“Fizeram isso, bancando os heróis, porque sabiam que eu era a própria revolução. Do contrário, não se atreviam a dar um passo”. A frase escrita pelo general Olímpio Mourão Filho em seu diário, provavelmente no mesmo dia em que ordenou que suas tropas marchassem para o Rio de Janeiro, dando início ao golpe de 1964, dá conta de um aspecto central do golpismo: embora seja um covarde moral, o golpista há de demonstrar alguma coragem física, que melhor seria descrita como audácia. Poucas horas depois deste homem, que era a própria revolução, dar seu passo atrevido, um outro general encarnaria um outro aspecto central do golpismo: o apego ao planejamento. Ao ter notícia dos movimentos de tropas de Mourão, Castello Branco, que há meses conspirava à boca pequena, tentaria convencer as tropas mineiras a retornarem, sob o perigo de, com seu marchar, pôr a perder toda a conspirata.
A distância que separa o ato intempestivo de um golpista que arrisca tudo daquele longo planejamento do que conspira sob a placidez dos palácios e banquetes é o terreno fundamental no qual podem atuar os que desejam impedir o golpe. Por mais que se planeje, e por mais rápido que seja o movimento físico do golpe, o golpismo sempre terá como seu calcanhar de Aquiles este espaço temporal em que o presente se altera velozmente e o futuro se demora: a conspiração planejada foi posta em marcha, mas ainda não tomou o Estado. O golpe é um ato de força e velocidade, não muito distante da guerra. Clausewitz definiu este momento de suspensão estratégica e indefinição, em que o que é exigido dos homens de ação é inversamente proporcional ao que estes homens têm de certezas, como brumas da guerra. Poderíamos dizer que há também as brumas do golpe.
São sob estas brumas, lembra-nos Luttwak, que atuam os especuladores do golpe: aqueles que, majoritariamente dentro da burocracia, esperam para ver, sem se comprometer de corpo e alma com o golpismo – que afinal pode ser derrotado – e sem tampouco mover-se contra ele. Nas guerras, talvez o arquétipo que melhor defina este sujeito seja o das nações que não se envolvem no conflito em questão, mas dele lucram – como foram os Estados Unidos durante a Primeira Guerra e são hoje na guerra russo-ucraniana –, ou, pior, a do mercador que abastece alegremente os dois lados do confronto. Assim, o perigo do que pode agir contra o golpismo e não o faz não é tanto o de deixar os golpistas seguirem sua marcha, mas sim o de não obrigar os especuladores a tomar um lado, permitindo-lhes que objetivamente ajudem na vitória dos golpistas, que afinal marcham, mesmo quando não se decidem a favor deles.
Clausewitz não deixou de tratar também do planejamento, função em que, no golpe de 1964, Castello Branco foi mestre. Segundo o prussiano, toda guerra depende, antes de se realizar, de uma manifestação ideal, um plano de guerra, em que ambos os lados medem suas forças e traçam suas estratégias. Embora a guerra nunca possa ocorrer sem esse planejamento prévio, que determina as linhas gerais do conflito, esse planejamento nunca se manifesta na realidade: sempre indo além desta sua forma absoluta prevista, chega à sua forma imprevista, a guerra real. Isto não só porque os planejamentos nunca são absolutamente certeiros; nem só porque dois ou mais planejamentos opostos se confrontam, alterando-se mutuamente e gerando novos fatos; mas porque a própria existência da guerra arrasta para seu núcleo – tal qual uma interação gravitacional – forças e atores que, a princípio, nada tinham que ver com o duelo das forças a priori em confronto, e cujas posições só podem ser conhecidas após o início do confronto. Assim, não se poderia falar em guerras planejadas, mas tampouco se poderia falar em guerras sem planejamento: o acaso e o imponderável só se manifestam sobre as bases da certeza e a apreciação daqueles que decidiram guerrear. Poderíamos portanto também falar de um “golpismo absoluto”, bem calculado, e de “golpismo real”, aquele que só se manifesta quando posto em marcha, e nunca absolutamente de acordo com o plano.
A conformação com o imprevisto, necessária àquele que age, e o planejamento detalhado, que define o campo da ação, são assim duas forças centrais tanto na guerra quanto no golpismo – de fato, forças centrais da política em geral – que nos primeiros momentos de uma guerra, e na temporalidade acelerada do golpismo, conformam as brumas, as névoas, em meio às quais todo estrategista torna-se incauto e todo guerreiro é irresoluto.
