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Bolívia: lições de um golpe de estado (parte 2)

Apesar da Bolívia ser um livro aberto nas técnicas de golpe de estado, a “tropa da nuance” faz mil malabarismos, insistindo em negá-lo.
por André Ortega | Revista Opera
(Foto: Richard12sep.1993)

Essa é a última parte de um artigo dividido em duas. Leia aqui a primeira parte.

Geopolítica e imperialismo no coração sul-americano

“Os Andes
Vulcânicos elevam cumes calvos,
Circundados de gelos, mudos, alvos,
Nuvens flutuando – que espetác’los grandes!
Lá, onde o ponto do condor negreja,
Cintilando no espaço como brilhos
D’olhos, e cai a prumo sobre os filhos
Do lhama descuidado; onde lampeja
Da tempestade o raio; onde deserto,
O azul sertão, formoso e deslumbrante,
Arde do sol o incêndio, delirante
Coração vivo em céu profundo aberto!”
(Sousândrade, O Guesa, trecho do Canto Primeiro)

Jaime Mendoza foi um pensador nacional boliviano e pioneiro da geopolítica latino-americana que expôs a seguinte verdade: o maciço boliviano é a unidade geográfica sobre a qual surge e se desenvolve a nacionalidade boliviana.

Essa verdade geográfica é indispensável, como é o reconhecimento do índio.

A partir disso, compreende a tarefa da integração interna, a partir de uma unidade moral e política que nasce nos Andes. Se os bolivianos não compreendem a verdade da base geográfica do país, correm o risco é de testemunhar sua destruição total.

A visão dos Andes não é dar as costas para o leste e para Atlântico: só é possível uma rota para o Atlântico e o engajamento com o Brasil e a Argentina a partir da base andina. A gravitação humana, os grandes movimentos, foram do Maciço na direção nas planícies, da pré-história até os dias de hoje.

Trata-se da compreensão de que a integração da Bolívia – o destino da Bolívia – está no maciço andino. O maciço boliviano tem vantagens para a comunicação terrestre entre o Pacífico e o Atlântico, as grandes vias continentais com grandes cidades no meio do caminho.

Santa Cruz não tem a mesma vocação, mesmo sendo uma grande cidade, capital de uma grande província e com grande cultura. À capital Santa Cruz cabe sua autonomia cultural dentro de uma Bolívia, que existe graças e através do maciço. De outra forma, um “nacionalismo cruceñista” é uma distorção, é a vanguarda da dissolução e do separatismo boliviano. A cidade perde o seu brilho de ser o coração distinto de todas as joias coloniais e todas as grandes cidades do altiplano, para no lugar representar um cosmopolitismo dissolvente, um atlantismo fora de lugar, a fantasia de produtores agrários.

Sim, essas províncias orientais tem sua geografia própria, sua composição humana, sua distinção cultural, mas do ponto de vista geopolítico são parte de uma Bolívia que se eleva no maciço central da Cordilheira dos Andes.

Não há tal coisa como um separatismo inerente, essencial, como um fenômeno isolado e  exclusivo. O separatismo se articula como parte de movimentos internacionais. Ele corresponde à geopolítica.

A movimentação geopolítica é como a movimentação de placas tectônicas – golpes e revoluções são terremotos e erupções. Não há golpismo sem a permissão, a anuência e o consentimento de Washington. Esses senhores que protagonizaram o golpe na Bolívia não se mexem fora de um roteiro que é escrito nos Estados Unidos.

vazaram áudios envolvendo a trinca de senadores norte-americanos de sempre quando o assunto é intervencionismo na América Latina: Marco Rubio, Ted Cruz e Bob Menéndez. A coletânea de áudios publicados no Nueva Tribuna demonstra a conspiração militar e são um ótimo passeio pelas técnicas do golpe.

Mais detalhes devem se revelar com o tempo, mas o CELAG já publicou um mapeamento de pessoas e instituições na rede de procedimentos da intervenção norte-americana.

Alguns falam de um “desinteresse” de Washington, e outros reduzem o interesse a recursos. Estão enganados: os Estados Unidos perseguem objetivos geopolíticos, de dominação continental. Jogam com uma estratégia de longo prazo e que contempla diversas considerações.

A estratégia dos Estados Unidos para a Bolívia – a do Bloco Andino – está consolidada desde o fim dos anos 90, antes de Evo Morales ascender à presidência. A defesa de medidas neoliberais na América Latina. No imediato, o objetivo dos Estados Unidos é colocar a USAID e a DEA de volta na Bolívia.

Mário Travassos, brasileiro, e Carlos Badía Malagrida, espanhol, foram grandes pensadores da geopolítica que entenderam o papel da Bolívia sobre a integração latino-americana, como é bem descrito na obra de Fávaro Martins [1]. A partir deles, Golbery Couto e Silva descreveu em sua teoria a Bolívia como “zona de soldadura” do espaço geopolítico sul-americano.

Para o pensador espanhol, a Bolívia estava submetida ao “destino” do Prata. Esse destino pode não constituir hoje um expansionismo franco dos argentinos, mas se mantém como chance de separação e intervencionismo. Para os bolivianos, a Bolívia tem “três destinos”: o Pacífico, o Amazonas e o Prata.

