitos começam por uma suposta causa: fraude eleitoral, “Evo Morales fraudou as eleições”. Aqui temos os elementos primários do roteiro: uma justificativa e a cobertura política.

A oposição denuncia as “ambições ditatoriais de Evo Morales”, se colocando em oposição radical ao adversário. Calculam que uma parte da população está radicalizada o suficiente contra o presidente.

20 de outubro, dia das eleições. Na Bolívia, é possível ganhar as eleições para presidente no primeiro turno tendo mais de 50% dos votos ou com uma margem de 10% à frente do segundo lugar.

A Organização dos Estados Americanos, correspondendo à campanha e seguindo um padrão de atuação contra a Venezuela, já desconhecia os resultados antes mesmo de concluída a contagem oficial ou de qualquer auditoria. Acompanharam o candidato de oposição Carlos Mesa, que já declarava um segundo turno como “realidade” ou, caso fosse de outra maneira, fraude.

Para o observador da OEA, Manuel González, deveria haver um segundo turno mesmo que Morales vencesse com a margem dos 10%, independente da lei boliviana.

Na noite de 20 de outubro, vem a primeira ação decisiva dos grupos de choque, que atacaram centros eleitorais. No dia 21 de outubro, vigílias oposicionistas estavam à frente de centros de contagem denunciando “fraude”. Através da internet, a máquina de propaganda mais agressiva funcionava espalhando boatos, terror e avançando a pauta “anti-fraude”. Incidentes se espalharam por Santa Cruz.

Em Sucre, os protestos adquiriram um caráter mais violento. Incendiaram o Tribunal Eleitoral Departamental e a casa de campanha do MAS (Movimiento al Socialismo, partido do Morales). Também botaram fogo nas urnas eleitorais, e destruíram os escritórios da Federación Única de Trabajadores de Pueblos Originarios de Chuquisaca (Futpoch). O tribunal eleitoral de Tarija e suas urnas também foram incendiados.

Em Potosí, o comitê cívico “COMCIPO” liderado por Marco Pumari incendiou o tribunal eleitoral; o fogo atingiu casas adjacentes.

Os opositores, em geral apoiadores de Carlos Mesa e opositores organizados contra Evo Morales do Movimento 23F passaram a se reunir ao redor de centros de contagens para fazer pressão e protestar. Uma das sedes de cômputo em La Paz, o Hotel Radisson, foi rodeada por conflitos entre apoiadores de Evo, da oposição e forças policiais que haviam sido colocadas como proteção (e que serviram de alvo para provocações). Em outra, no Hotel Presidente, as contagens foram suspensas devido aos conflitos e ameaças.

Outros quatro tribunais departamentais suspenderam as contagens devido a ataques.

Um dos incêndios mais noticiados foi o do tribunal eleitoral de Chuquisaca. No dia 23 de outubro, o tribunal transferiu a contagem para a cidade de Zudañez. O tribunal de Potosi teve que concluir a contagem na cidade Llallagua.

O prefeito de Cobija, Luis Gatty Ribeiro, e o governador de Pando Luis Adolfo Flores, foram atacados e tiveram suas casas destruídas. Flores foi hospitalizado. O tribunal eleitoral de Pando foi incendiado e os computadores roubados.

A violência não é livre de antecedentes. Em dezembro de 2018, quando a candidatura do MAS foi habilitada, um grupo de encapuzados botou fogo no tribunal eleitoral de Santa Cruz de La Sierra. Em Santa Cruz, no dia 15 de outubro, o evento de encerramento da campanha do MAS foi atacado por militantes de oposição, encerrando a campanha em uma batalha campal. Se olharmos com mais distância, percebemos que Santa Cruz é palco de confrontos desde 2006.

No dia 22 de outubro, os Estados Unidos e a OEA questionaram a “credibilidade do processo de contagem de votos”; o vice-secretário de Estado dos EUA fez uma declaração “rechaçando” as “tentativas do Tribunal Eleitoral de subverter a democracia na Bolívia ao demorar na contagem de votos e ao tomar ações que debilitam a credibilidade das eleições”, o que foi seguido por uma declaração da embaixada dizendo que fazem um “chamado ao Tribunal Eleitoral” e que os Estados Unidos vão “trabalhar com a comunidade internacional para responsabilizar qualquer um que debilite as instituições democráticas da Bolívia”. A OEA falou de “mudança drástica, difícil de justificar”, por uma leitura dos resultados preliminares que já davam vitória para Evo Morales, sem fundamentar uma acusação que é sim fácil de se contra-argumentar, já que a virada acompanhava a contagem de votos rurais.

Esses foram sinais de largada para a oposição crescer o tom e ampliar seus ataques. No dia 23, o Comité Cívico de Santa Cruz anuncia uma “greve” de prazo indefinido, e seu líder dá um ultimato às autoridades eleitorais para que realizem um segundo turno, caso contrário dariam posse a um novo presidente. A “greve”  foi levada a frente por capitalistas e produtores rurais, criando um clima permissivo para bandos oposicionistas atacarem estabelecimentos que não aderiram a ela.

No dia 24 de outubro foi anunciada a vitória de Evo Morales com a margem necessária para vitória no primeiro turno, mas imediatamente os Estados Unidos e a União Europeia, seguidos por seus lacaios no Brasil e na Argentina, exigiram um segundo turno. A oposição não reconheceu e o Comitê de Santa Cruz já exigia novas eleições, sem Morales, com o grupo paramilitar União Jovem Cruceñista organizando manifestações violentas e ações armadas.