Embora Mourão Filho reclamasse daqueles que “não se atreveriam a dar um passo”, e Castello Branco se desesperasse com o possível passo em falso de Mourão, o fato é que estes dois espíritos foram necessários para o sucesso do golpe: talvez a insistência no planejamento o adiasse até que ele não fosse mais possível ou desejado; por outro lado, sem contar com as firmes bases do planejamento, é provável que a ação audaz de Mourão Filho fosse prontamente derrotada. Bem disse Costa e Silva, outro golpista, ao governador de Minas, Magalhães Pinto: “Vocês pensam que ganharam a Revolução? Mas se não fosse minha ordem para as tropas que deixaram o Rio aderirem, ela resultaria em solução muito diferente”. Melhor diria Pinto se houvesse respondido: “Você pensa que ganhou a Revolução? A quem suas tropas iriam aderir, não fosse a ordem de Mourão?”.
Os fatos importam: a cronologia do golpe
Na última semana, a Bolívia viveu sob as brumas de uma intentona golpista. Juan José Zúñiga, comandante do Exército, foi quem tentou encarnar o homem de ação e o planejador. Não fosse o fato do país ter vivido um golpe em 2019, poderíamos nos espantar com o fato de um general se dispor a reviver, com fuzis e tanques, o golpismo latino-americano. Mas, ao contrário de 2019, a intentona de Zúñiga não frutificou – por erros do próprio general, por um planejamento débil e uma audácia manca, mas fundamentalmente por acertos do presidente Luis Arce, de Evo Morales, do Movimento Ao Socialismo (MAS), e de sua base social. É dizer: o golpe foi derrotado não só por ter sido mal planejado, mas também por ter sido bem respondido.
A própria versão de que tratou-se de uma intentona golpista, no entanto, começou a ser prontamente colocada em questão uma vez que as tropas se retiraram da Praça Murilo, no centro de La Paz, e Zúñiga foi preso. Nos bastidores, Evo Morales, que há pouco mobilizava suas bases contra o golpismo, passou a espalhar a versão de que na verdade tratara-se de um autogolpe promovido pelo presidente Luis Arce para recuperar sua declinante popularidade. Esta versão passou a ser propaganda, por dias, por deputados e lideranças ligadas a Evo, até que o ex-presidente finalmente viesse a público repetindo-a, se desculpando à comunidade internacional “pelo alarme gerado”, dizendo que o presidente “enganou e mentiu ao povo boliviano e ao mundo” e que “é lamentável que se use um tema tão sensível como a denúncia de um golpe”. Em atitude espelhada, apoiadores de Arce passaram a confrontar esta teoria com outra, que atribuía o golpe a Evo. Em tais condições, é importante estabelecer uma linha do tempo dos acontecimentos e da reação dos diversos atores.
23 de junho de 2024: Evo Morales afirma em seu programa na rádio Kawsachun Coca, “Evo es Pueblo”, ter “áudios e vídeos” em que o então comandante do Exército, general Juan José Zúñiga, fala em matar ele, o presidente do Senado, Andrónico Rodríguez, e o senador evista Leonardo Loza. “Tenho vídeos e áudios, agora não vou mostrar, mas ele fala de matar. O general Zúñiga várias vezes disse ‘é preciso dar baixa em Evo, Andrónico e Loza’. No jargão militar o que é dar baixa? É matar.”
24 de junho de 2024: O general Zúñiga, durante uma entrevista ao programa “No Mentirás”, responde às acusações dizendo que Evo é um mitômano, que “tem na sua natureza a mentira, o insulto e a difamação”. Disse também que Evo está inabilitado a concorrer eleições, que ele “não pode voltar a ser presidente do país” e que, se o ex-presidente fosse candidato, os militares o prenderiam. “Não podemos permitir que se pisoteie na Constituição.” Apesar de suas declarações grandiloquentes, o general manteve-se vacilante em boa parte do programa; as declarações tiveram de ser arrancadas pela jornalista que o entrevistava. Um dado curioso é que, ao responder um espectador que havia dito que a participação do general no programa sugeria que ele tinha o interesse de tomar o poder à força, Zúñiga citou Clausewitz: “Vou responder com uma definição de Clausewitz, que disse que a guerra simplesmente é a continuação da política por outros meios.”
Horas depois, o general responde a um conjunto de questões do jornal El Deber. A posição do general na entrevista, publicada no dia seguinte pela manhã, é consideravelmente mais morna.
25 de junho de 2024: Às 09 da manhã, Evo compartilha em seu X a entrevista do general Zúñiga ao No Mentirás, dizendo que “o tipo de ameaças feitas pelo Comandante General do Exército, Juan José Zúñiga, nunca ocorreram na democracia. Se não forem desautorizadas pelo Comandante em Chefe das Forças Armadas, pelo Ministro da Defesa, pelo Presidente e Capitão General das Forças Armadas [Luis Arce], se comprovará que o que na realidade estão organizando é um autogolpe. Nossa democracia está cada vez sob maior perigo.”