Para Malagrida, a Bolívia, por se localizar em uma área de junção das regiões platina, amazônica e andina, acaba sendo um empecilho para o processo de integração continental, enquanto para Travassos este país é ao mesmo tempo a área de confrontação Brasil-Argentina e a chave para que o Brasil conquiste seus objetivos estratégicos.

Malagrida, em suas reflexões sobre a Doutrina Bolívar, também faz críticas ao prócer venezuelano especificamente pela fundação da Bolívia, como uma arbitrariedade geográfica que desarticulou a integração territorial da América do Sul – e é por razões semelhantes que hoje a Bolívia ocupa um papel central, de “árbitro e mediador” da integração latino-americana, por ser um centro, uma transição entre os distintos espaços geográficos identificados por Malagrida quando ele pensou nas novas confederações americanas organizadas em concordância com os fatores naturais e geomorfológicos.

Vargas articulou a rodovia que liga Corumbá a Santa Cruz de La Sierra seguindo o pensamento de Mário Travassos. O general argentino Juan Enrique Guglialmelli enxergava a balança de poder regional pendendo para o lado do Brasil graças a seus projetos de integração territorial e a ligação litoral – interior central; ligação com os países vizinhos, seguindo a orientação de Travassos.

Travassos concebeu a integração continental da América do Sul a partir de grandes projetos de infraestrutura, com a Bolívia ocupando o papel central, especificamente o triângulo estratégico formado por Sucre – Santa Cruz de La Sierra – Cochabamba.  A análise geopolítica vê na Bolívia o centro dos dois grandes antagonismos geográficos da América do Sul: o antagonismo entre a bacia do Prata e a do Amazonas; o antagonismo entre a zona do Pacífico e a zona do Atlântico, com o continente cortado por uma espinha dorsal que é a Cordilheira dos Andes.

Foi em uma leitura pervertida de Travassos que os militares reacionários que governavam o Brasil em 1970 bancaram o golpe de estado na Bolívia, como parte de uma estratégia de cercar a Argentina. A Operação Condor foi uma grande contrarrevolução antiperonista se pensarmos na eleição desse movimento como inimigo estratégico, lembrando que haviam vínculos sólidos do peronismo com o nacionalismo revolucionário boliviano e vínculos não tão sólidos foram acusados no trabalhismo pelo golpismo no Brasil.

Essa referência à Argentina no século passado é importante para entendermos o funcionamento do pensamento estratégico norte-americano: se o peronismo estava organizado em várias frentes e era muito forte nas massas argentinas, ao ponto de naquele momento ter sobrevivido a diversos golpes de estado e reveses políticos, caberia então lutar contra ele em um plano continental, pressionando e isolando. Vale salientar que o peronismo chegou a ambicionar um bloco continental sul-americano, no mais longe a integração hispano-americana; também propôs uma “aliança tricontinental” dos não-alinhados do terceiro mundo.

Para os Estados Unidos não importa mais – como importava para Malagrida – quem vai liderar uma federação hispânica ou as heranças do vice reinado peruano ou do Prata, mas sim prevenir a todo custo a integração latino-americana, que surge como um novo tipo de alternativa política no atual estágio de modernidade capitalista (com seus mecanismos de integração técnica, institucional e de mercado – some isso com os chineses oferecendo crédito para mega-projetos de infraestrutura). Na verdade, Malagrida já tinha isso em suas preocupações, ao falar das duas “Américas”: a América Latina e os Estados Unidos. Com uma proposta hispanista de integração latino-americana, Malagrida se coloca em oposição direta à Doutrina Monroe – o espanhol percebeu a maior ameaça para a América Latina no “Imperialismo saxão”.

O objetivo dos Estados Unidos na Bolívia é causar mais danos à independência e à integração latino-americana, controlar o coração de terra da América do Sul e desferir um golpe contra a multipolaridade. No mais, efetivamente se fecha um cerco contra a Venezuela e o próximo governo argentino.

Se formos cumprir o papel de integração continental que nos diz respeito – mas que é sabotado pelo agente dos Estados Unidos na cadeira presidencial do Brasil – necessariamente temos interesse em uma Bolívia independente.

Não basta ter a consciência abstrata da economia, das divisões políticas e da luta de classes – é preciso ter a dimensão concreta de nosso continente, nos seus vales, montanhas e na carne das pessoas, nos seus rios, na terra do ferro, da semente, do petróleo, do estanho, da cana e do café. E quando não existir nem semente, nem petróleo, nem ferro, nem açúcar e nem café, ainda viveremos e morreremos na América Latina.

Arte do golpe, arte da guerra: lições de golpe de estado

É verdade que não estamos lidando com a concepção mais clássica do golpe palaciano: um general de repente tomou o governo ou algum associado do governo se apossou dele. São atualizações da chamada revolução colorida.