Nesses primeiros dias, os grupos de choque se enfrentavam com a polícia. Em La Paz atacaram oficiais eleitorais que transportavam urnas com votos rurais, algumas foram roubadas e outras queimadas.

Esses elementos operam, entretanto, uma jogada interessante: com Evo Morales se dispondo a aceitar uma auditoria da OEA, automaticamente começam a atacar e recusar a auditoria, tanto Mesa (que desconheceu a auditoria no dia 31 de outubro) como Camacho; este último mais radical, agora chamando Mesa de covarde. Dessa maneira, aumentam a aposta e aceleram o processo – se já queimaram tribunais eleitorais logo no primeiro dia, não há porque não apostar tudo no quinta dia após as eleições, sabotando o máximo possível e tentando controlar a narrativa sobre o que deve ser feito com o país.

O mais fundamental para entendermos a escalada do golpe e seus operadores é que todos esses atores se mantém constantemente na ofensiva e tentando conservar o momento. E por atores me refiro também às figuras internacionais e da comunicação, mesmo que o seu avanço tenha sido mais lento. Houve um salto do discurso da reivindicação de um segundo turno e de repente cancelamento das eleições e deposição de Evo Morales.

Os saltos no discurso anti-Evo seguiram uma lógica programática:

  1. Evo Morales não deveria ser candidato.
  2. Vamos concorrer às eleições, mas “Evo Morales é um ditador” e se ele se candidatou “não se pode confiar nas eleições”.
  3. Exigimos um segundo turno.
  4. Exigimos o cancelamento das eleições e a saída de Evo Morales.

No limite, esse programa em sua forma máxima é representado pelos ataques diretos ao MAS e a uma defesa da destruição do partido de Evo Morales.

Os dois primeiros saltos na acusação de fraude foram a acusação de que o sistema de resultados preliminares através de contagem rápida TREP (Transmisión de Resultados Electorales Preliminares) foram suspensos quando “indicavam um segundo turno” e depois que a contagem oficial foi suspensa por 24 horas.

No entanto, a contagem do TREP não é vinculante na legislação boliviana, o que vale é a contagem oficial. A transmissão foi encerrada às 19:40 do dia 20 de outubro, com 83,85% das atas verificadas, o que correspondia ao compromisso anterior do TSE boliviano de publicar os resultados do TREP somente até a verificação de 80% das atas – assim funcionou em outras disputas eleitorais bolivianas no passado (como no próprio referendo constitucional de 21 de fevereiro de 2016).

Os meios, a exemplo da redação da BBC (essa poderosa assinatura anônima que é quase um editorial), publicaram matérias tendenciosas com títulos como “suspensão da contagem preliminar oficial quando tudo apontava para um segundo turno”.

O outro escândalo foi quando centros de contagem tiveram que fechar por conta de ataques de oposicionistas.

É incrível o discurso uníssono da OEA, dos Estados Unidos, dos europeus e dos centristas liberais: as autoridades eleitorais ficaram 24 horas sem contar votos! No dia 23 de outubro a contagem ainda estava no prazo, mas essas figuras insistem em julgar como “muito estranho” e questionar o processo boliviano. É claro que é estranho: o processo eleitoral foi interrompido por ataques coordenados a tribunais eleitorais de departamentos importantes, onde os prédios, urnas e atas eleitorais eram queimadas por manifestantes “contra a fraude”.

No Brasil, os mesmos democratas sensíveis que se escandalizaram com as medidas preventivas que Bolsonaro assumiu questionando nossas eleições, dizendo que se ele perdesse “com certeza seria fraude”, o que depois poderia bancar um golpe de estado ou uma sabotagem completa do processo eleitoral, olharam para a Bolívia do alto da sua torre de marfim e não enxergaram a oposição boliviana usando os mesmos métodos. Métodos que são de boicotes radicais contra eleições, que guardam alguma semelhança com as medidas do Talibã contra as eleições do Afeganistão.

Os mesmos que se escandalizaram com o mentiroduto de Bolsonaro e as campanhas de desinformação nas redes não imaginam que Evo Morales possa estar sofrendo com a mesma técnica, mas com um interesse redobrado dos Estados Unidos na aplicação dela para a destruição de um estadista escolhido como inimigo.

A cobertura política aí possuí alguns atores principais: primeiro Mesa, depois a OEA como pivot internacional. Acima de tudo e por trás dessas atuações, o posicionamento dos Estados Unidos da América. Foi precisamente essa a chave que permitiu a culminação final do pronunciamento militar no dia 10 de novembro.

Os que querem se iludir, que verifiquem os posicionamentos do sr. Almagro (secretário geral da OEA) e dos Estados Unidos em outros países.

A OEA como instrumento: o relatório da fraude ou a fraude do relatório?

A expulsão de Cuba da OEA em 1962 não foi um problema que diz respeito só a Cuba ou aos Estados Unidos, nem foi um “erro”, um “produto da guerra fria”, uma vitória diplomática dos EUA ou um ponto isolado dentro de instituição. A Revolução Cubana revolucionava o próprio espaço geopolítico latino-americano e suas relações internacionais – o bloqueio dos Estado Unidos, por sua vez, não é um ato corriqueiro, mas um ato de guerra cujos esforços demandavam a adesão de todo o continente. Aquilo foi um grande racha no sistema interamericano e o início de uma transição qualitativa, que reafirmou a Doutrina Monroe através do novo intervencionismo anticomunista.