Ao meio-dia, o presidente Luis Arce se reúne com a ministra da Presidência, María Nela Prada, e com o ministro da Defesa, Edmundo Novillo. De acordo com a Telesur, a demissão de Zúñiga é acordada. Ele é convocado à Casa Grande del Pueblo, residência presidencial, e vai em trajes civis. Reconhece seus excessos e diz que cumprirá o que o presidente decidir.
Enquanto isso, no Congresso, arcistas e evistas se dividiam, numa continuação do atual conflito interno do MAS, entre aqueles que tentavam minimizar as declarações de Zúñiga e os que as denunciavam. À noite, circulavam rumores de que o general seria demitido. Já por volta das 22h00 o El Deber confirmava que o comandante havia sido demitido por suas declarações.
26 de junho de 2024: Pela manhã, há aquartelamento de tropas em diferentes locais do país. Em Challapata (350km de La Paz) há notícias de movimentos irregulares de tropas. Em Viacha (36km de La Paz) também.
Por volta das 14h30 (horário de La Paz) a Praça Murillo, onde se encontram a sede do Poder Executivo, a Assembleia Legislativa e o Ministério de Relações Exteriores, começa a ser tomada por tropas e blindados. O presidente Luis Arce denuncia as mobilizações às 14h57. Às 15h01, Evo Morales denuncia o início do golpe de Estado e convoca os movimentos sociais à defesa da democracia. Às 15h19, ele conclama à greve geral e ao bloqueio de estradas. Enquanto isso, à porta do Palacio Quemado, sede do governo boliviano, o ministro de Governo, Eduardo Del Castillo, confronta as tropas golpistas e exige falar com Zúñiga, que está dentro de um blindado, enquanto as tropas da Polícia responsáveis pela proteção do palácio fecham os portões do edifício e estabelecem uma linha de contenção frente os militares. Neste momento, centenas de pessoas já se aglomeravam nos arredores da Plaza Murillo, sendo contidas por cordões da Polícia Militar.
Às 15h30, o general Zúñiga sai de seu blindado e dá declarações à imprensa, exigindo uma troca do gabinete do governo e dizendo ter apoio das outras Forças. “Seguramente, de imediato, haverá um novo gabinete. As unidades militares estão em posição de afronte, todas as unidades. Haverá um novo gabinete de ministros. Seguramente se mudará [os ministros]. Nosso país, nosso Estado, já não pode seguir assim, com um grupo de bandidos fazendo o que querem. […] Estamos demonstrando nossa indisposição, é dever do soldado da pátria, de suas Forças Armadas, de seu Exército, que pariu esta pátria, que a forjou, mais uma vez recuperar esta pátria. Basta de destruir, de empobrecer, de humilhar nosso Exército”. Ele também declarou que os militares tomariam a Casa Grande del Pueblo. Perguntado se reconhecia Luis Arce como autoridade, Zúñiga respondeu que “por enquanto, sim”. Durante seu pronunciamento, a repressão aos manifestantes ao redor da Plaza Murillo aumenta.
Às 15h49, um blindado avança sobre o portão do palácio, abrindo-o. Dois minutos depois, o general Zúñiga, acompanhado de cerca de 20 tropas, adentra o edifício, por sua vez protegido por algumas dezenas de policiais da tropa de choque. O presidente Luis Arce vai ao encontro do general acompanhado de alguns ministros e o confronta, dedo em riste, exigindo a desmobilização de suas tropas. O general se nega.
Às 15h57, o secretário de Justiça da Confederação dos Povos Indígenas da Bolívia (CIDOB) condena os atos golpistas e faz um chamado ao povo para que saia às ruas para defender a democracia.
Às 16h00, o general Zúñiga deixa o palácio e retorna a seu blindado.
Às 16h12, o prefeito de La Paz, Iván Arias – ex-ministro de Obras Públicas, Serviços e Habitação durante o governo Jeanine Añéz – concede uma entrevista aos meios de comunicação ao redor da Plaza Murillo, pedindo que as Forças Armadas “retornem aos quartéis”. “A única forma é que voltem aos quartéis, porque é isso é o correto. Que a política seja feita pelos políticos.”
Às 16h18, Mario Seña, secretário-geral da Confederação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB), maior organização social da Bolívia, declara que a confederação está em estado de emergência e em mobilização contra o golpe. “Imediatamente o povo boliviano deve se mobilizar para acabar com qualquer situação de golpe de Estado que quem está na liderança das Forças Armadas quer fazer”. O presidente do MAS, Grover García, também se pronuncia: “Irmãs e irmãos, falo ao campo e à cidade, devemos bloquear as estradas para fazer com que a democracia seja respeitada em nosso Estado Plurinacional. Devemos tomar medidas concretas hoje contra os golpistas”.