  1. É preciso preparar o terreno com manifestações e movimentos civis “não-violentos”, de ideologia genérica e organização esparsa. Esses movimentos vão direcionar as energias oposicionistas para uma política de rua.
  2. Os “movimentos civis” e ONGs servem como forma de mobilização e são um bom destino para financiamentos relativamente abertos por partes de organizações como o National Endowment for Democracy.
  3. O tom desses movimentos deve passar a ditar o máximo possível um processo de união da oposição contra o governo. No caso, há um modelo que teve sucesso na Nicarágua na criação de uma frente eleitoral anti-sandinista e que tentaram reproduzir na Venezuela.
  4. Um golpe deve ser precedido por manifestações: isso foi compreendido há muito tempo se olharmos para exemplos como 1964 no Brasil (Marcha com Deus para a Liberdade) e o que foi feito depois contra Salvador Allende (o que incluiu um movimento de “greve” e técnicas muito similares ao usado na Bolívia hoje).
  5. Os “movimentos civis” dão cobertura para grupos radicais de várias maneiras, em graus variáveis. Servem como frentes, podendo ser mais ou menos protagonistas. Pode ser uma organização política que contenha os grupos de choque, só uma distração de propaganda formada por civis ou como uma máscara direta de grupos de choque. Quando iniciam as manifestações e os confrontos, a sua atuação “pacífica” ou provocativa, desarmada, serve para cobrir a atuação de grupos armados. Na Ucrânia, movimentos de aparência liberal e europeísta deram cobertura para neofascistas ultra-nacionalistas, que assumiram o grosso das funções de enfrentamento e ação direta (as Auto-Defesas do Maidan eram dirigidas pelo partido Svoboda; o outro setor era a organização saída da união de grupelhos de extrema direita, Pravy Sektor).
  6. A aliança e convivência, mais ou menos hipócrita, entre liberais e extremistas de direita, neoconservadores e neofascistas. “Jovens defensores dos direitos humanos” que fazem vigílias e métodos de “não-violência” na tradição de Gene Sharp e das Revoluções Coloridas convivem com mercenários, contras e fascistas – é o que vimos das “redes democratas” na Ucrânia dando guarda chuva de legitimidade para os fascistas. Na Bolívia, Waldo Albarracin efetivamente deu cobertura e apoio para Luis Camacho.
  7. Os grupos de choque, grupelhos políticos e facções que fazem o serviço sujo do golpe só estão fazendo um serviço, não estão propriamente conquistando o poder, mas abrindo o caminho. Os grupos de choque não são como grupos guerrilheiros,  mas somente focos de desestabilização que cumprem uma função limitada e específica.   Eles criam uma situação de conflito e divisões, desafiam a capacidade do governo manter a ordem em um momento, desestabilizam o governo e desarticulam a resistência através do terror. A violência terrorista (ou de pogrom) pode intensificar dinâmicas de polarização através de ciclos de retaliação (mais ainda se essa violência é religiosa ou racista).
  8. O golpe é maior do que os golpistas, seguindo uma lógica política e histórica que pode ser considerada maior até mesmo que o maior dos lobos que é Exército. O golpe não é para Añez, nem para Mesa e nem mesmo para Camacho (mesmo que ele seja o que tem mais a ganhar, por isso apostou mais alto); todos esses são figuras que ocuparam um lugar e que são facilmente descartáveis.
  9. Num plano político e histórico, a negatividade é a marca principal do golpe, no caso: destruir Evo Morales e o processo liderado por ele, destruir o masismo. A orientação positiva dos golpes acaba sendo voltada para o exterior, para a hegemonia dos Estados Unidos e das instituições de mercado e o caos abre as portas para o neoliberalismo impessoal e acima de partidos políticos.
  10. Os militares preferem agir sob uma aparência de constitucionalidade e neutralidade. Nada disso os impede, no entanto, de escorar a ação de grupos radicais ou conduzir operações de repressão contra movimentos populares.
  11. O controle de vias de comunicação é importante – o que parece um tanto óbvio na particularidade boliviana de geografias variadas e terrenos difíceis, mas pensamos nisso por naturalizar o nível de integração rodoviária no Brasil e esquecendo o estrago que foi feito pelo movimento dos caminhoneiros. As vias de comunicação são um foco para os golpistas por impedir a mobilização do masismo e pelos bloqueios serem uma forma clássica de resistência.
  12. Como em golpes “clássicos” (conforme descrito por Malaparte), o controle de meios de comunicação cumpre um papel fundamental. Nesse caso, as manifestações tiveram cobertura especial e preferencial em dois canais televisivos, mas os crimes estavam sendo expostos ao lado de uma contra-narrativa na Bolivia TV, que foi tomada. Ademais, as manifestações dependem de um sistema de agitação e criação de redes via WhatsApp, que também foi usado por grupos de choque para articular ataques rápidos. A resistência, por sua vez, acusou o governo de ter suspendido acesso em áreas críticas como El Alto. A título de exemplo, os fascistas italianos quando tomaram o poder não precisaram de nada parecido com o momento revolucionário do Biênio Vermelho (quando fábricas foram ocupadas e bairros tomados por socialistas italianos, num período de dois anos de jornadas revolucionárias), só precisaram de um cenário em que haviam reprimido as mobilizações socialistas e de um movimento rápido que incluiu ocupar as redações de jornais importantes. Hoje, infraestrutura é um alvo natural (antenas, centrais de transmissão).
  13. Outra consideração clássica (de Luttwak) é de que o mais importante para um golpe é neutralizar oposição de forma antecipada nos primeiros momentos. Assim, uma das preocupações da violência golpista foi evitar que os apoiadores de Evo conseguissem se mobilizar e ocupar as ruas (os masistas derrotaram o movimento do 21F em 2017 assim) e, depois que o presidente caiu, reprimir com o máximo de violência. Ainda pela consideração clássica de como ter sucesso em um golpe de estado, é fundamental que forças políticas permaneçam neutras ou vacilantes, o mesmo se aplicando com importância às figuras de autoridade do estado e da burocracia repressiva. Um levantamento militar não precisa de maioria, só precisa de não-oposição. A neutralização antecipada da resistência faz parte do processo de “comprar quem deve ser comprado” no aparato, buscar garantias e oferecer recompensas, assim como ocupar posições que neutralizem e intimidem os adversários inconciliáveis (Luttwak falando de um golpe hipotético na França nos anos 60 trata da importância de se decapitar a liderança do Partido Comunista, para evitar que ele organizasse a resistência através de seus quadros e da CGT).
  14. Forças policiais podem se sublevar. A sublevação pode começar a partir de uma pauta econômica e corporativa, para depois ser direcionada politicamente.
  15. É irrelevante e errôneo dizer que os militares só estão interessados em aposentadorias e benesses materiais e que por isso não participam de golpes de estado. Não é preciso de uma maioria ativa, comprometida, e mesmo a minoria comprometida pode estar fechada com o golpe precisamente pelos seus interesses materiais. O general Williams Kaliman, que foi a face do golpe na Bolívia, logo se aposentou e foi morar nos Estados Unidos.
  16. A cobertura internacional cumpre um papel central na legitimação do golpe, em especial quando ele não tem face ou programa claro.
  17. É importante a existência de um fato político que sirva de estopim, um escândalo ou, nesse caso, a histeria com a acusação de fraude.