Como disse Moniz Bandeira em “Brasil, Argentina e Estados Unidos”:

“O desígnio dos EUA era tornar a OEA um poder supranacional, com a limitação da soberania dos Estados-membros, salvo a própria, tanto assim que jamais aceitaram a multilateração da Doutrina Monroe, reservando para si, com exclusividade, o direito de interpretá-la, unilateral e casuísticamente, bem como de aplicá-la ex-post-facto e sempre em função de seus interesses ou eventuais objetivos políticos.”

Tanto assim foi que estadistas não-revolucionários da América Latina se preocuparam com o episódio de Cuba e em seguida com a questão relativa ao golpe militar no Peru em 1962 – na verdade, as principais nações latino-americanas naquele momento tentaram resistir, sendo elas Brasil, Argentina, México e Chile.

Como forma de disciplinar o continente e garantir sua dominação após uma onda de governos nacionalistas, os Estados Unidos buscaram robustecer seu predomínio de outras formas, “sobretudo através das próprias Forças Armadas dos Estados latino-americanos, utilizando-as para os vergar e reduzir à obediência que os recalcitravam”, como acrescenta Moniz Bandeira.

Foi a Junta Inter-Americana de Defesa (JID) da OEA que formulou uma “doutrina da ação cívica” para justificar intervenções militares e o papel central do exército.

Voltando para os acontecimentos recentes, no dia 10 de novembro a OEA publicou o informe sobre sua auditoria. Recomendaram “novas eleições”. A campanha de Mesa e da oposição subiu o tom e decretou: fraude! 

A “auditoria” recebeu somente 250 denúncias e verificou 333 atas “questionadas”, ou seja, que não foram selecionadas aleatoriamente como amostra, mas pressupondo que nelas haviam irregularidades. 333 atas são menos que 1% do total de 34.555 atas eleitorais. Dessas 333, disseram que encontraram “irregularidades” em 72 atas, 0,2% do total de atas e o equivalente a 23% da amostra. As irregularidades são parciais e se relacionam com possíveis erros procedimentais. São representativas?

Nota-se ainda que, mesmo com um número reduzido de atas, a “auditoria” durou menos do que o previsto. Por acaso, ela acompanhou o próprio ritmo do golpe de estado e o momento de maior tensão que havia se acumulado no dia 9 de novembro.

Para “engrossar o caldo” e tentar deixar a posição mais sólida, a OEA também teceu críticas ao processo de transmissão de dados, questionando os mecanismos de verificação e sistemas de software de acordo com critérios que nunca estiveram previstos pelo sistema boliviano – os critérios até então eram aceitos pela oposição, que reconhece a contagem manual.

O que a OEA fez foi um relatório apressado para atender um objetivo político: a derrubada de Evo Morales. Não por omissão, mas por ação calculada, blefaram a “fraude” para manipular a opinião pública da Bolívia e dos outros países sem oferecer provas dessa fraude. Os “técnicos” da OEA acharam estranho que a proporção de votos em alguns distritos não correspondesse à de outros. Isso não é só uma falácia matemática, mas é acima de tudo um absurdo do ponto de vista da ciência política: existem diferenças geográficas nos comportamentos eleitorais, e no caso boliviano podemos observar a diferença brutal do voto em Evo Morales nas zonas rurais tanto nas últimas eleições como na apreciação científica de pesquisadores interessados no tema.

A sugestão, interpretativa, é de que a diferença se daria por métodos fraudulentos e não por características sociopolíticas e dinâmicas já conhecidas do comportamento eleitoral boliviano, em suas distinções entre zonas urbanas e rurais.

As inconsistências e a abertura para o questionamento não importam dentro do roteiro do golpe de estado, pois a declaração de “fraude” já é o estopim para a deflagração.

Quando Mesa acusou fraude, faltavam ser contados quase um milhão de votos dos 7,3 milhões. Esses votos eram em sua maior parte do interior rural e do exterior, dos trabalhadores imigrantes (que na Argentina e no Brasil são na maioria favoráveis ao MAS). O candidato de oposição sabia que se a situação estava daquele jeito ela podia piorar, pois estava longe de ser favorito para os camponeses ou imigrantes. Ademais, os seus votos estavam sendo sangrados por um outro candidato, evangélico de extrema-direita.

Morales ganhou as eleições e com uma diferença suficiente para vencer no primeiro turno. Não há nada de impressionante nessa vitória: em 2005, na sua primeira eleição, o sindicalista rural teve uma vitória avassaladora conquistando mais de 50% dos votos contra um segundo lugar que não conseguiu ultrapassar sequer a marca de 29%.

Num espetáculo de hipocrisia, os representantes do candidato oposicionista continuavam acompanhando as contagens de voto nos centros eleitorais, enquanto os grupos de choque espalhavam destruição.

A aposta política é inteligente: o golpismo sabe que possui uma base forte na cidades e já possuía quadros e movimentos preparados para a disputa das ruas, onde importa mais a dinâmica de política de massas, diferente do mundo rural, extenso, de baixa densidade demográfica, mais tradicional e cuja mobilização depende da adesão a alguma modalidade de sindicalismo rural e infraestrutura nacional para levar as pessoas para as cidades.

Mais do que isso, partindo da suposição que esses redutos de apoio a Morales são lugares de organização camponesa, é justo inferir que eles têm uma má memória de Mesa, devido aos grandes protestos no início dos anos 2000. É uma suposição arbitrária, de fato, mas aqui não pretendemos fazer um relatório técnico que eventualmente serve de estopim para um golpe de estado – só queremos estimular o senso crítico dos oportunistas que vão nos acusar de “arbitrários” enquanto acreditam na “santidade técnica” da OEA.

Os grupos de choque, cumpriram a função de paralisar a capacidade de resposta dos movimentos populares através do terrorismo.

