O Show and Prove é uma celebração em que homens e mulheres negras, conhecidos como Deuses e Terras, enchem o Harlem – conhecido por eles como Meca –, para relembrar a memória e saudar a vida de Clarence 13X, assassinado em junho de 1969, mês em que o evento acontece todo ano. Entre palestras, trocas de experiências e aprendizados com os mais velhos – e claro, música –, os Pobres Professores Justos reafirmam sua existência. Big Daddy Kane, um dos maiores rappers de todos os tempos, e um God MC – como viriam a ser conhecidos os rappers que viviam a filosofia dos Five Percenters –, lançou uma clássica faixa com esse mesmo nome, em 1994.
Para compreender a relação do hip-hop com os Five Percenters, é necessário voltarmos para um dia, provavelmente cinza, de 1964, onde um dissidente da Nação do Islã fundou, no bairro do Harlem, um movimento político e cultural, no qual ele e seus iguais seriam os seus próprios Deuses. Allah, o Pai – nascido Clarence Edward Smith, e, posteriormente conhecido como Clarence 13X, herdado após sua conversão ao islã –, reuniu um grupo de jovens que seriam o embrião do movimento hip-hop. O “X” em seu nome, que possui o significado de “desconhecido” na cultura do islã negro, é uma negação do seu sobrenome de batismo, visto por eles como um nome colonial.
Clarence queria apagar os rastros simbólicos da escravidão em seu corpo, mente e atitude. Esse processo levaria a uma mudança completa de comportamento, que envolveria a linguagem, o gestual, e ajudaria a criar a música mais potente do século 20.
Os antecedentes da fundação dos Five Percenters, conhecidos também como Nação dos Deuses e da Terra, estão estritamente ligados ao clima político norte-americano na década de 1960. Mas as sementes desse grupo são ainda mais antigas. Outros fatores, como a rejeição da luta política por parte da Nação do Islã, as acusações de assédio e acúmulo financeiro de seu líder, Elijah Muhammad, e o caráter separatista e reacionário da organização afastaram uma parcela dos muçulmanos negros de suas fileiras, levando muitos deles a mudarem de mesquita, ou mesmo passarem a acompanhar Clarence. O próprio assassinato de Malcolm X, em 1965, foi um evento que praticamente rachou a comunidade afro-muçulmana.
Mas a grande presença do islã nas comunidades afro-americanas começa muito antes disso, e tem um forte apelo de solidariedade e orgulho racial, baseada, inclusive, na visão que o próprio islã ortodoxo tem sobre a questão de raça. A ideologia dos Five Percenters, em contraste com o processo de desindustrialização nos Estados Unidos, as atividades do COINTELPRO[1], as epidemias de droga e o abandono de bairros como Bronx e Harlem, na cidade de Nova York, seriam determinantes para que, nos anos 1970, as guerras de gangue, de certa maneira, dessem lugar às batalhas de breakdance, e os MC’s passassem a cuspir fogo por microfones abençoados por outros Deuses. Nascia, assim, o hip-hop, e o hip-hop logo adotaria, direta e indiretamente, sua filosofia religiosa: o islã, em especial – e de forma irônica – sua versão não-religiosa, os Five Percenters.
Os desdobramentos do protesto negro nos Estados Unidos
Desde a chegada do primeiro africano aos Estados Unidos, em 1526, até o movimento Black Lives Matter, a revolta negra teve inúmeros episódios contra a espoliação dos senhores brancos. Revoltas escravas no sul, as fugas organizadas pela chamada Underground Railroad[2], o movimento abolicionista de Frederick Douglass, a participação dos negros na Guerra de Secessão, e até mesmo os movimentos de retorno à África – como a American Colonization Society, que tentou, de forma fracassada, colonizar a Libéria, e lá instalar escravos libertos nos Estados Unidos –, são alguns dos episódios mais conhecidos.
Findada a Guerra Civil, e com a declaração formal de fim da escravidão em território americano, houve um período de breve liberdade para os afro-americanos durante a chamada Reconstrução, que vai de 1865 a 1877. Apesar de breve, como nos conta Domenico Losurdo, o período foi “o mais feliz da história dos afro-americanos”[3]. Tão logo chega ao fim a Reconstrução, os estados do sul passam a se reorganizar como uma região quase autônoma da federação, e as necessidades econômicas e sociais trouxeram uma nova onda de segregação racial, que originaria as Leis de Jim Crow, a Ku Klux Klan, e um verdadeiro apartheid, tão parecido quanto o que ocorre na Palestina.
As grandes migrações de negros, ocasionadas pelo latente problema racial no sul e a busca por melhores oportunidades, devido à grande industrialização do norte, transformaram a geografia de grande parte dos Estados Unidos, em especial da cidade de Nova York. Epicentro de grandes lutas do povo negro, com o Harlem sendo seu polo aglutinador, é lá que surge a onda moderna de radicalismo negro contra o racismo norte-americano.
Um dos primeiros movimentos modernos de luta pelos direitos dos negros foi o Movimento Niagara, fundado por W.E.B Du Bois e William Monroe Trotter. Seu objetivo era a conquista de direitos politicos e civis para os negros, como o fim do preconceito, melhores condições de vida, trabalho, e o direito de votar. Mas foi o seu sucessor, a NAACP – Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor, fundada em 1909, e inspirada no motim racial de Springfield de 1908 –, a primeira grande associação política de negros no século 20. Também fundada por Du Bois, dentre outros militantes, a NAACP chegou a ter 300 mil filiados, e foi um poderoso instrumento de luta. Funcionando como uma espécie de Frente Ampla anti-racista, a organização aglutinava desde socialistas, como Du Bois – que, ao fim da vida, se filiaria ao Partido Comunista dos Estados Unidos –, até os chamados acomodacionistas, como Booker T. Washington, que não buscavam um embate direto contra a segregação, preferindo seguir a política de criação de estabelecimentos, escolas e propriedades negras.