No que diz respeito à atuação dos Estados Unidos em específico, vemos algumas características frequentes:

  1. Exigências enérgicas.
  2. Mobilização diplomática.
  3. Financiamento de grupos.
  4. Articulação com os golpistas para o “Dia D”.
  5. Vínculo histórico com os golpistas.
  6. A atuação de senadores ou plenipotenciários como articuladores de interesses do império e mediadores de interesses dos golpistas.
  7. Utilização de seus títeres regionais para operar o golpe ou agressão (no caso o Brasil).
  8. Fidelidade questionável aos golpistas, mas a pretensão imediata de pautar o golpe (“é necessário que a Bolívia para se estabilizar faça….”).

A falência política do liberalismo

Apesar da Bolívia ser um livro aberto nas técnicas de golpe de estado, nós vimos a mídia corporativa e uma parte da intelectualidade progressista, junto dos centristas liberais, colocando todos seus esforços para negar isso. No mesmo dia do golpe apareceram esquerdistas dizendo que Evo caiu porque “perdeu as massas” e cretinos democratas reproduzindo o discurso de que o populista ambicioso foi derrubado por uma revolta popular; outros, os cretinos mais refinados, tentaram se distinguir da canalha cravando a bandeira na Coreia do Centro: nem Evo, nem extrema direita!

E o que a sua sensibilidade artística, democrática, cultural, intelectual, superior, idônea e assentadas nos cumes da moral tem a ver com a realidade do golpe de estado?

Os piores sócios do golpismo dentro da esquerda boliviana, brasileira e internacional, fecharam seus discursos com a narrativa golpista (por exemplo: a organização recém surgida mas com o ambicioso nome de “Coordinadora Nacional de Defensa de los Territorios Indígenas Originarios Campesinos y Áreas Protegidas”). Alguns, os inocentes e os irresponsáveis, até lavaram as mãos na operação do golpe, mas se assustaram com o surgimento de figuras como o “Macho Camacho”. Outras organizações, na quintessência da lógica pequeno-burguesa, fizeram criativas considerações oportunistas para igualar os dois lados da contenda, cumprindo o papel de provocadores associados ao golpe de estado – “Evo Morales e Camacho, dois machistas!”.

Uma parte desses elementos tendem a mudar de posição gradualmente, humilhados pelas imposições da realidade e pela força da extrema-direita boliviana.

Na esquerda, existem alguns “críticos” e “radicais” que creem que sua negação pode ser fundamentada a partir de uma crítica de Evo – ressentidos, se sentem radicais por negar a discussão do golpe de estado. O cretinismo oportunista confunde as coisas: ele confunde os erros, desvios ou “reformismo” do governo Evo Morales com o problema da caracterização do golpe.

Os alternativos que criam “desculpas de terceira via” e tiram o corpo fora cumprem um papel que já mencionamos que é crítico nos golpes de estado: neutralizar a possível oposição.