A meia-lua reacionária: do separatismo ao discurso constitucional

A oposição a Evo Morales se concentra em alguns estados bolivianos que já ensaiaram sublevação no passado. Esse conjunto é chamado de media luna (meia lua) e desde a eleição de Evo Morales em 2005 (mandato iniciado em 2006) se articularam em um movimento separatista que ganhou força como oposição ao presidente indígena. O espaço formado por Tarija (los llanos, no sul) e pelos departamentos orientais de Santa Cruz, Beni e Pando.

Desde lá se multiplicavam ataques por grupos radicais de direita que usavam consignas anti-indígenas. Havia até planos de criação de um exército a partir dos paramilitares, sob o comando de Eduardo Rózsa, boliviano-húngaro que lutou na guerra iugoslava ao lado dos croatas.

Também um croata liderava o Comitê Civil de Santa Cruz na onda separatista, Branko Marinkovic, oligarca com formação empresarial nos Estados Unidos – atualmente, mora em São Paulo. É um dos pivôs do discurso de identificação automática dos cocaleros com o narcotráfico.

O movimento desestabilizou o país propondo a separação das zonas onde se encontra a riqueza energética e a grande produção agrícola do país. O discurso prossegue até hoje: de um lado se recusam a usar o termo “plurinacional”, defendendo a “república”, de outro defendem o separatismo de um “país falido”.

Dada a sobrevivência de Evo Morales no poder e o sucesso de seu governo, que conta inclusive com massas de apoiadores na meia-lua, o único projeto que efetivamente faliu foi o do separatismo, que em compensação serviu de base para a oposição se organizar em linhas pseudo-constitucionalistas e de discurso republicano.

Uma das grandes críticas e razões da oposição contra Evo é o referendo de 21 de fevereiro de 2016. No final de 2015, o tribunal constitucional havia aprovado a pergunta do referendo que foi preparado pelos parlamentares do MAS para possibilitar a reeleição do presidente da república.

A ideia da consulta era realmente definir a candidatura de Evo Morales para um quarto mandato na presidência da república.

Durante a campanha pelo “Sim” (defendido pelo MAS, o partido de Evo) estourou um escândalo danoso que foi avançado pela mídia boliviana e espalhado pela rede: Evo Morales teria um filho desconhecido do público com a empresária Gabriela Zapata.  A “revelação” surgiu pouco tempo antes do referendo, no dia 3 de fevereiro – meios internacionais como a BBC e a CNN deram cobertura completa ao escândalo. Zapata era executiva de uma empresa chinesa na Bolívia, a CAMC, que possuía uma série de contratos milionários com o setor público.

O escândalo foi sério, com o jornalista Carlos Valverde, que fez a denúncia, apresentando um documento de “certidão de nascimento” que comprovaria o tal filho. O documento se revelou falso e o jornalista admitiu que não havia criança três meses depois. Ao mesmo tempo, em maio de 2016 a justiça boliviana também declarou a inexistência de tal criança.

A comissão do congresso responsável por investigar a acusação de tráfico de influência só chegou à conclusão final em dezembro de 2017, não encontrando implicações contra Evo Morales, mas desvelando a público os negócios da empresária que eventualmente enfrentou uma condenação na justiça (está cumprindo pena de 10 anos na prisão – Zapata usava diversos tipos de falsificações em seus negócios, se apresentando no estrangeiro como representante do governo e se dizia advogada, dentre outras mentiras).

Esse foi um dos temas centrais da “guerra suja” que Evo e seus apoiadores denunciaram depois do referendo, que buscaram medidas para identificar bots e sistemas atuando na rede durante o referendo. O resultado foi apertado: 51,3% dos eleitores disseram “não” para alteração, com uma diferença de 136 mil votos (e 260 mil votos que foram nulos ou em branco).

Além do fator da propaganda enganosa durante o referendo, o trecho da constituição que impõe limites à reeleição não foi incluído na redação original da Constituinte – soberana – mas é sim uma concessão a partir de negociações com a oposição, que fazia ameaças separatistas e de sabotagem do processo de voto com métodos semelhantes ao que vemos agora.

Por isso, o partido de Evo continuou bancando que ele se candidatasse como um direito do povo de poder eleger quem quiser: em 2017 um grupo de parlamentares do MAS tentou reverter a derrota de 21 de fevereiro com uma postulação de “inconstitucionalidade abstrata” ao Tribunal Supremo Constitucional do país. O tribunal constitucional interpretou que uma série de artigos que usam as expressões “por uma só vez de maneira contínua” e “de maneira contínua por uma só vez” como incoerentes com os princípios fundantes da Constituição Política, portanto inconstitucionais. Isso não só alterou o artigo 168 sobre a reeleição para presidente, mas tornou todos os cargos abertos a postulação e reeleição permanentes. Apesar de notícias falsas e a “guerra suja” na comunicação não terem sido o objeto da matéria constitucional, essa foi uma das justificativas centrais do “oficialismo”, que recorria a uma argumentação muito similar ao que os defensores da permanência da Grã Bretanha na União Europeia avançaram em sua pauta de revisão do Brexit – muitos desses defensores são os mesmos liberais europeus e os mesmos jornais que chamam o recurso de Evo ao tribunal constitucional (o que é possível e legal) uma “manobra anti-democrática”.²

Fala-se que o “tribunal constitucional é formado por aliados de Evo Morales”; cabe acrescentar que os juízes da suprema corte boliviana foram eleitos pelo voto popular em 2011 (junto dos juízes da suprema corte de justiça, do tribunal agro-ambiental e os do conselho judiciário). Foi a primeira vez que isso aconteceu em um país latino-americano. Antes os juízes eram eleitos diretamente pelo Congresso, agora cabe à Assembleia Legislativa Plurinacional nomear os candidatos. O Congresso eleito em 2009 tinha uma maioria de dois terços para o partido de Evo.