Nesse rastro, em 1916, chega à cidade de Nova York o polêmico e importante Marcus Garvey. Nascido na Jamaica, Garvey trouxe consigo para os Estados Unidos a UNIA – Associação Universal para o Progresso Negro –, organização que havia fundado em 1914, ainda na Jamaica. Entre os anos 1920 e 1930, a UNIA passou de 1 milhão de membros[4] e chegou a mais de 40 filiais espalhadas pelo mundo, o que mostra a força do pensamento de Garvey e da sua organização, tornando-o um dos pais do pan-africanismo.
Apesar do grande apelo, a UNIA era uma organização conservadora, pró-capitalista e separatista, exigindo que seus membros não se relacionassem com pessoas brancas. Independente do contexto, que poderia ser usado para justificar essa política, sua filosofia colocou Garvey em polêmicas que, longe da forma rasa com que são tratadas, mostram o caráter conservador de seu pensamento. A reunião com membros da Ku Klux Klan – segundo ele, ambos os grupos partilhavam do desejo de não-integração e miscigenação racial, então poderiam cooperar nesses interesses comuns –, a ideia de que um capitalismo negro poderia ser a solução para os problemas dos negros americanos, e, por último, a própria criação da Black Star Lines[5] foram questões que mostraram as barreiras e limites de seu programa. Mas nada disso exclui o fato de que o movimento garveysta foi de extrema importância, como uma forma de Revolução Cultural para os negros, que refletiria no hip-hop, no reggae, e em milhões de negros pelo mundo. Fato é que, após a deportação de Garvey dos Estados Unidos, em 1927, sob acusação de fraude – alguns de seus adeptos diriam que a deportação foi motivada por questões políticas –, o movimento perdeu bastante força entre os afro-americanos, ainda que, enquanto ideologia, o garveyismo seguisse forte.
Nessa década movimentada dos anos 1920, duas figuras de extrema importância para o movimento negro nasceram: Malcolm X e Martin Luther King Jr. Mesmo seguindo trajetórias um tanto opostas – Malcolm seguiu o islamismo, tratando o cristianismo como uma religião escravista, e foi, por anos, um crítico ferrenho do Movimento dos Direitos Civis, preferindo lutar pela auto-determinação dos negros e o separatismo contra os brancos; Luther King se tornou um pastor batista, e um dos principais líderes desse mesmo Movimento dos Direitos Civis –, a história de ambos se cruzaram durante anos, chegando a superar suas contradições, e permitindo que atuassem juntos na luta dos negros. É impossível resumir a trajetória desses dois líderes em apenas um parágrafo, mas ambas são muito bem documentadas, e de extremo valor para compreender a luta contra o racismo nos Estados Unidos.
Mas o que começou como uma trajetória oposta, teve um final, infelizmente, idêntico. Em 1965, Malcolm foi assassinado durante um discurso. Em 1968, foi a vez de Luther King receber uma bala, também em um discurso, levando-o à morte. O assassinato de ambos os lideres estremeceu os Estados Unidos, iniciando uma série de motins, rebeliões urbanas, e deixando uma especie de vazio no movimento negro. Porém, entre a morte de ambos os líderes, no ano de 1966, surge, em Oakland, Califórnia, o Partido dos Panteras Negras. Símbolo maior do desenvolvimento intelectual e prático do protesto negro, o partido alcançaria milhares de militantes, e se tornaria “a maior ameaça à segurança interna do país ”[6].
Esse acúmulo que tornou a experiência do Partido dos Panteras Negras a mais avançada na estratégia de libertação negra nos Estados Unidos pode ser expressada tanto pela sua lista de leituras obrigatórias – que incluía Garvey, C.L.R James, Kwame Nkrumah, etc –, até a fala de Eldridge Cleaver segundo a qual a ideologia do Partido dos Panteras Negras é “a experiência histórica do povo preto e a sabedoria obtida pelo povo preto em sua luta de 400 anos contra o sistema de opressão racista e de exploração econômica na Babilônia, interpretada pelo prisma da análise marxista-leninista (…)”[7]
Os curtos e impactantes anos de atuação dos Panteras foram o suficiente para que a contra-revolução buscasse o seu fim. O governo norte-americano cometeu um verdadeiro massacre no partido, culminando no assassinato de vários militantes – dentre eles, o seu maior teorico, Fred Hampton –, além de causar o exílio de Eldridge Cleaver e Assata Shakur, e, consequentemente, o declínio do partido, que chegaria ao fim entre o final dos anos 1970 e 1980.
A essa altura, a música negra já havia sido tomada pela palavra “revolução”. O grande leque de ideologias, grupos e líderes engajados com a causa negra – nem sempre convivendo de forma pacífica entre si –, criou uma renovação cultural no som dos afro-americanos. A expansão do Islã, muito graças à figura de Malcolm X, logo atingiria a música que mais influenciou o hip-hop em sua história: o jazz. Nomes como Ahmad Jamal, Yusef Lateef, John Coltrane – com sua obra A Love Supreme sendo debatida em relação a uma possível origem muçulmana –, Pharoah Sanders, e muitos dos outros lendários jazzistas encontraram em Alá uma opção de fé, em um movimento de descolonização de suas mentes e da sua música. Eric Hobsbawm, sobre esse movimento, afirmou que “a fuga do jazz para o islamismo ou para alguma outra cultura não-branca era uma forma de contornar um jazz de vanguarda em ascensão que procurava a aceitação dos brancos.”. Sun Ra, outro gênio do jazz e um dos pioneiros do afro-futurismo, ainda que não fosse muçulmano, se virou para o Egito Antigo, em faixas como On Jupiter e Space is the Place, na busca de um futuro onde os negros fossem libertos, e essa guinada tem forte influência do garveysmo e das noções sobre os negros asiáticos do Templo da Ciência dos Mouros.