Enquanto esses intelectuais falam, o golpe teve a preocupação primária de neutralizar a resistência de antemão, decapitando as lideranças do MAS, sequestrando seus familiares, aterrorizando as bases, fazendo linchamentos. Os que fazem essas brilhantes invenções ou que estão na lista de pagamento de ONGs não são alvos prioritários.

Os intelectuais cobram “calma”, pedem para olhar para as nuances. Toda vez que ocorre alguma ofensiva imperialista em alguma parte do mundo, de imediato se alistam intelectuais progressistas para a tropa do nuance.

Alguns falam de “dissidentes do MAS”, “dissidentes de esquerda”. É claro que é legítimo que forças políticas no Brasil, ou qualquer pessoa que tenha seus valores e queira formular uma opinião, defenda dissidentes do MAS, ex-aliados de Evo Morales ou qualquer movimento alternativo. Mas isso deveria ser acompanhado por uma linha política, ou no mínimo uma linha argumentativa, e não um apelo moral e propagandístico.

Por que a ruptura de fulano-de-tal-que-era-do-MAS foi uma ruptura pessoal que não acompanhou os movimentos ou, na direção contrária, levou uma parte considerável dos movimentos? São questões válidas de se fazer.

O que a boa razão não pode aceitar é a tática sorrateira, típica de uma esquerda pequeno burguesa, de simplesmente legitimar as posturas internacionais hegemônicas com um “lavar de mãos” que aponta para alguma figura de esquerda como argumento final contra um Evo Morales.

Essas evocações de “esquerda” são algumas dentre várias estratégias argumentativas de legitimação. São uma exposição de imagens midiáticas para consumo. Isso ocorre em posições distintas (isto é, dentre os que apoiam Evo também), mas eu não me adiantaria em falar de “dois lados” criando uma falsa dicotomia e um falso bipolarismo quando de fato existe um tipo de narrativa hegemônica.

O apelo à nuance, por incrível que pareça, é às vezes uma forma de simplificar a realidade (que vira uma teoria cinzenta). A nuance se transforma em névoa, espalha a confusão e cria falsas dicotomias sugerindo que existe “equilíbrio” onde não há, ao passo que o apelo à “razão” e à “objetividade acadêmica” se torna uma forma de policiar o dissidentes do discurso hegemônico. A abstração pode criar a ilusão de que o masismo e a oposição são iguais enquanto categorias, dois objetos ou sujeitos do mesmo tipo, mas com posições diferenciadas, quando na realidade são fenômenos constituídos em bases diferentes participando de uma mesma realidade.

Sim, existem nuances, é verdade: várias nuances de um golpe de estado, e hoje em dia é indispensável que o golpismo na América Latina tenha nuances de esquerda. São várias tons de capitulação, diversionismo, oportunismo e cumplicidade com o golpe.

Os “críticos” ironizam dizendo que “as massas são boas no Chile e no Equador, mas más na Bolívia e na Venezuela?”, o que é um atestado de abandono da dialética e uma profissão de fé contra o simples bom senso. Nenhum processo pode ser reduzido à presença de “massas” ou manifestações de rua, já que mesmo se isolarmos estudos nos fenômenos de protestos vamos encontrar diferenças (dias diversos de Junho de 2013, o movimento contra a Copa, o movimento pelo impeachment, o movimento contra o golpe, o movimento Fora Temer, o movimento contra a reforma da previdência, o movimento em solidariedade às ocupações estudantis de São Paulo, o passe livre, o movimento contra os cortes na educação brasileira – todos são distintos entre si não só por suas razões políticas, históricas e ideológicas, mas por sua presença e operacionalidade na rua).

Basta pensar um pouco antes de querer ser o gênio impressionista da Coreia do Centro: o que aconteceu no Chile e na Bolívia?

No Chile nem a OEA e nem os Estados Unidos se apressaram em qualquer coisa parecida com mudança de regime.

A organização das manifestações, sua orientação política e seus métodos são distintos. Como vimos, na Bolívia os grupos de choque realizaram uma campanha de ataques em pontos específicos contra a infraestrutura eleitoral, o MAS e os movimentos populares. No Chile não existe sequer o ódio generalizado na forma de pogrom contra o partido de Piñera. Os manifestantes chilenos saíram com uma pauta econômica e quando assumiram a pauta política acolheram uma pauta democrática, tendo como ápice o objetivo de uma assembleia constituinte.

A conversa da “revolução democrática” – e a versão tímida e oportunista que reduz a um problema de “visão”, “opinião”, a nuance – é destruída quando vemos que foi negado aos movimentos populares e aos apoiadores de Evo ocupar as ruas para disputá-las com a oposição. Os golpistas fizeram de tudo para evitar isso desde o início, com uma orgia de violência que não poupou o uso de demagogia cristã e racismo anti-indígena. Usaram a técnica do sequestro, que já foi usada em Honduras e no Haiti. Muitos se esquecem, a propósito, que a OEA também atacou a legitimidade das eleições do Haiti em 2010-2011, promovendo os candidatos derrotados e uma série de distúrbios, não apresentando provas de fraude mas circundando com a referência geral a “irregularidades” um discurso de “fraude massiva” (que nunca foi demonstrada e contradiz a posição dos observadores internacionais). 