Para todos os efeitos, Evo conquistou o direito de se candidatar novamente graças ao tribunal constitucional. A oposição, como resposta, articulou em 2017 o Movimento 21F. Esse movimento organizou “plataformas cidadãs” para protestar contra a candidatura de Evo Morales, realizando manifestações principalmente em Cochabamba, Santa Cruz e Tarija. Buscavam projetar uma imagem de “movimento espontâneo e sem líderes”, mas suas mobilizações não lograram grande sucesso e foram contrapostas por manifestações mais massivas favoráveis a Evo Morales, formadas pelas bases tradicionais de movimentos sociais do masismo.

Não obstante as dificuldades nos anos de 2017 e 2018, o Movimento 21F serviu como plataforma, guarda-chuva e acobertamento para as movimentações de 2019, dissimulando líderes e grupos radicais em uma “plataforma democrática de manifestantes civis”. O seu formato é mais similar ao modelo das revoluções laranjas e ao que tentaram reproduzir no Brasil na forma do Movimento VemPraRua.

Os comitês cívicos e os grupos de choque

A vanguarda da ofensiva foram os grupos de choque saídos principalmente de bases políticas especiais, os “grupos cívicos”, e, acima de todos, o Comitê Cívico Pro Santa Cruz.

Na Bolívia usaram uma terminologia que chamou o golpe de “golpe cívico”, o que só pode ser entendido a partir do contexto boliviano e a construção histórica dos chamados comitês cívicos. 

No superficial, esses comitês surgiram nos anos 50, em reação à centralização do governo revolucionário do MNR, que havia feito desaparecer os governos municipais. Neles se entrincheiraram as velhas oligarquias que haviam sofrido sérias derrotas na política nacional. São corporações políticas e empresariais.

Os grupos cívicos são hoje uma forma de organização alternativa a organizações populares  e às juntas de vizinhos, capaz de garantir um tipo de socialização política burguesa, unindo diferentes classes e setores sociais, principalmente as classes médias e altas, em uma articulação urbana, mais formal e em nome de uma “identidade da cidade”. Os grupos cívicos se tornaram uma resposta organizacional às formas de auto-organização popular – e ainda mais às revolucionárias – usando esse nome “cívico”, como forma de demarcação  ideológica republicana em negação ao governo de Evo Morales.

Representam a defesa de uma ideologia democrática em um sentido burguês (o que, eu devo alertar aos leitores mais novos, não é um caracterização “negativa” ou “positiva”, mas histórica e moeda comum mesmo em defensores desse ethos burguês, revolucionário, dos 1800): a defesa do republicanismo, das leis, das instituições, do “ideal da República” contra a esquerda “ideológica”, o caudilhismo, a corrupção, a ilegalidade, contra os movimentos sociais representados como grupos de interesse, dentre outras imagens próprias.³

Eles possuem grupos de jovens treinados para paralisar cidades e fazer bloqueios. Daí surge o terror cívico.

O Comitê Cívico de Santa Cruz é uma organização burguesa, dominada por uma elite local tradicional, ligada a atividades agrícolas, comerciais e industriais. Sua organização deriva de um regime estatutário e do direcionamento financeiro, sujeita à influência decisiva de notáveis endinheirados. É uma organização capaz de mobilizar as massas em manifestações, o que não decide de uma vez por todas o caráter de uma insurreição ou golpe de estado.

Foram mobilizadas a partir de uma noção de cidadania abstrata antes de tudo, não a partir de bases, não como auto-afirmação política, mas como afirmação temporária de um ponto em comum que é a rejeição de Evo Morales.

Como as “associações civis” na Colômbia, mas com uma história muito mais profunda, os comitês cívicos servem para encobrir estruturas paramilitares. No caso do Comitê Cívico de Santa Cruz, há um movimento político jovem, extremista, a União Juvenil Cruceñista.

Esses jovens têm um histórico de violência que remete a momentos anteriores à eleição de Evo Morales, como ataques contra manifestantes que lutaram contra o neoliberalismo em 2003. Espancavam e chicoteavam camponeses que marcharam contra o governo de Sánchez de Lozada, batiam e apedrejavam estudantes que se mobilizavam contra o movimento pela autonomia de Santa Cruz, emboscavam militantes sem terra e atacavam a infraestrutura da rede estatal de televisão. O símbolo deles é o uso de bastões, que foram usados para fazer ataques em bairros operários que votam no MAS em Santa Cruz.

Sua ideologia é exaltação da superioridade de Santa Cruz: “defesa da raça”, a defesa de um bastião “ocidental” em contraposição ao indígena e um regionalismo intolerante – o índio como figura do atraso e do anti-cristianismo.

Até a embaixada dos Estados Unidos, em uma comunicação vazada, os caracterizou como racistas e outros defensores menos radicais da autonomia consideram os extremistas um embaraço, uma mancha neofascista.

Mas nem só de extremistas se alimenta um golpe.

Primeiro foram os jovens de classe média usando o método que ficou célebre na Venezuela como “guarimba” e batizou os movimentos anti-chavistas violentos: prender uma corrente nas duas margens de uma avenida para bloqueá-la. Na Bolívia o método foi chamado de “La Pitita“.