Às 16h30, a Central Obrera Boliviana (COB), principal federação sindical da Bolívia, realiza uma coletiva de imprensa convocando à resistência ao golpe e declara uma greve geral indefinida, com a ida de todas as organizações a La Paz.
Por volta das 16h37, o presidente Luis Arce, acompanhado de seu gabinete de ministros e representantes de organizações sociais, faz um pronunciamento presidencial transmitido na rede televisiva, convocando o povo boliviano à mobilização e à organização contra o golpe de Estado e em defesa da democracia. “Estamos firmes aqui na Casa Grande [del Pueblo] para enfrentar qualquer tentativa golpista e toda tentativa que atente contra nossa democracia. O povo boliviano hoje é convocado. Precisamos que o povo boliviano se organize e se mobilize contra o golpe de Estado e a favor da democracia. Não podemos permitir que mais uma vez tentativas golpistas levem vidas bolivianas. Exortamos todos a defenderem a democracia e aqui na Casa Grande estamos firmes, com todo o gabinete e as organizações sociais. Saudamos as organizações sociais e as convidamos cordialmente para que novamente mostrem o caminho da democracia ao povo boliviano. Viva o povo boliviano! Viva a democracia!”.
Às 16h53, o general Zúñiga sai de seu blindado e dá declarações à imprensa: “as Forças Armadas pretendem reestruturar a democracia, [para] que [ela] não seja de uns poucos. [Além disso] vamos pedir a imediata libertação de todos os presos políticos, não pode ser que o pessoal subalterno esteja preso. O pedido é que libertemos os presos políticos, desde Camacho, Añez, coronéis, tenentes, generais que são presos políticos. Esse é o pedido das Forças Armadas. Vamos restituir a democracia. Basta que uns poucos se apoderem… Vejam onde nos levaram: nossas crianças não têm futuro, o povo não tem futuro. E ao Exército não falta culhões para velar pelo amanhã de nossos filhos, pelo futuro de nossos filhos, pelo bem-estar e progresso de nosso povo. Basta que uns poucos dominem o poder do Estado. […] Há quanto tempo está na política Evo Morales? Há quanto tempo está na política [Carlos] Mesa? Os congressistas? Isso é democracia? Se servem da pobreza e da humildade das pessoas das áreas rurais. Nós vamos restituir a democracia. Todas as unidades em todo o território nacional estão aquarteladas”. Ao terminar de falar, retorna ao seu famigerado blindado.
Às 17h10, na Casa Grande del Pueblo, se inicia a cerimônia de posse de novos comandantes militares, transmitida ao vivo. Às 17h17, estavam empossados o novo comandante do Exército, José Wilson Sánchez Velasquez, da Força Aérea, Gerardo Zabala Alvarez, e da Marinha, Wilson Ramírez. Imediatamente, o novo comandante do Exército discursou: “[…] É uma situação excepcional porque ninguém deseja ver as imagens que estamos vendo nas ruas. Ninguém. É por isso que agora, na minha condição de Comandante General do Exército, e representando os três comandantes de Força, peço, ordeno, determino, que todo pessoal que se encontra mobilizado nas ruas deve retornar às suas unidades. O sr. general Zúñiga foi um bom comandante, e o pedimos que não deixe que se derrame o sangue de nossos soldados, não é correto. Esse novo Alto-Comando, nós, comandantes de Forças, vamos cumprir o que diz a norma, a Constituição política do Estado e as leis da instituição militar. Vamos sempre estar à disposição da ordem legalmente constituída, para que o governo legalmente constituído permaneça, de acordo com o que diz as normas do Estado.” Às 17h31, enquanto Luis Arce ainda discursava, as tropas e os blindados começam a se retirar da Plaza Murillo.
Às 17h57, o presidente Luis Arce sai na sacada do Palácio Quemado, junto do vice-presidente, David Choquehuanca, e discursa às milhares de pessoas que tomaram a Plaza Murillo após a desmobilização dos militares. Ele saúda a Polícia Nacional, “que se manteve com a Constituição”, e diz à multidão: “nós nos mantivemos aqui na Casa Grande del Pueblo, onde vocês nos puseram, porque os únicos que podem nos tirar daqui são vocês! […] Ninguém pode nos retirar a democracia que foi conquistada nas ruas com sangue!”