Ainda que seja possível que existam agentes trabalhando nas manifestações do Chile, é bem certo de que eles não têm à sua frente – e às suas costas – os velhos capachos de Washington que atuam na Bolívia.

Talvez a comparação mais válida fosse com o Equador, devido ao papel central de coordenação indígenas e camponesas organizadas mais semelhantes ao masismo, e os mesmos questionamentos se aplicam lá. O problema é que não cabem longas comparações aqui, mas elas não deveriam ser necessárias: na Bolívia acabamos de presenciar uma campanha terrorista de extrema direita que se converteu em terrorismo de Estado.

A relutância da mídia corporativa em reconhecer isso é mais uma testemunha de que em momentos cruciais ela se converte em mídia oficial e cumpre um papel de guerra.

Em termos de figuras eleitorais: Rousseff derrubada, Kirchner atacada, Lula, Correa e Morales proscritos. Não aprenderam nada?

Na Bolívia, estamos falando de alguns dos piores mercenários dos Estados Unidos na América. Figuras como Carlos Sánchez Berzain, da rede do senador ianque Marco Rubio, que foi ministro da defesa do governo Sánchez de Lozada, responsável por 67 mortes nos protestos de 2003. É a gangue que servia a Washington no poder e correu para Washington quando caiu. Sánchez Berzain agora é “advogado e politólogo” que fala de “ofensiva castro chavista” na América Latina. O argumento central do seu tipo de oposição é atacar Evo Morales como um “narcotraficante”. A direita brasileira vem tentando converter o mesmo tipo de discurso político: um eixo narco-comunista-islamista, o que é usado por Olavo de Carvalho já há tempos. Esse é o discurso para justificar o intervencionismo ianque.

Já fazem no Brasil sua ladainha patética: Duda Teixeira escreve na Crusóe que a resistência é de “sindicalistas e narcotraficantes ordenados por Evo Morales [que] promovem o caos na Bolívia”. Isso também é uma senha, não é sobre Bolívia e não só fantasia dos direitistas, mas a tal “mentira que vira verdade”: a extrema-direita brasileira quer emplacar esse discurso de que lutam contra uma coalizão maligna.

Sim, o golpe foi recebido com resistência. E a resistência é que vai transformar algumas posições nos próximos tempos, a começar pelos democratas centristas e os oportunistas de esquerda que vão tomar consciência de sua omissão vergonhosa. O golpe mostra a face e os oportunistas trocam as máscaras.

A história não acabou, ela sempre continua. A política é um campo de criação e de exceção – os conflitos sociais são irredutíveis à abstração formal legalista, e em alguns momentos a exceção predomina, se avulta em detrimento do equilíbrio de forças, e nesses momentos é necessário ser decisivo. Esses momentos são momentos constituintes, que formam novos equilíbrios e estabelecem novos regimes, e todo momento excepcional é um momento de disputa pela decisão. O livro Carta no Coturno – A volta do Partido Fardado no Brasil pode ser voltado para a realidade brasileira, mas expõe essas dinâmicas e aponta para uma realidade internacional. Se a Bolívia nos ensina a fazer um golpe de estado, também nos dá valiosas lições sobre como resistir.

A grande lição política, no entanto, é a da falência da cultura política liberal, que tenta se afirmar agora como referência para as esquerdas em oposição ao assim chamado “populismo”, uma universalização de princípios sociais que tentam se reduzir a um espírito de moderação, defesa do estado de direito, liberdade negativa e esvaziamento da política (esvaziada de valores e confrontação, é a mediação a partir da técnica). Um liberalismo romântico tenta hegemonizar o discurso de esquerda.

Não me entendam mal: direito, liberdade, leis, voto, nada disso foi inventado pelo liberalismo – o liberalismo é um fetiche, uma lógica individualista e de mercado transposta à política, e o reducionismo técnico que deriva de uma concepção mecânica da realidade que se converte em uma forma de universalismo reificado (o liberalismo é “natural” e tudo que não é liberal é atraso, excesso ou desvio).

O liberalismo quer conquistar as nossas inseguranças em  um mundo repleto de mudanças, cristalizando uma abstração formal surgida das revoluções burguesas – sobre liberdade, igualdade, indivíduo, humanidade – que se concretiza nas formas do direito e no positivismo jurídico, transformando as instituições – a lei, o parlamento, o mercado – em artigos de fé universais descolados da realidade concreta. A capacidade criadora do ser humano fica amarrada nesses artigos de fé. A sociedade deixa de ser vista como formada por humanos, seres morais e culturais em situações de conflito e antagonismo, para ser tratada como uma matéria regida por uma lógica mecânica que pode ser controlada pelo governo da técnica (jurídica e econômica). Quando enxergam os humanos, os veem como indivíduos atomizados frente à ordem jurídica, agentes racionais e utilitários que fazem trocas em um mercado.