Mas uma outra parte dos grandes músicos americanos entre os anos 1960 e 1970 se voltaram para outras formas de rebelião negra. The Last Poets, Gil Scott-Heron, Nina Simone e Aretha Franklin passaram a acompanhar de perto a revolução que o Partido dos Panteras Negras pregava. A política do partido logo influenciou obras como Pieces of a Man, When the Revolution Comes (“Quando a revolução chegar, os policiais serão esmagados pelos trens depois de perderem suas armas, e o sangue correrá pelas ruas do Harlem.”,), Mississippi Goddam, e a posição firme de Aretha contra a prisão de Davis, chegando a oferecer o pagamento da fiança para que a grande Pantera fosse libertada, o que fez com que o FBI passasse a vigiar a cantora. James Brown, influenciado pelo movimento Black is beautiful, tornaria seu funky uma arma contra o preconceito racial e a favor do resgate do orgulho negro, em clássicos como Soul Power e Say It Loud – I’m Black and I’m Proud,
Toda essa experiência de opressão e reação vivida pelos afro-americanos durante o século 20, e os desdobramentos musicais que esses processos políticos trouxeram, seriam responsáveis pelo surgimento do hip-hop nos anos 1970. Apesar do movimento ser fruto de uma série de ideologias e práticas de lutas anti-racistas, desde as comunistas até as mais à direita – o que faz do hip-hop um movimento anti-racista, mas, não essencialmente, de esquerda –, uma das tendências se tornaria quase central na origem do maior movimento cultural dos últimos 50 anos: o Islã negro, representado pela Nação do Islã e pelos Five Percenters.
De Edward Blyden a Louis Farrakhan: o Islã negro nos Estados Unidos
Estima-se que entre 7 e 8% dos mais de 650 mil africanos escravizados para os Estados Unidos da América eram de origem muçulmana. Essa origem remonta ao intenso tráfico de africanos entre os povos árabes, no período de 650-1800. Como grande parte das sociedades de sua época, o trabalho escravo era só uma entre outras formas de trabalho na Arabia pré-islâmica do século 7, como também era na Europa, África e outros continentes.
No século 8, o Islã já dominava o norte da África, e foi se aprofundando no continente, passando por Sudão, até chegar à África subsaariana, a chamada África Negra. Ao serem levados para o Novo Mundo, esses homens e mulheres levaram suas crenças religiosas, aculturadas com as tradições de suas etnias. O Islã, com o passar do tempo, passou a ser identificado como uma antítese do cristianismo. Em que pese a Expansão Islâmica e o papel da Igreja Católica e dos papas no complexo e imenso tráfico transatlântico, o fato é que, por volta do século 19, grande parte dos intelectuais negros, nos Estados Unidos e no Caribe, se voltaram ao Islã. Eles viam na religião fundada por Maomé uma alternativa ao cristianismo, que não apenas havia tido papel de liderança na escravidão africana, mas, no século 19, ajudava a sustentar as hipóteses do darwinismo social, que buscava provar a inferioridade do negro em favor de um projeto de supremacia branca e europeia pelo mundo.
O intelectual negro mais conhecido desse período, e um dos primeiros a tentar aplicar uma aliança entre o islã e a luta negra foi Edward Wilmot Blyden, que chegou aos Estados Unidos a partir das Antilhas Dinamarquesas. Muitos dos programas propostos por Blyden seriam, anos depois, observados em intelectuais como Garvey, Du Bois e Malcolm – por exemplo, as noções de união cultural e espiritual dos negros, e a visão pan-africanista de que os negros em diáspora só teriam liberdade ao voltarem para a África. Mas foi em sua obra de 1888, Christianity, Islam and the Negro Race, que Edward traz uma visão racializada, e até mesmo materialista, sobre o cristianismo:
“(…) o cristianismo, apesar de ter suas origens no Oriente Médio, transformou-se numa religião distintamente europeia, que era discriminatória e opressiva. Insistia em dizer que, entre as grandes religiões do mundo, apenas o Islã permitia que os africanos preservassem suas tradições com integridade.”
Apesar de partirem de pressupostos diferentes, tanto Edward quanto Rosa Luxemburgo – que fez um estudo sobre o cristianismo primitivo, focando em sua formação com relação às classes sociais –, chegam à conclusão de que a religião cristã foi deturpada de suas raízes, sejam elas de classe ou étnicas.
Essas tradições iniciais que ligavam o povo negro ao Islã deram origem, no início do século 20, ao Templo da Ciência dos Mouros, a primeira organização negra dos Estados Unidos que se auto-declarou como muçulmana. Seu fundador, Timothy Drew, conhecido como Noble Drew Ali (Nobre Drew Ali), proclamava-se como o segundo profeta do Islã, uma blasfêmia para os seguidores do Islã tradicional e ortodoxo. Esse ato, como tantas outras divergências de Drew Ali com relação aos cinco pilares do Islã ortodoxo, criaram uma linha divisória entre os muçulmanos afro-americanos – em especial, os não-ortodoxos –, e a comunidade muçulmana mundial. Uma das principais contribuições do Templo para o imaginário afro-americano, e que estaria presente de forma contundente na Era de Ouro do Hip-hop, e, principalmente, na ideologia do Wu Tang Clan, era a noção de “homem negro asiático”.
Noble Drew afirmava que o Islã era o lar espiritual de todos os asiáticos, e, dentro desse espectro, se encontravam os povos árabes, egípcios, chineses, japoneses e americanos negros. “Os afro-americanos não eram, de forma alguma, negros, insistia Ali, mas ‘um povo de pele cor de azeitona, descendente de marroquinos’.”