Finalmente, às 19h01, o general Zúñiga é preso por efetivos da Força Especial de Luta Contra o Crime Organizado da Bolívia (FELCC) acompanhadas do vice-ministro do Regime Interior e da Polícia, Jhonny Aguilera, ao sair do Estado-Maior do Exército. Antes de ser levado, afirmou à imprensa: “vou falar com detalhes. No domingo,no Colégio La Salle, me reuni com o presidente, e ele me disse: ‘a situação está muito fodida, temos que preparar algo para levantar minha popularidade’. E eu o pergunto: saímos com os blindados?’, e ele me disse: ‘saiam’.” Acabava o golpe de Estado; se iniciavam as disputas sobre seu sentido.
Como a cronologia dos fatos demonstra, a afirmação de Zúñiga de que sua ação fora planejada junto ao presidente Arce não se deu em um vácuo: o ex-presidente Evo Morales já havia falado em “autogolpe” no dia anterior à tentativa golpista. Neste caso, no entanto, dizia que a evidência de um autogolpe seria Zúñiga não ser desautorizado pelo presidente Arce – o que não só ocorreu, como possivelmente estimulou Zúñiga a atuar.
A intentona de Zúñiga ocorreu ainda em um cenário econômico crítico no país, com escassez de dólares, queda da produção de gás (principal item de exportação da Bolívia, ocupando entre 22% – 30% das exportações do país, de acordo com a variação ano a ano) e problemas na distribuição de combustível. De fato, eram previstas manifestações em postos de gasolina e bloqueios de rodovias nas últimas semanas. Ao mesmo tempo, há uma ampla confrontação política no seio do Movimento al Socialismo (MAS) entre evistas e arcistas, que envolve o nome a disputar a presidência pelo partido nas eleições de agosto de 2025, mas que já toma contornos mais sérios: efetivamente há um confronto pelo controle da legenda, com congressos partidários concorrenciais sendo realizados pelas duas alas, e uma disputa dentro da Assembleia Nacional, onde a maioria evista se aliou aos partidos de direita para barrar as iniciativas do Executivo, e também no Judiciário, acusado de favorecer a ala arcista nas suas decisões em relação ao futuro político de Evo.
Esse cenário não só ajuda a explicar a “guerra de versões” entre arcistas e evistas acerca da intentona de Zúñiga, mas também oferecia um bom espaço de atuação para o golpista: no seu cálculo, Zúñiga podia somar a impopularidade do presidente, o fracionamento do principal instrumento político a combater o golpe e o descontentamento com a situação econômica. Além disso, dois dias antes da intentona, o Ministério de Relações Exteriores convocou a encarregada de Negócios dos Estados Unidos no país, Debra Hevia, a prestar esclarecimentos “sobre uma série de pronunciamentos e ações realizados por parte de funcionários da Embaixada dos EUA que são consideradas uma intromissão em assuntos internos”. Certamente, importa saber até que ponto Zúñiga tinha relações com a embaixada norte-americana, mas, de qualquer forma, este fato por si já entraria nos planejamentos do general. Em resumo, se a intentona de Zúñiga foi intempestiva, ela não foi de toda desarrazoada: efetivamente havia um cenário favorável a uma tentativa golpista.
No que se refere à cronologia das ações do general, embora insensatas, não foram incongruentes. Após ser acusado por Evo de querer matá-lo, o general dá sua entrevista ao No Mentirás, onde faz, sempre com postura vacilante, suas ameaças. Demonstra sua natureza vacilante mais uma vez na mesma noite, ao dar uma entrevista mais apaziguadora ao El Deber, e depois durante o golpe, dois dias depois: diz que tem o apoio do conjunto das Forças Armadas, mas suas tropas são relativamente escassas; diz que tomará o Palácio Quemado, mas que “por enquanto” reconhece Arce como presidente; quando finalmente derruba os portões do Palácio, é confrontado por Arce e responde que “não pode ser que haja tanto desprezo, tanta ingratidão”, voltando ao seu blindado. Em seu primeiro pronunciamento, antes de adentrar o Palácio, faz um discurso militarista, evocando o “dever do soldado”, o “Exército que forjou a pátria”, as Forças Armadas “humilhadas e empobrecidas” que devem “retomar a pátria”. No discurso seguinte, já após ser confrontado pelo presidente, apela à figura dos “presos políticos” Añez e Camacho – como quem implora por apoio político –, diz que “restituirá a democracia”, e por fim cita que “todas as unidades estão aquarteladas” – e, no entanto, suas tropas em frente ao Palácio não crescem. Fica evidente que o general que citava Clausewitz traçou um plano prevendo sua realização absoluta, ao mesmo tempo que não tinha a audácia de tomar as medidas para aplicá-lo, tentando adaptar-se às condições reais que seu golpe apresentou sempre muito precariamente. Como cabe aos golpistas – e muitos deles foram vitoriosos assim – Zúñiga deu sua primeira demonstração de força e, a partir dali, tentou definir o destino com a garganta. Ao fim, derrotado, retornou ao início, tomando emprestada a palavra do “mitômano” Evo Morales e acusando um autogolpe.