Como o liberalismo entende a política como um mercado regulado pela pureza da lei, o liberal perde de vista a origem da política na guerra e as dinâmicas de conflito bélico, existencial, que se manifestam na política. Por isso o liberal está paralisado para responder a uma situação como a boliviana – o liberalismo se volta para si mesmo e não consegue dar respostas decisivas para os grandes momentos e as grandes questões constituintes, pois ele aspira a uma espécie de neutralidade em um espírito dominado pela moderação. O liberal atua em uma lógica da normalidade, do mercado, mas a exceção irrompe e exige uma decisão que não é guiada por uma lógica de normalidade – o direito se volta para seu estado anterior, pré-jurídico, no momento constituinte em que se impõe a necessidade humana de se fazer escolhas valorativas (não técnicas – por isso, é uma práxis enquanto o liberalismo é a anti-práxis). O fetiche do positivismo jurídico liberal é pressupor um universo jurídico que tem a constituição como axioma e um direito que é ex nihil, originado no nada.

É claro que os liberais, que nunca se cansam do auto-elogio, vão novamente enquadrar os acontecimentos em uma narrativa que clama por mais liberalismo. No fim, a culpa deve ser de Evo Morales e os acontecimentos não guardam relação com luta de classes ou com predadores neocoloniais, mas com a “falta de instituições sólidas”, “falta de uma cultura liberal”, falta de compromisso político, etc.

Pelo menos a título de pensamento podemos nos perguntar se Evo Morales não cometeu erro confiando na oposição, propondo negociações, aceitando a decisão da OEA como vinculante e chamando novas eleições. O liberal pode responder que bastava Evo Morales não ter se candidatado de novo. Bastava? “Conforme a lei”? É um fetiche acreditar que essa situação estava dada pela lei. A lógica da exceção e da decisão como resposta aparece a todo momento, de forma reiterada. Como dissemos anteriormente, a cláusula de limitação aos mandatos veio de uma oposição que ameaçou dividir o país em dois.

Evo surgiu como um subproduto reformista de um movimento de insurreição contra a terapia de choque neoliberal na Bolívia. Sem o que alguns chamam de “caudilhismo”, “populismo” e “personalismo” em volta de um executivo forte sob a figura de Evo Morales, recorrendo muito a decretos e contando com o apoio popular, a Bolívia não teria passado pelas mudanças positivas que atribuem a seu governo, inclusive a drástica redução da pobreza, além de medidas como a nacionalização de recursos estratégicos. Todo o ethos legalista que é usado para contrapor o “populismo” é o verniz de uma cultura política de moderação, negociação e conservadorismo tecnicista, já que Morales não governou fora da lei quando tomou suas medidas mais ousadas. O que ele fez, sim, foi usar o peso dos movimentos populares e de sua figura para estabelecer um processo constituinte que deu origem a uma nova Constituição Política e criou o Estado Plurinacional da Bolívia.

Independente de suas limitações, a experiência boliviana – diferente dos governos de esquerda no Brasil e na Argentina – propõe um tipo de transição do capitalismo. Os caminhos da Bolívia desafiaram diretamente o liberalismo em sua visão de mundo, na sua forma de fazer política e, acima de tudo, no fato de que deve ser a experiência recente mais ambiciosa de pluralismo jurídico e organizacional (e bastante distinto do que os liberais entendem por pluralismo).

O liberalismo atua sobre a Bolívia e lá existe há quase 200 anos, se o entendermos de uma maneira ampla que contemple o legado iluminista republicano. Se considerarmos o primeiro legado republicano como uma distorção elitista, que demandava “liberais reformadores”, ainda assim teremos um largo período. Os liberais reclamam que a Revolução Boliviana de 1952 foi “populista” ou “socialista”, não liberal, mas isso reforça o argumento, já que então este “liberalismo puro” sequer foi capaz de realizar na ordem jurídica a emancipação básica para a população indígena (coube aos revolucionários “populistas”), e, na verdade, mal conseguiu livrar os bolivianos de forma geral das relações de casta: o liberalismo não guarda relação com a realidade. Ele se afirma sempre com uma ideologia perfeita a ser imposta contra as culturas.

Pelo contrário, o liberalismo pode ter se colocado em uma posição de “crítica permanente da realidade”, sempre em oposição, o que de longe pode parecer um compromisso filosófico com a liberdade e até algo revolucionário. Olhando mais de perto, no entanto, o vemos sendo usado como trincheira reacionária, contrarrevolucionária, conservadora. Se o liberalismo assume um sentido revolucionário, é somente na sua característica de marcha ideológica do capitalismo que tudo dissolve, que tudo destrói ou torna mercadoria – o capital que tudo devora.

O ponto de inflexão é que o liberalismo então se torna um projeto contra o indígena. E para todos os efeitos, quando critica a colonização, o faz com um culturalismo que não poupa tão pouco os espanhóis ou o catolicismo. O liberalismo então é a justificativa final da violência, mesmo quando em cores progressistas que não mascaram mas, pelo contrário, “alegram” a imagem de um ideal do mercado como organizador da vida humana.