Grupos de choque sem tanta profundidade ideológica, comprometidos com a oposição de direita, nascidos dentro do 21F e ligados a outros comitês cívicos – como o de Potosí – também atuaram. O Comitê Civico de Potosi – o COMCIPO – se destacou nesse ano exigindo que a região ficasse com os royalties da produção de lítio. E antes deles vieram outros mais moderados, essenciais para cobrir as ações radicais. O melhor exemplo é o CONADE, movimento estudantil liderado por Waldo Albarracin, reitor de 60 anos da Universidade de San Andrés, e que defende “a liberdade e os direitos humanos”. Foram responsáveis pelas técnicas clássicas de revolução colorida, marcando presença nas vigílias.

Quando os golpistas escalaram a violência, o propósito do roteiro foi criar um clima geral de pogrom, normalização da violência e perseguição contra membros do governo e do MAS. Sedes do partido e de movimentos sociais se converteram em alvos. Assim começaram os sequestros, os ataques contra casas, as humilhações e os linchamentos, como a prefeita que foi humilhada e pintada de vermelho, ou o presidente do sindicato dos radialistas que foi amarrado em uma árvore.

No dia 9 de novembro, cercaram e invadiram a Bolivia TV, sequestrando seus funcionários e mudando a programação para uma favorável ao golpe.

Em Cochamba, um grupo de choque formado por motoqueiros cometeu diversos delitos pela cidade, incluindo vários ataques que foram registrados contra mulheres em vestimentas indígenas. Mais do que o fenótipo, as vestimentas na Bolívia são historicamente um sinal de distinção entre castas e raças.

Na fase final de sua ofensiva, Camacho estava com seu conselho de guerra hospedado em um hotel na zona sul de La Paz e os grupos de choque começaram a se articular para mandar homens para a capital, no intuito de atacar o palácio presidencial. No palácio presidencial, Camacho e Marco Pumari, líder do Comitê Cívico de Potosi, protagonizaram ao lado de um pastor uma cena que se espalhou pelo mundo: a Bíblia sobre a bandeira boliviana, “Pachamama [Mãe Terra] nunca mais vai entrar aqui”, decretaram.

O golpe não se concretizou, no entanto, devido a ação desses grupos. Era necessário o apoio ativo das forças de repressão.

Por alguns dólares a mais: a Polícia se incorpora à fase armada do golpe

O roteiro entrou em uma nova fase com o “motim policial” no dia de 8 de novembro. A polícia é uma peça fundamental de uma politização e do monopólio das forças repressivas a favor da oposição.

Foi a ação policial – e em alguns casos, a inação – que permitiu a livre atuação de grupos extremistas e paramilitares que cumpriram a função de grupos de choque do golpe. O motim policial é a senha para a escalada do golpe em uma nova fase, para um salto nas formas de violência.

Importantes guarnições policiais se amotinaram não perante uma ordem de repressão contra manifestantes, mas o fizeram simultaneamente em cidades importantes e com uma pauta de reivindicações corporativas que se converteram em exigência política (a renúncia de Evo). Guarnições de Sucre, Santa Cruz, Tarija e Oruro, seguindo a polícia de Cochabamba. O fizeram de maneira coordenada e com manifestantes previamente posicionados, mas os atos foram retratados na mídia como atos espontâneos, como parte de uma grande comoção por conta de Evo Morales, intensificando a pressão contra o governo e a tensão geral nas populações.

Isto é, quase tão importante quanto as ações espetaculares de motim com bandeiras, lemas e slogans, é a cobertura midiática e a exposição desses atos. Lembremos que neste ano pequenas ações de militares rebeldes na Venezuela foram retratadas, num primeiro momento, como o início de grandes rebeliões antichavistas.

As notícias traziam retratos dos acontecimentos como inevitáveis, implacáveis e expansivos, ou com pequenos traços de legitimação contrapostos à “alegação de Evo Morales de que é um ‘golpe de estado'”. Meios brasileiros publicaram a mesma matéria da agência AFP com o seguinte título: “Policiais se amotinam na Bolívia contra repressão a opositores”.

O texto da AFP não expõe as pautas corporativistas dos policiais, nem oferece um contexto melhor (pela própria técnica dessa modalidade) e tão pouco se preocupa muito em mostrar o contraditório.

As polícias fizeram uma espécie de leilão golpista. Exigiram aumento salarial de 10%, armamento de dotação individual, aposentadoria integral, aplicação de um plano de profissionalização, habitação para cada um dos policiais, e anulação da lei 101, que regula o regime disciplinar. Evo Morales chegou a ceder a três reivindicações – anulação do regime disciplinar, aumento salarial e aposentadoria integral – mas a concessão não deteve os policiais.

Num leilão golpista, as forças medem os benefícios que podem ganhar das partes interessadas na consecução ou impedimento do golpe. No caso da polícia boliviana, o problema não se resume no oportunismo do momento, mas sim em uma construção política mais longa das relações da polícia com o governo.

Não é a primeira vez que se amotinam – em 2012, as forças policiais haviam se amotinado com particular violência. Um relatório do consultor político Luis Carlos Campero, feito no final 2012 para a fundação Friedrich Ebert Stiftung, expõe um retrato geral da polícia boliviana. A instituição é marcada pela politização (jogo de interesses), profissionalização precária, atomização e heterogeneidade estrutural (apesar de em tese ser uma polícia nacional, centralizada), corrupção e um sistema de recompensas – para o controle político – baseado em prebendas, dentre elas a impunidade. Além disso, ofertam seus serviços no mercado, de forma privada.