Nessa valsa, Evo acompanhou os passos do general, adaptando sua dança conforme a música: depois de acusar Zúñiga sem provas de querer matá-lo, exige que o presidente desautorize o general por sua resposta, sob pena de evidenciar os preparativos para um “autogolpe”. Uma vez que o presidente demite o general e este se rebela, Evo toma a posição correta, e mobiliza contra o golpe. Depois, passa a difundir por dias, nos bastidores, a versão de que se tratou de um autogolpe, até finalmente dizer publicamente, às 15h27 de 30 de junho, que “o presidente Arce enganou e mentiu ao povo boliviano e ao mundo. É lamentável que se use um tema tão sensível como a denúncia de um golpe.” No dia seguinte, às 07:43, denuncia de novo Zúñiga como um golpista, dizendo que o governo “ficou em silêncio, o empoderou e o sustentou porque servia para nos atacar” (quando de fato o general foi demitido). Pouco depois, diz que “existem dúvidas razoáveis no povo sobre a ação militar”. Mais tarde, põe em xeque a veracidade do golpe sobre dois argumentos: o general pediu uma mudança de gabinete, não fazendo exigências mais ousadas, e os funcionários do governo “passeavam com a maior tranquilidade e sorriam” durante o golpe. No dia seguinte, um novo argumento: tanto a OEA quanto os Estados Unidos condenaram a ação de Zúñiga. Depois, outra versão: um militar teria dito a Evo que o plano era “deixar a presidência para uma Junta Militar”. O objetivo? Impedir que Evo fosse candidato. Quando Álvaro García Linera, ex-vice-presidente da Bolívia entre 2006 e 2019, passa a dar entrevistas à imprensa nas quais critica o fracionamento do MAS e reitera a versão de que se tratou de uma tentativa golpista, Evo “demanda responsabilidade neste momento histórico” de seu ex-companheiro, e diz que “não responderá às suas ofensas” – há alguns meses, dizia que “talvez a velhice o esteja afetando”, acusando Linera de “coincidir com o império e a direita boliviana”. Zúñiga é um golpista negligente, mas talvez desse um bom psicanalista: é difícil não ver mitomania nesse comportamento de Evo.
Por fim, vieram as acusações dos arcistas de que Evo estaria por trás da intentona: uma versão só não mais absurda do que a de Evo.
O golpismo como espetáculo
A leitura estratégica dos fatos sugere que, de fato, tratou-se de uma intentona golpista. Demitido, o general Zúñiga aparentemente percebeu um cenário favorável e decidiu fazer uma demonstração de força. Com as devidas diferenças e proporções, do ponto de vista estratégico, a ação não foi muito diferente da de Henrique Teixeira Lott em seu famoso contra-golpe de 1955 – nesta ocasião, Lott é desautorizado pelo presidente Carlos Luz, se demite de seu cargo de ministro da Guerra e, antes de ser substituído, mobiliza tropas para cercar o Palácio do Catete.
Não há nada de “estranho” no fato de Zúñiga ter se restringido a pedir uma mudança de gabinete: primeiro, porque o general poderia estar na realidade “pedindo mais” do que desejava ao exigi-la, buscando verdadeiramente apenas sua manutenção no cargo; segundo, porque, como já escrevi antes, o golpismo também negocia: há mediações e ponderações por parte dos que assaltam o poder antes de que se apoderem do Estado (em 1964, ao mesmo tempo em que Mourão marchava, Kruel tentava fazer Jango comprometer-se a “se desligar” dos comunistas, promovendo mudanças em seu gabinete).
Quanto aos membros do governo “passeando com tranquilidade e sorrindo”, é simplesmente uma mentira: alguns membros do governo, como o ministro de Governo Eduardo del Castillo, confrontaram Zúñiga ativamente em diversas ocasiões ao longo de sua intentona. Outros deram breves declarações à imprensa ao redor da Praça, sempre bastante comprometidos pela nuvem de gás lacrimogêneo disparado pela Polícia Militar contra o povo. O golpe não é um um ato de obliteração; é errado supor que num “golpe verdadeiro” se fuzilaria inconsequentemente o presidente e seu gabinete – mesmo numa guerra este dificilmente seria o procedimento. Pesou, ainda, o elemento estratégico-militar: Arce contava com tropas da Polícia dentro do Palácio, ao mesmo tempo em que a Praça Murillo estava cercada de manifestantes em suas quatro esquinas, cuja ação exigiu o destacamento de tropas da Polícia Militar (ligada ao Exército) para a contenção. De certa forma, enquanto Arce estava preso em seu palácio, cercado de militares, o general Zúñiga estava preso em seu blindado, cercado pelo povo: seria difícil esperar que alguém em tal posição, e que demonstrou tantas vezes uma natureza vacilante, decidisse derramar o sangue do presidente ou de ministros.