É importante pensar essa noção religiosa dentro do que ocorria no mundo durante os primeiros anos do século 20. O imperialismo japonês, que pode ser localizado já nas primeiras intervenções na China em 1890, era um caso à parte dentro do processo de transformação do capitalismo. O Japão foi um dos poucos países asiáticos que passaram ilesos às intervenções europeias, nunca sendo colonizado. Em 1905, a vitória do Império Japonês, comandado pelo Meiji, sobre o Império Russo, causou um grande abalo nos afro-americanos. W.E.B Du Bois, sobre a vitória japonesa sobre a “nação branca russa”, afirmou que “A magia da palavra ‘branco’ já está quebrada. (…) O despertar das raças amarelas é certo… o despertar das raças pardas e negras seguir-se-á com o tempo”.[8]
Anos depois, Du Bois se converteria num socialista, defensor da União Soviética, de Lênin e Stálin, e, ao fim da vida, se reivindicaria como marxista. Mas essa visão de uma vindoura guerra racial total entre os brancos e os povos de cor, sem levar em conta as especificidades e particularidades de cada nação e região – afinal, a hierarquia de raças seria uma prática não somente europeia, mas também uma das políticas mais violentas do Império Japonês sobre as demais nações asiáticas, em especial a China –, se tornou característica marcante do nacionalismo negro nos Estados Unidos, refletindo em organizações como a UNIA, a Nação do Islã, e em líderes como Malcolm X. Ao mesmo tempo, a vitoriosa Revolução Chinesa traria, décadas depois, um fôlego novo para os nacionalistas negros de novo tipo – como Robert F. Williams, Huey Newton, e até o próprio Malcolm, em seu último ano de vida –, com as categorias marxistas do imperialismo, da autodefesa armada em guerrilhas urbanas no norte e rurais no sul americano, e da guerra revolucionária de classes, para além, mas junto da raça. A própria Conferência de Bandung seria a materialização dessa união entre povos asiáticos e africanos, em África e em diáspora. Apesar de sua quase completa desintegração após o fim da Segunda Guerra Mundial, o Templo da Ciência dos Mouros cumpriria um papel de gênese da Nação do Islã, e sua cosmovisão sobre o homem negro levaria o rap da era de ouro para um outro patamar de lírica, gírias e comportamento.
Algumas tentativas de aproximar os garveystas do movimento dos Muçulmanos Negros foi colocada em prática. Mufti Muhammad Sadiq, líder da organização Ahmadiyya – uma das mais bem sucedidas de sua época –, em uma publicação na revista The Muslim Sunrise, em janeiro de 1923[13], tentou encorajar os seguidores de Marcus Garvey a aderirem à causa do Islã:
“Meu querido negro americano… Os oportunistas cristãos trouxeram-no de suas terras nativas na África e, ao cristianizá-lo, fizeram-no abandonar a religião e a língua de seus antepassados — que eram o Islã e o árabe. Você vive a experiência do cristianismo há tantos anos, e ficou provado que ela não lhe serve. É um fracasso. O cristianismo não pode trazer a verdadeira fraternidade entre as nações. É hora de esquecê-lo. Venha juntar-se ao Islã, a verdadeira fé da Fraternidade Universal, que acaba de uma vez com todas as distinções de raça, cor e crença.”
Ainda que a grande maioria dos pregadores da Ahmadiyya fossem negros, o que atraiu muitos garveystas para a organização, o caráter multi-racial da organização impossobilitou uma maior adesão dos nacionalistas negros. Até os anos 40, a organização ainda atraia milhares de pessoas, mas logo entraria em declínio, e o fator político, que era extremamente forte da UNIA de Garvey, era secundário na organização, o que demonstrou certa fraqueza do movimento em dar uma direção à causa da libertação negra e ao fim do racismo.
Foi nesse contexto socioeconômico, com o capitalismo enfrentando sua primeira grande crise no ano de 1929 – a chamada Grande Depressão –, que um vendedor ambulante e andarilho, chamado Wallace Fard Muhammad, apareceu no gueto negro de Detroit, misturando a militância negra do garveysmo com ideias sobre o Oriente Médio e uma hostilidade potente contra os brancos. Fard criou a Nação do Islã, que logo se tornaria a maior expressão do Islã Negro nos Estados Unidos, e um dos grupos aglutinadores de afro-americanos mais expressivos da história do país, ainda hoje muito influente.
Toda a vida de Fard é contada a partir de lendas, o que dificulta saber sua origem e até mesmo o seu nome real. A falta de documentação histórica sobre esse importante personagem do início do século 20 ajudou com que suas ideias encontrassem adeptos e espalhassem. Pregava contra o álcool e o tabaco, falava da importância dos laços matrimoniais e da economia negra. Mas, diferente do Templo da Ciência dos Mouros, Fard afirmava que os negros eram descendentes da Tribo de Shabazz, localizada na África Central. Segundo Fard – que não se via como um ser divinizado, mas apenas mais um profeta, como Maomé – a civilização de Shabazz era extretamente avançada, sendo a única sobrevivente entre outras 13 tribos que viviam na Terra há trilhões de anos. O próprio Malcolm X, durante um discurso, em 1962[9], explica a mudança da tribo para a África Central, lá adquirindo traços negróides. O próprio nome Malik el-Shabazz, adotado posteriormente por Malcolm, denotaria sua crença de que ele mesmo seria oriundo dessa tribo.
O conceito de Yakub, que na teologia de Fard teria sido um cientista da Tribo de Shabazz que, após uma manipulaçao genética, criou a raça branca, se tornou peça central e significante único da política separatista da Nação do Islã, e foi um dos fundamentos que Fard deixou para a organização e que tinha respaldo de políticas anteriores, como a da UNIA e de outros agrupamentos de nacionalistas negros. Outros dois documentos, “O ritual secreto da Nação do Islã” e “Ensinamentos matemáticos para a Nação do Islã Perdida e Reencontrada” foram outros importantes pilares da organização, muito mais do que o próprio Alcorão. A Nação do Islã flertou diversas vezes com o Islã Ortodoxo, sob a liderança de Elijah, e tentou, por vezes, se aproximar das nações muçulmanas do Oriente Médio, o que significou se aproximar do próprio Islã Ortodoxo.