O primeiro grande conflito de Evo com os policiais que levou à crise de 2012 foi a criação de um serviço geral de identificação nacional e um serviço geral de licenças, tirando a jurisdição da expedição de documentos das mãos da polícia e passando-a para os ministérios de Governo e da Justiça.  Na lei de 27 de Junho de 2011 feita para esse fim, o artigo 11º sobre “Financiamento” se refere diretamente aos “recursos que a Polícia Boliviana deixará de receber, pela transferência dos serviços de outorga das Cédulas de Identidade a favor do Serviço Geral de Identificação Pessoal – SEGIP”.

A lei não surgiu só como um esforço de modernização do sistema de licenças e identificação, mas como resposta aos escândalos de corrupção envolvendo a Polícia Boliviana, que controlava um amplo sistema burocrático que permitia grande influência na vida civil e o exercício de certos poderes no mínimo quase discricionários, além das oportunidades de corrupção. O controle das licenças era uma maneira de controlar os cidadãos e localidades; Evo Morales foi bem claro sobre o objetivo da lei em relação à polícia: “que a instituição melhore sua imagem e recupere sua missão principal que é dar segurança ao povo, não cobrar recursos do povo”.

A medida não foi bem recebida pela polícia, que respondeu com rechaço e boicote às novas entidades, atrapalhando seu funcionamento e adulterando os bancos de dados que transferiam para as novas instituições. As novas entidades informaram a existência de pelo menos 400 mil cédulas adulteradas, clonadas ou duplicadas.

Um olhar mais crítico pode julgar o conflito de Evo Morales com a polícia como um esforço de construção do estado e das instituições perante uma única instituição conservadora, um modelo antiquado de polícia.

Morales também conquistou a oposição da polícia com a lei 101, que cria um novo regime disciplinar. Além disso, os policiais também ressentiam sanções devido ao uso de “excesso de força” em repressão de movimentos como a repressão de um acampamento indígena em Yucumo.

Morales investiu nas forças policiais durante seu governo, mas também desafiou tradições organizacionais em suas nomeações de chefia. A relação foi conturbada e terminou como vemos agora.

Tendo consciência desse cenário, podemos assumir uma compreensão mais profunda dos gritos que os policiais amotinados davam de “la policia se respeta, carajo. Ainda que o grito “se respeita, caralho” seja usado de várias maneiras e por várias forças políticas na Bolívia, a manifestação policial tem uma dimensão corporativa e política própria.

Foram policiais que prenderam, ilegalmente, a presidente e o vice-presidente do Tribunal Supremo Eleitoral, María Eugenia Choque e Antonio Costas, além de outros 33 funcionários do tribunal. Foi um oficial da polícia que declarou que havia uma ordem para prender o “senhor presidente”(sic) Evo Morales.

A senha dos motins trouxe um conjunto de ações militares irregulares coordenadas. Os mesmos policiais que supostamente “se recusavam a reprimir” estavam assumindo consignas políticas, fazendo gritos provocadores, rasgando a bandeira plurinacional wiphala dos seus uniformes enquanto gritam “somos república!” e, mais importante, se associaram a grupos paramilitares. Eventualmente, após a deposição de Morales, policiais se uniram aos paramilitares para caçar partidários do presidente deposto.

Se antes os grupos de choque atuavam no meio do caos das manifestações – seguindo o modelo aplicado pelos neofascistas na Ucrânia e hoje replicado por grupos de ação em Hong Kong -, atuando na linha de frente e momentos de dispersão e procurando incitar incidentes com as forças de repressão, agora a conivência organizada das forças de repressão permitia uma atuação mais aberta de controle territorial e expansão geográfica. A adesão policial também permitiu um maior acesso ao armamento, equipamentos de proteção e comunicação (ou, para não dizer acesso, a possibilidade de utilizá-los ostensivamente sem atrair assédio policial).

A adesão de unidades policiais cria um cordão de aparente proteção institucional e uma margem de impunidade.

Carta no coturno: os militares, culminação e apoteose do golpe de estado

Nem a organização política de Mesa, nem os paramilitares de Camacho e nem a sublevação policial seriam possíveis sem a cartada final: a carta no coturno.

O cretino diz que “a força popular derrubou Evo”. Realmente icônico: uma suposta insurreição que não corresponde em nada à tradição acumulada de insurreições bolivianas e nem à infraestrutura das organizações populares, que derrubou Evo Morales com a “força popular”. Na visão mais idílica, bastaram alguns comícios menores do que os favoráveis ao governo, algumas vigílias e alguns piquetes, para que a “força popular” fosse irresistível e derrubasse o “ditador Evo Morales”.

A falsificação cantada em coro único pela mídia corporativa e pelos oportunistas de esquerda ficou escancarada no mesmo dia do golpe. Morales saiu por causa dos militares.

Os militares apoiaram – e estiveram presentes – na posse irregular e ilegal de uma nova presidente, Jeanine Áñez, uma senadora inexpressiva da extrema-direita que virou a porta-voz da vez do golpe de estado.

Logo depois disso, engrossa a resistência popular e as manifestações contra o golpe, principalmente no oeste da Bolívia e acima de tudo em El Alto e La Paz. Então se torna absurdo dizer que Morales não tinha apoio popular. Pelo contrário, são os novos democratas que iniciam uma repressão sangrenta em uma operação de larga escala.

O exército, que fez pose de “neutro” durante a campanha de terror reacionário, aceitou a tarefa de contribuir para a “segurança nacional” participando da repressão dos anti-golpistas. Tudo com direito a fuzis, carros blindados, toques de recolher e carta branca para a violência.