Quanto às posições internacionais, a OEA de fato se pronunciou de imediato – é de se considerar que desde 2019 a conformação da Organização foi consideravelmente alterada com a eleição de governos progressistas no continente, e ainda o fato de que a Organização se encontrava em reunião durante a intentona. Quanto aos EUA, a embaixada norte-americana se posicionou pela primeira vez às 18h26, quando Arce já discursava ao povo e os blindados já haviam deixado a Praça Murillo: simplesmente emitiu um alerta aos cidadãos norte-americanos dizendo que havia uma “ampla presença militar na Praça Murillo”. Finalmente, a Embaixada informou: “estamos acompanhando de perto a situação na Bolívia. Rechaçamos qualquer tentativa de derrubar o governo eleito e pedimos respeito à ordem constitucional”. Mas isso foi às 20h22 (horário de La Paz), quase uma hora e meia após a prisão de Zúñiga. Não nos parece exatamente uma ação proativa contra o golpe, como quer fazer parecer Evo.
Por fim, alguns estranharam também o rechaço ao golpe por parte de Jeanine Añez, ex-presidente golpista da Bolívia, Luis Fernando Camacho, ex-governador golpista de Santa Cruz, e Carlos Mesa, ex-presidente e segundo colocado nas últimas eleições presidenciais bolivianas: suas posições revelariam que tratou-se de um autogolpe. A própria Añez, no entanto, fornece uma boa explicação dos cálculos feitos: “repúdio total à mobilização de militares na Praça Murillo pretendendo destruir a ordem constitucional, o MAS com Arce e Evo devem ir embora através do voto em 2025”. Com o MAS fracionado como nunca esteve e um governo com popularidade em baixa e enfrentando problemas econômicos, e com as eleições a um ano de distância, não faria sentido à oposição apostar todas as fichas em um general que deu um tom tão militarista aos seus primeiros pronunciamentos, só depois reivindicando a libertação dos “presos políticos” civis. Para além do cálculo eleitoral e de poder, no caso de Añez e Camacho há o cálculo penal: presos os dois, um apoio a um golpe derrotado só se traduziria em novos crimes e penas maiores, enquanto um repúdio a um golpe vitorioso dificilmente implicaria numa manutenção de sua prisão. Por todos os ângulos, nada há de estranho na postura destas figuras.
Para além da falta de apoio, do mal planejamento e da vacilação, Zúñiga foi derrotado porque foi imediatamente confrontado. Um primeiro fator foi o fato de, aparentemente, a Polícia Nacional boliviana não ter aderido ao golpismo, e ter se disposto a defender o Palácio Queimado. Além disso, nos momentos chave do golpe, a disputa interna do MAS ficou em segundo plano, e todas as lideranças mobilizaram suas bases contra o golpismo. Arce, por sua vez, se negou a conceder frente ao general, manteve suas bases atualizadas e convocadas por meio de seus pronunciamentos, e rapidamente efetuou a troca no Alto-Comando militar. É bastante reveladora a frase emitida pelo novo comandante do Exército, José Wilson Sánchez Velasquez, imediatamente após sua posse: “peço, ordeno, determino, que todo pessoal que se encontra mobilizado nas ruas deve retornar às suas unidades. O sr. general Zúñiga foi um bom comandante, e o pedimos que não deixe que se derrame o sangue de nossos soldados, não é correto.” Na intentona de Zúñiga, a ameaça de derramamento de sangue não foi jogada no colo dos que resistiam, mas sim no do golpista. Cercado pelo povo, destituído de seu cargo, humilhado em sua vacilação, escondido em seu blindado, o recado emitido a Zúñiga nesta frase foi claro: se não se desmobilizasse por bem, seria desmobilizado por mal. Àquela altura, não restava muito a Zúñiga: ou fugia ou escalava sua ação para a guerra aberta. E se suas ideações golpistas não se realizavam como pretendido, dificilmente o premiaria uma guerra para a qual sequer se preparara. A lição não é só que o golpismo pode ser derrotado; é também que, se não for confrontado, avança. Mesmo com seu débil planejamento e suas vacilações, é destacável que Zúñiga, afinal, agiu e, uma vez rolados seus dados, para que obtivesse vitórias – talvez muito além de uma troca de gabinete –, bastaria que a Polícia Nacional vacilasse, que Arce não tivesse firmeza, que as disputas internas no MAS não fossem deixadas de lado, que Evo não mobilizasse suas bases.