Entender Yakub dentro do arcabouço filosófico da Nação do Islã é interessante para compreender as políticas completamente contraditórias e reacionárias adotadas por seu mais famoso e duradouro líder, Elijah Muhammad, incluindo reuniões com o Partido Nazista dos Estados Unidos, mas, também, a quase completa apolitização da Nação do Islã, que, em seu auge, possuía mais de 30 mil membros, e uma ala para-militar, a Fruit of Islam. A negação de Elijah em se meter em assuntos políticos trazia diversas implicações, incluindo a expulsão de Malcolm da organização. Ao mesmo tempo, a organização era vista como extremista pelo FBI, e foi perseguida durante anos, o que se intensificou durante o programa COINTELPRO. Apesar disso, Elijah era um grande admirador do capitalismo negro, sendo ele próprio dono de muitas propriedades, acumulando fortunas a partir das contribuições dos membros da Nação e das vendas de seu jornal, Muhammad Speaks.
A organização tinha um forte alcance comunitário, com suas polêmicas práticas de intervenção nos guetos americanos, buscando tirar a população do vício em heroína e crack, dando-lhes dignidade e uma causa para viver. Muito dessa política é diretamente ligada à noção de orgulho negro trazida por Marcus Garvey, e que teve grande impacto e importância na vida de muitos afro-americanos. Além disso, em diversas ocasiões, a Fruit of Islam entrou em embates com a polícia e grupos racistas, com uso de armas e das práticas de defesa pessoal, difundidas em todos os templos da nação.
Fato é que a rigidez com a qual Elijah – que se auto-declarava “Mensageiro de Alá”, contrariando Fard, que não se enxergava como um ser divino –, doutrinava os membros de sua organização era um empecilho para alguns de seus membros. O grande foco de trabalho da Nação do Islã (NOI) eram os usuários de drogas, pessoas em situação de rua, e homens e mulheres negras encarcerados. Elijah e a NOI viam ali uma oportunidade de salvar muitos negros do “diabo de olhos azuis”. De certa maneira, essa salvação implicaria num aumento de membros na Nação, e, consequentemente, na riqueza que Elijah e seu núcleo familiar acumulariam. A ação da NOI, em muito, se limitou no que podemos chamar de nacionalismo cultural, e não em políticas concretas de combate ao racismo e à situação do negro nos Estados Unidos. Além disso, os belos ternos e a agressividade com a qual os tenentes da Fruit of Islam tratavam os membros que descumpriam alguma das regras da Nação foram o estopim para diversos rachas dentro da organização, que atingiram um ápice com assassinato de Malcolm X, em 1964. No dia seguinte ao assassinato de Malcolm, a mesquita número 7 do Harlem foi incendiada por partidários de Malcolm, e o assunto se tornou uma pedra no sapato da organização, ainda que seu atual líder, Louis Farrakhan – um dos membros que ficaram ao lado de Elijah na guerra interna da organização, o sucedendo posteriormente –, tente minimizar os rachas e as discordâncias, direcionando o problema quase que totalmente para o FBI, o racismo e os programas de contenção de grupos políticos negros.
Não cabe aqui explicar todos os acontecimentos que influenciaram na ascensão da NOI, do racha interno na organização, e em certa guinada a política promovida por Louis Farrakhan. A Autobiografia de Malcolm X e a biografia escrita por Manning Marablem, além dos arquivos do FBI e o documentário sobre o assassinato de Malcolm são ótimos pontos de partida para entender a política da organização e suas contradições.
O ponto de convergência para falarmos sobre a relação entre o Islã – e toda essa tradição dos muçulmanos negros e o desenvolvimento do protesto negro –, e o surgimento do hip-hop se encontram na figura de um partidário de Malcolm e ex-membro da Nação do Islã, chamado Clarence 13X, que viria a fundar, no mesmo ano da morte de Malcolm, 1964, um movimento que, apesar de não atingir o mesmo patamar da Nação do Islã, subverteria a ordem e a rigidez dos templos, e levaria o conhecimento sobre o ”homem negro original asiático” para as ruas, as esquinas, as trap houses e para as festas – a mais famosa delas, o aniversário de Cindy Campbell, em 11 de agosto de 1973, que seria o marco fundador do hip-hop.
“Se quiser conhecer o estado de espírito das pessoas, ouça a sua música”: os Five Percenters e o surgimento do hip-hop
RZA, membro fundador do Wu Tang Clan e um dos mais importantes produtores da história do rap, certa vez disse que, “em muitos aspectos, o hip-hop são os Five Percenters”.[10]. A frase de RZA tem uma ligação direta e complementar ao título desse tópico, de autoria de Clarence 13X, o Pai. Quando os Five Percenters surgem, como uma dissidência da Nação do Islã, os Estados Unidos estavam vivendo o início do auge da repressão colonial sobre os negros, latinos e indígenas. Malcolm X e Martin Luther King Jr foram assassinados entre 1965-1968, um espaço de apenas três anos, no qual, em 1966, o Partido dos Panteras Negras para a Autodefesa surgiria na Califórnia. O Maoísmo Negro efervecia a partir do surgimento de diversas organizações, a maioria delas inspirada em Robert F. Williams, o famoso Presidente Rob. Em 1969, Fred Hampton, o presidente do Partido dos Panteras Negras, seria assassinado junto de outros camaradas, Eldridge Cleaver seria expulso desse mesmo partido em 1971, e logo haveria um declínio da resistência negra nos Estados Unidos, com a maioria de seus líderes mortos, presos ou exilados.
Nos anos 1970, Nova York entraria em colapso, com o furo da bolha imobiliária, o retrocesso na indústria, a falta de empregos e a diminuição da assistência governamental, em especial aos negros. Esses ingredientes, aliados à intensa renovação musical nos guetos americanos, expandida pelo Jazz e o Funky, se tornaram o átomo que daria origem ao hip-hop. E um dos elementos, de cunho religioso, político e social, seriam os Five Percenters.