A estratégia violenta da oposição pressupõe esse tipo de culminação. Diferente da insurreição revolucionária, a violência dos contras é puramente negativa, destrutiva, voltada para desestabilizar, aterrorizar e criar tensão o suficiente para a intervenção de uma “força maior”. Não é para construir um projeto revolucionário ou dar solidez para uma organização política, cria “zonas de terror” e não “zonas liberadas”, sequer servem para ampliar os fundamentos de uma liderança como de Camacho. As ações não são dirigidas à tomada direta do poder ou à construção de outro poder positivo, “fazer uma revolução”, aplicar um programa. Sua função é a sabotagem e a abertura para uma intervenção militar. Organizações populares como a Federação de Juntas Vecinais de El Alto e movimentos camponeses têm condição de desafiar o Estado ao mesmo tempo que criam uma situação de poder alternativo; os grupos de choque não.

Como Evo Morales não conseguiu ficar no poder mesmo tendo o voto popular, o apoio de movimentos populares, 2/3 do parlamento, estar cumprindo seu mandato legal, ter reconhecimento do Tribunal Constitucional, estar disposto a negociar e fazer novas eleições? Porque os militares o derrubaram.

E como uma Añez desconhecida conseguiu ser empossada presidente de forma ilegal, com menos de um terço do parlamento e ainda assim editar decretos, lançando uma repressão sanguinária contra o povo? Porque tem apoio dos militares.

O tal “Tribunal Constitucional formado por aliados de Evo” criou um argumento de reconhecimento da “situação Añez”.

A lei, geralmente, avaliza os acontecimentos da política. Ela reflete, de alguma maneira, as realidades da força, do poder da baioneta.

O próprio argumento do Tribunal é claro:

“Um comunicado oficial do TC cita uma Declaração Constitucional de 2001 que ao interpretar artigos referentes à sucessão presidencial estabelece que “o funcionamento do órgão executivo de forma integral não deve ser suspenso”, pelo qual a presente na linha de sucessão assume ‘ipso facto’ a presidência.”

E isto quer dizer que eles vão reconhecer qualquer presidente que esteja na cadeira. Isso dá ao TC uma certa abertura de manobra: o importante é a “manutenção da presidência”, um princípio de continuidade da instituição antes de tudo. Os que têm alguma familiaridade com debates constitucionais e filosofia do Estado compreendem que esse argumento é comum ao presidencialismo de emergência e lógicas de exceção.

Podemos imaginar que a função do tribunal aí é prezar pela preservação da ordem jurídica antes de tudo. Eles sabem muito que se assumissem uma posição distinta, de desafio, seriam todos derrubados de suas posições. Daqui está a nossa posição do Carta no Coturno: juízes do supremo não podem contra baionetas.

Añez, que se tornou a face institucional do golpe e o ponto de contanto da presença militar, da mesma maneira que o paramilitar Camacho, exibe a Bíblia como um troféu que dá licença para matar, enquanto o governo golpista já inicia intentos de privatização, colocando interventores da empresa privada Amaszonas para gerir a empresa aérea estatal boliviana BOA.

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Notas:

¹ Ainda na constituição anterior, em 1997 uma reforma eleitoral reservou metade das cadeiras parlamentares para o sistema distrital majoritário, onde vence um candidato com mais votos (não com a maioria – é um sistema de voto de pluralidade, não majoritário, conhecido como
first-past-the-post, ou o “o que chega primeiro ganha”). Ainda hoje, 63 cadeiras do parlamento estão reservadas para esse sistema e as outras 60 são para um sistema de representação proporcional em lista partidária fechada. E a partir de 2004 movimentos sociais, indígenas e civicos podem participar das eleições ao lado dos partidos.

Esse sistema eleitoral é exposto no trabalho de Betilde Munoz (“Electoral Rules of Bolivian Politics – The Rise of Evo Morales“, de 2008), que argumenta que ele incentivou a regionalização das forças políticas, a busca por bases de poder regional. É discutível em que medida esse sistema pode enfraquecer a representação partidária ou fortalecê-la, mas de toda maneira premiava bases regionais – seja ela de grupos cívicos, movimentos sociais ou partidos pequenos como a Nova Força Republicana (NFR) e a Frente da Esquerda Revolucionária (FRI) que tinham força na disputa da cadeira de distritos específicos. Esse sistema incentivou uma “municipalização” da legislatura, já que os candidatos distritais fazem campanhas similares a uma campanha por prefeitura.

² Problemas similares aparecem não só nas diversas formas que inimigos do brexit estão vislumbrando para evitar a saída da UE (que pode ser o parlamento, a justiça ou um novo referendo), como em outros momentos da história – o referendo de armas no Brasil, e.g.. Decisões controversas em cortes supremas não são incomuns: lembremos que a Suprema Corte dos Estados Unidos desautorizou a continuação da contagem de votos na Florida no fim dos anos 2000, impedindo a revisão da votação daquele estado, legitimando uma possível fraude e as irregularidades que foram constatadas (que foram tratadas depois por uma reforma eleitoral em 2004).

³ Podemos encontrar modelos de referência aos comitês cívicos na Colômbia e na Venezuela. Na Colômbia a estrutura de comitês cívicos locais serviu para articular empresários, agricultores e populações locais para encobrir a atividade de grupos paramilitares que serviam para contrapor a atividade política camponesa, sindical e guerrilheira.

Na Venezuela, a oposição anti-chavista adotou um ethos republicano municipalista contra o chavismo representando por movimentos rojos e pela proposta comunalista que implicaria no fortalecimento de movimentos sociais em detrimento das estruturas formais da história política venezuelana, como as alcadías.

 

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