Quando falam de “liberalismo”, ignoram exemplos históricos de liberais bolivianos como os oligarcas republicanos anti-populistas da Rosca (apelido do bloco oligárquico) e os liberais que aderiram à ditadura militar de Hugo Banzer, ou que fizeram parte do governo neoliberal de Sánchez de Lozada, para pensar exclusivamente nos “liberais progressistas”, na “esquerda” que atua em ONGs e coletivos. O problema é que esses também cumprem uma função conservadora em sua falsidade: a sua obsessão institucional e seu vínculo orgânico com o capital internacional cria uma posição de paralisia do movimento criativo na realidade (isto é, o poder constituinte e transformador dos movimentos políticos amplos, transformadores e menos formalizados na estrutura do imaginário liberal – os populistas, os rebeldes, o povo).

Por isso noções-alcunhas como populismo, caudilhismo e estalinismo são tão importantes para esses epígonos liberais “progressistas”, “libertários”, “autonomistas”, sejam acadêmicos ou militantes. Primeiro, como é reconhecido com mais facilidade, porque reafirmam um universo conceitual do liberalismo, de uma analítica liberal e a reafirmação de valores liberais na prática política. Segundo, e mais importante, essas alcunhas encarnam o reacionarismo de sua política, são alcunhas que servem para interditar, censurar, proibir – limites são impostos, monopólios criados e movimentos sólidos são demolidos. A função deles, a nível subjetivo, é interditar, criar indisposição, neutralizar.

As discussões sobre o “personalismo” de Evo Morales são esforços intelectuais supérfluos em detrimento do movimento do real. Se há um acerto de Evo Morales, é o de compreender a soberania popular para além da noção liberal, procedimental de soberania como participação em eleições competitivas, mas uma soberania que nasce da mobilização política – o movimento constituinte criador.

Existia um processo de mudança e uma certa tendência política. O golpe serviu para decapitar esse processo, não só retirando Evo Morales, mas atacando líderes e quadros, desorganizado e aterrorizando as fileiras. A Bolívia vive uma erupção de contradições sociais em suas formas políticas.

A resistência prossegue apesar disso e conta seus mortos. O massacre em Sekata, por exemplo, deixou nove mortos e 30 feridos. Sobre os massacres em Sacaba e Sekata, o ministro da defesa Fernando López – o que bradou a bíblia junto de Añez na “inauguração presidencial” – disse que das Forças Armadas “não saiu um tiro” e que se tratava na verdade das “hordas de masistas alcoolizados se matando entre si”. Insistiu que são “bêbados pagos”, mas também que o Exército não atirou. Ao mesmo tempo, o governo correu para promulgar com emergência o decreto 4068, que garante imunidade para militares e polícias que disparem contra o povo.

Foi essa resistência que colocou os movimentos populares em uma mesa de negociação com Añez. Evo havia concordado com a realização de novas eleições com um novo tribunal eleitoral – os masistas então tem poucas opções, a não ser aceitar a realização de novas eleições, ao mesmo tempo que se protegem e afirmam a própria força. A insurreição é um movimento constituinte do povo que ocupa a rua.

A lição final é que, no momento da exceção, a força se responde com força, e o golpismo se responde nas ruas. Foi necessária uma fibra inexistente nos liberais para enfrentar o golpe de estado e assumir as atitudes – e os métodos – que não têm nada de procedimentais, formais ou legalistas. É preciso reconhecer o momento de decisão como uma abertura para o caráter da ação criativa, que transcende o mercado e as estruturas jurídicas. É nas ruas e nas estradas, com palos e bandeiras, em meio à fumaça e à metralha, que a Bolívia vive e as vozes cantam o destino da América.

O liberal, cínico ou covarde, responde que isso é perder a segurança das leis e das normas, que é aceitar uma liberdade perigosa, compactuar com a violência e que tudo pode muito bem acabar em massas como essas que apoiaram o golpe de estado e a extrema direita – é arriscado, dizem eles o tempo inteiro sobre qualquer ousadia política. Mas já não aconteceu? Já não é a realidade? Sim, o momento da escolha é assustador, pois nos vemos responsáveis por nossa liberdade, nossos valores, nossas armas e nossa violência: somos obrigados a nos engajar, sem segurança nenhuma e sem saber qual é o futuro. Pode ser arriscado, o mal é sempre uma possibilidade – mas negar isso seria negar a nossa liberdade, que é o que pretendem os liberais com sua domesticação formalista, a sua má fé e sua covardia. O risco já existe, pois ele é a realidade que se impõe e nós temos que aprender. Navegar é preciso, viver não é preciso.

Notas:
[1] – As referências para essa discussão dos autores da geopolítica sul-americana estão em Jaime Mendoza, “EL MACIZO BOLIVIANO y El factor geográfico en la nacionalidad boliviana”, publicada pela Biblioteca del Bicentenario de Bolivia em 2016, a dissertação de mestrado de Marcos Antonio Fávaro Martins, “Mario Travassos e Carlos Badia Malagrida: Dois Modelos Geopolíticos para a América do Sul” e o “Projeção Continental do Brasil” de Mário Travassos, publicado pela Companhia Editora Nacional em 1938.

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