Aluno de Malcolm na mesquita número 7, Clarence Edward Smith se converteu à Nação do Islã por influência de sua esposa após retornar da Guerra da Coreia. Lá, trocou o sobrenome pelo X. Por sua experiência militar, Clarence fez parte da Fruit of Islam, onde ensinava artes marciais e defesa-pessoal. Isso seria de extrema importância na formação dos Five Percenters e no imaginário do rap na década de 1990. Mas Clarence tinha grande dificuldade em se adequar ao código de conduta da Nação do Islã, razão pela qual foi expulso da organização. Apesar disso, há indícios de que Clarence abandonou a organização por discordâncias com Elijah. Na doutrina dos Cinco por Cento, herdada das tradições da Nação do Islã e dos documentos deixados por Wallace Fard Muhammad, a humanidade seria composta por 10% de pessoas ricas e poderosas, 85% de pessoas que viviam numa escuridão mental, sem compreender a realidade, e, por fim, os 5% restantes, que seriam os responsáveis por resgatar os outros 85% e iluminar suas mentes. Daí vem o nome Five Percenters. O escritor e muçulmano Michael Muhammad Knight traz uma segunda versão dos fatos[11]:
“Clarence talvez pudesse ver oitenta e cinco por cento da população trabalhando, enquanto uma elite de dez por cento (Elijah, a sua família e o círculo íntimo) viviam em mansões e andavam em carros de luxo.”
Com as deserções em massa por conta dos escândalos de adultério envolvendo Elijah Muhammad, e as desconfianças sobre a forma como a organização transmitia os ensinamentos de Fard, Clarence saiu de vez da Nação do Islã. Acreditava que havia uma divisão de classes dentro da Nação, onde “as regras para um trabalhador comum do Harlem não eram as mesmas para o Mensageiro de Alá”. Enquanto Elijah se declarava como uma divindade, as chamadas Lições da Sabedoria Suprema, um dos pilares filosóficos da Nação do Islã, afirmavam que “o homem negro era Deus”.
Esses eventos mudaram completamente a visão de Clarence, que passou a se chamar Allah, o Pai. Mas ele não seria o único Deus, pois haviam muitos negros no Harlem, então teria de haver muitos Deuses. As mulheres seriam a Terra, uma visão um tanto machista, visto que a condição de Terra se daria a partir da visão da mulher como provedora. Tão logo os Five Percenters se firmaram, passaram a atuar nas esquinas do Harlem, sem a pressão estética e moral que a Nação do Islã colocava sobre a comunidade negra.
Clarence se tornou uma espécie de líder comunitário nos bairros do Harlem, sendo até mesmo elogiado pelo prefeito de Nova York, John Lindsay, por ter segurado os ânimos na cidade quando do assassinato de Martin Luther King Jr. Apesar disso, tinha muitos desafetos, fossem eles muçulmanos negros da Nação do Islã ou criminosos em geral. Provavelmente, foi isso que causou o seu assassinato, em 1969, crime até hoje sem solução. Apesar do duro golpe, os Pobres Professores Justos – nome dado aos 5% na liturgia da Nação do Islã e do grupo de Clarence –, continuaram espalhando sua filosofia, adaptada à nova realidade, e as noções de Clarence quanto aos desvios de Elijah e seu acúmulo de fortuna em detrimento da maioria esmagadora dos membros da Nação, que chegavam a ser espancados caso não vendessem a sua cota de jornal, o Muhammad Speaks.
O que chegou às ruas do Harlem, Bronx, Queens e demais regiões de Nova York foi uma espécie de “Islã das ruas”. As técnicas de Karatê e Kung-Fu aprendidas com o líder Clarence serviram para que os órfãos do Pai pudessem se defender de gangues e da polícia. Não era raro ver os Pobres Professores Justos treinando artes marciais, bem como o uso de facas, nos telhados de prédios do Harlem e em outras regiões de Nova York. Também era corriqueiro o furto de pequenos mercados, com as mercadorias sendo colocadas nas portas de mulheres negras, que, muitas vezes, não tinham como alimentar seus filhos. Essas tradições de artes marciais asiáticas foram amplamente usadas nos discos do Wu Tang Clan e de seus membros, em formas de samples, como nas faixas Guillotine e Shadowboxin’.
“Supreme Mathematics, this ain’t black magic
I do my work amongst dope fiends and crack addicts
Civilized the savage, eighty five’s run rampant
We try’nna save these babies lives”
(“Matemática Suprema, não é magia negra
Faço meu trabalho entre viciados em droga e adictos em crack
Civilizado o selvagem, 85s correm livres
Nós estamos tentando salvar a vida desses bebês”)
Apesar do grupo não se ver como uma religião, muito menos como muçulmanos, a base filosófica e prática é composta pelos elementos expropriados da Nação do Islã. Era uma época em que muitas gangues atuavam em Nova York, então uma das primeiras tarefas dos Five Percenters foi agir para que as guerras acabassem. Outro lugar de atuação dos Five Percenters era a cadeia. Como o ativismo do grupo se dava, sobretudo, entre homens em situação de vulnerabilidade, inevitavelmente tanto membros do grupo quanto pessoas comuns estavam passando as lições nas detenções do país. Uma comissão estadual indicou que os Five Percenters possivelmente participaram da preparação da Rebelião de Attica de 1971.[12]
Como o hip-hop floresceu nesse ambiente, a aproximação de ambos os grupos foi inevitável. DJ Kool Herc conta que, durante as festas que conduzia no Bronx, membros dos Five Percenters estavam sempre presentes[13] para apaziguar as brigas de gangues e para “construir” – algo semelhante a uma reunião, palestra, ensino –, termo que se tornaria apenas uma das centenas de gírias que o hip-hop iria incorporar da filosofia dos Deuses Negros.[17] A própria Universal Zulu Nation, fundada por Afrika Bambaataa na década de 1970, se deu sobre alguma das bases filosóficas e práticas dos Five Percenters e que se tornaram o lema da organização: paz, amor, união e diversão.
O fato do hip-hop ter nascido num ambiente multi-étnico, ainda que de maioria negra, pode ter sido um facilitador para que os Five Percenters fizessem parte do movimento, e não a Nação do Islã, apesar de sua atuação por meio de Conrad Tillard, importante membro da Nação, que ficou conhecido como o “Ministro do Hip-hop”, e a aproximação de Louis Farrakhan com o rap entre os anos 1990 e 2000. Clarence costumava dizer que “não era nem pró-negro e nem anti-branco”, o que traz uma simbologia de desracialização, apesar da afirmação divina do homem negro e a visão do homem branco como o demônio Yakub. Mais do que um nacionalismo racial, os Five Percenters buscavam a elevação da mentalidade existente nos bairros pobres e conjuntos habitacionais. E o próprio conceito de Yakub, como o conceito dos 10% de poderosos, foram modificados, repensado numa proximidade com as classes sociais, abandonando o ódio ao branco e o substituindo pelo ódio à elite branca, ou à branquitude.
Esse processo não avançou sem contradições. Muitos Deuses ainda eram envolvidos com gangues, tráfico, e outros delitos. Houve algumas guerras entre os Five Percenters e a Fruit of Islam, bem como contra gangues de rua que não viam com bons olhos a conversão de seus membros em “Pobres professores justos”, algo que os filhos de Clarence vinham fazendo com ótimos resultados.
Quando o hip-hop se transformou durante os anos 1980, sua expansão foi acompanhada da expansão da filosofia dos Five Percenters para outros estados americanos. Russell Simmons, lendário produtor e fundador da pioneira gravadora Def Jam, afirmou em entrevista que “quando as gangues com as quais eu andava nos anos 70 deram lugar à cultura hip-hop dos anos 80, foi a linguagem de rua, o estilo e a consciência da nação dos cinco por cento que serviram de ponte.”.
Do cypher dos Five Percenters, uma espécie de círculo onde pregavam suas crenças para novos adeptos, surgiram os cyphers, círculos onde MC ‘s se enfrentavam em batalhas de rima. Das posições de guarda em que os Deuses ficavam nas esquinas, esperando algum curioso para explicar a filosofia de Clarence, surgiram os passos do break, onde dançarinos cruzavam os braços como forma de afrontar o adversário. A cultura do enfrentamento das gangues deu lugar ao enfrentamento pacífico do hip-hop, em seu elemento de dança, grafite e rima, e tudo isso foi moldado pelo comportamento dos cinco por cento.
Foi exatamente nessa transição do hip-hop, ainda muito ligado à disco music, para o rap cantado e consciente, que os Five Percenters deixaram sua marca para a história do movimento. Quando Eric B & Rakim lançaram seu segundo disco, Follow the Leader, a jaqueta que Rakim usava na capa, com uma estrela de 7 pontas com o número 7 ao meio – símbolo da Bandeira Universal dos Five Percenters –, causou alvoroço na cena do rap. Junto do The World’s Famous Supreme Team, e do lendário rapper Big Daddy Kane –, cujo Kane vem de “King Asian Nothing is Equal” (Rei Asiático Nada é Igual), reivindicando sua posição de “negro original asiático” –, esses foram os primeiros atos de demonstração da íntima ligação entre o hip-hop e os Five Percenters. Alguns desses rappers passaram a ser conhecidos como God Mc’s. Não apenas como doutrina, mas as práticas cotidianas de ensinamento dos Five Percenters logo tomariam conta do rap, por meio do Alfabeto Supremo e da Matemática Suprema do Islã, duas doutrinas espirituais que viam nos números e nas palavras a expressão do poder divino. Palavras e frases oriundas da filosofia dos Five Percenters, como Dropping knowledge, Dropping jewels, Cypher, Building, Seeds, Keep it Real, Word is Bond, Peace God, entre outras, passaram a fazer parte do imaginário e das letras cada vez mais elaboradas do rap americano. O uso do alfabeto e da matemática criaram nomes como RZA, GZA, Lord Jamar, e outras alcunhas para rappers de todo o país. A numerologia passou a desempenhar um papel de transmissão do conhecimento como simples combinação de palavras. Fato é que os ensinamentos dos Five Percenters se fundiram de tal forma com o rap em sua era de ouro como o candomblé se fundiu com o samba: não era preciso professar a fé, ela já estava contida na música.
“Allah, Be a Born, Cee (see), Divine, Equality,
Father, then after that there’s the G-O-D
He or Her, I Islam, then Justice, King of Kingdom,
Love, Hell or Right, we still exist (…)”
(“Allah, Seja ou Nasça, Cee (veja), Divino, Igualdade,
Pai, depois disso vem o G-O-D (D-E-U-S)
Ele ou Ela, eu ou o Islã, então Justiça, Rei do Reino,
Amor, inferno ou certo, ainda existimos (…)”)
Da concepção de que todos os homens e mulheres negras eram Deuses se criou a tradição dos God MC ‘s, que passa por Rakim, Nas, Jay-Z, entre outros. Os microfones passaram a ser vistos como objetos com poderes mágicos, e o ato de pegar um microfone de um Deus era como uma benção. Foi a partir disso que uma infinidade de clássicos do rap nos anos 1990 surgiu. Discos como Enter the Wu Tang: 36 Chambers (o grupo tinha um guru espiritual vinculado aos Five Percenters, chamado Popa Wu), Illmatic, Paid in Full, The Infamous, Supreme Clientele, Hard to Earn; artistas como MFDOOM, Ghostface Killah, Erykah Badu e Jay Electronica; grupos como Brand Nubian, Gravediggaz, Gang Starr; todos eles e mais uma infinidade rappers e obras levariam a mensagem dos Five Percenters em forma de rimas ocultas sobre a elevação da consciência e o conhecimento de si mesmo. Foi uma época em que os Deuses e Terras, como eram conhecidas as mulheres no movimento, espalharam uma mensagem de auto-afirmação, amor e respeito. Mas, como uma crença quase mundana, as lições de Clarence também estiveram presentes em álbuns como Only Built 4 Cuban Linx, com Raekwon rimando termos dos Five Percenters enquanto barulhos de narizes cheirando cocaína podem ser ouvidos ao fundo, ou em faixas Paisley Darts, onde Ghostface Killah canta “Hit you up, something nice ‘til the death of Yakub”.
Do filho de Badu chamado Seven – devido à numerologia da Matemática Suprema –, passando pela jornada espiritual de Jay Electronica – dos bairros pobres de New Orleans à filosofia dos Five Percenters –, chegando às complexas rimas de Vordul Mega e Vast Aire em The Cold Vein – um disco anticapitalista cheio de rimas e influências da filosofia dos Five Percenters –, nenhum rapper ou grupo passou imune ao fenômeno dos Deuses e Deusas Negras.
O hip-hop foi moldado conforme sua época, violenta e dançante, fria e fervente, com pinceladas de sangue, barulhos de tiro, garrafas de conhaque e gangues. Os Five Percenters foram peça fundamental para que o movimento pudesse se erguer sobre pilares de respeito e alegria, e sobre um movimento de autoconhecimento, depois de décadas de tragédia. Mas esses ensinamentos não seriam suficientes para evitar que a violência atmosférica de Nova York, Los Angeles e Memphis pudesse se dissipar. Isso fica claro quando AZ rima: “We were beginners in the hood as Five Percenters, but somethin’ must’ve got in us, ‘cause all of us turned to sinners” (Nós éramos iniciantes na quebrada como os Five Percenters, mas algo deve ter ocorrido, porque todos nós viramos pecadores). Apenas a mudança de si mesmo não pode mudar o mundo, e os anos 1990 foram a prova viva disso.
Ainda assim, os discípulos de Clarence ajudaram a transformar os ensinamentos em formas de sobreviver em meio ao caos da Nova York dos anos 1970, 1980 e 1990, e muitos dos fundamentos filosóficos foram se modificando ao longo do tempo, principalmente com relação ao homem branco. Isso pode ser visto no documentário Azreal: a 5% Story, sobre o primeiro discípulo branco de Clarence 13X, e nas obras de Michael Muhammad Knight, um americano de família irlandesa que, após ler a Autobiografia de Malcolm X e ouvir Public Enemy, decidiu seguir o Islã, até conhecer os Five Percenters e se tornar um deles, além de ampliar o estudo sobre esse grupo, desmistificando sua filosofia, tratada pela mídia americana como “supremacia negra” – como se houvesse alguma possibilidade disso existir num país em que a religião do capitalismo e do racismo movem todas as montanhas.
Apesar de um certo declínio na influência dos Five Percenters no rap, sua filosofia segue viva ao passo em que a era de ouro do hip-hop ainda é celebrada como uma das maiores épocas do gênero. Existe, também, um código de conduta entre os membros do grupo, onde a associação com os Five Percenters por pura estética é vista com maus olhos, como ficou evidente no caso de Jay-Z, que, em 2014, apareceu usando um colar da organização, o que causou a ira de diversos membros. Mais do que ter sua teologia descrita em letras, os Five Percenters ainda são uma organização separada do hip-hop, que busca auxiliar os seus membros e sua comunidade, e talvez bilionários ou pessoas que “nunca construíram conosco” não sejam bem vistas.
Mas ainda existem letristas que elevam a mensagem de Alá – o da Nação do Islã e o dos Five Percenters. Jay Electronica, em seu disco de estréia, cuspiu uma série de rimas sobre Elijah Muhammad, Louis Farrakhan, e a ideologia dos Five Percenters. Trouxe, também, infelizmente, uma série de rimas problemáticas com relação aos judeus, resquícios de uma filosofia retrógrada como a da Nação do Islã, que emerge de um problema antigo entre afro-americanos e judeus, fruto de teorias da conspiração e embates sobre a posição de cada um desses grupos étnico-raciais na sociedade americana.
Lord Jamar segue fazendo discos e vídeos no canal da Nação dos Deuses e da Terra, espalhando os ensinamentos. Em 2016, o rapper Isa Muhammad, que foi descoberto por Rick Ross morando nas ruas, lançou a lendária mixtape Diabolical Bastard Billionaire Genius, onde resgata a memória de seus heróis muçulmanos negros.
É muito improvável que o movimento possa voltar ao altar que ocupou entre o final dos anos 1980 e os anos 1990. Mudanças sociais ocorreram nos Estados Unidos, e o rap se tornou um grande mercado multimilionário, onde antigos Deuses negros de projetos habitacionais fizeram fortuna. De certa maneira, existe um distanciamento entre os Five Percenters e sua Allah School, no Harlem, com os ideais propagados pelo rap mainstream dos dias atuais.
Talvez os ensinamentos tenham cumprido o seu papel em uma época importante, e é útil lembrar que, apesar da proximidade umbilical da Nação dos Deuses e da Terra com o rap, ela tem outros Deuses a resgatar para além do hip-hop, o que mantém a cultura viva. Mas, assim como as batidas de Large Prof, Da Beatminerz, DJ Premier e Pete Rock, os Five Percenters, com seus nomes, números, gírias e ensinamentos estão gravados, para sempre, na história do hip-hop – e em sua época mais genial e prolífica.
Quando analisamos a trajetória do hip-hop, podemos localizar cada uma das tradições de resistência negra criadas no século 20 em suas obras mais famosas. Seja pelo radicalismo marxista de Immortal Technique, a homenagem a Marcus Garvey pelo Black Star, o nacionalismo negro e orgulho racial do A Tribe Called Quest e De La Soul, ou as lições da sabedoria suprema de Lord Jamar, todos os grandes artistas reivindicaram, de alguma maneira, o radicalismo negro em suas várias facetas ideológicas. Mas, sempre que você ouvir Raekwon rimar “Chill, God, yo, the son don’t chill, Allah. What ‘s today’ s mathematics, son? Knowledge God”, Erykah Badu cantar “Most intellects do not believe in God, but they fear us just the same. (…) My cypher keeps moving like a rolling stone”, ou rappers saudando uns aos outros com “Peace, God”, lembre-se que o espírito dos Five Percenters está ali, de forma profana e sagrada, como Clarence e toda uma geração de líderes negros, vivendo entre a cruz e a espada e entre a estrela de 7 pontas e as 9mm.