Todas essas lições, no entanto, são obscurecidas pelo espetáculo promovido após a derrota do golpe. Ao especular sobre um “autogolpe” sem apresentar evidências, Evo transforma cada erro de Zúñiga e cada acerto da resistência (acertos que ele mesmo “cometeu”) em meros papéis desempenhados num show bem ensaiado. A tese reforça a ideia de que os tempos do golpismo verdadeiro já se foram; e implica dizer que a derrota do golpe é demonstração da falsidade do golpe – afinal, se todo elemento que colaborou para que o golpe fosse derrotado pode ser colocada sob dúvidas, classificada como “algo estranho”, não fica evidente que a única coisa que pode contrariar a tese de que o golpe não é “verdadeiro” é o seu êxito? E não é evidente que à medida que se pinta os golpes verdadeiros, e a resistência a eles, como meros espetáculos bem dirigidos, se trabalha efetivamente para que o golpismo triunfe no futuro? Para se contrapor à produção de golpes falsos, ao autogolpismo, o que se propõe é uma calma e aprofundada avaliação do golpe em marcha; assim, quando um golpe triunfar – como triunfou em 2019 contra Evo – ao menos estaremos em segurança: não frente às armas, mas em relação à nossa própria confusão; se poderá afirmar, então, com absoluta certeza, em exílio, fuga ou morte: “realmente, era um golpe! Ao menos não me enganaram!” É um procedimento muito perigoso. Como já escrevi, o golpe não pode ser derrotado por espectadores: os espectadores são aliados do golpismo, na medida em que o golpe se impõe na reunião de velocidade e força. Somente o homem que age é um inimigo do golpismo (o que espera é seu aliado tanto quanto o que o apoia). Que lideranças transformem, pós-golpe, os resistentes em espectadores, e que intelectuais e comentaristas ressoem essa transformação em seus próprios países, objetivamente colabora para que, na próxima intentona, não haja resistência: ninguém quer colaborar com elaborados planos secretos que buscam, no fim, e sem que saibamos exatamente como, beneficiar suas supostas vítimas; e certamente ninguém quer ser feito de tolo.
A acusação de que o golpe não passou de uma encenação, seja de Arce ou Evo, é em si uma encenação, cuja resultante é a fragmentação da verdade em “versões” e “interpretações”. Em seu A sociedade do espetáculo, Guy Debord nos lembra que o espetáculo não é só uma “falsificação imagética” da realidade, mas uma cosmovisão que se torna “efetivamente objetiva, materialmente traduzida”; “não é um suplemento do mundo real, uma decoração que lhe é acrescentada. É o âmago do irrealismo da sociedade real.” Diz ele que “o espetáculo que inverte o real é efetivamente um produto. Ao mesmo tempo, a realidade vivida é materialmente invadida pela contemplação do espetáculo e retorna em si à ordem espetacular à qual adere de forma positiva. A realidade objetiva está presente dos dois lados. Assim estabelecida, cada noção só se fundamenta em sua passagem para o oposto: a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real. […] O espetáculo se apresenta como uma enorme positividade: indiscutível e inacessível. Não diz nada além de ‘o que aparece é bom, o que é bom aparece’. A atitude que por princípio ele exige é a da aceitação passiva que, de fato, ele já obteve por seu modo de aparecer sem réplica, por seu monopólio da aparência. […] O espetáculo não deseja chegar a nada que não seja ele mesmo. […] A alienação do espectador em favor do objeto contemplado […] se expressa assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo. Em relação ao homem que age, a exterioridade do espetáculo aparece no fato de seus próprios gestos já não serem seus, mas de um outro que os representa por ele.”
Aponta-se assim, espetacularmente, às supostas motivações de Arce em realizar um autogolpe: ganhar popularidade (para as eleições de agosto de 2025?). Mas não é óbvio que a própria acusação de autogolpe também é motivada? O espalhamento da versão de que tudo não passou de uma conspiração no mínimo restringe os supostos ganhos de popularidade de Arce, podendo até chegar a revertê-los – e disso tudo independe se foi golpe ou autogolpe.
Trata-se do espetáculo como luta imagética de posições distintas, cuja fragmentação destrói a verdade mais básica; a verdade em questão, ou a questão colocada de lado pela fragmentação em três teses concorrências, é precisamente o fato de que o golpismo militar está bem vivo em nossa região. Por que é possível afirmá-lo no caso boliviano, mesmo sem tomar uma das “versões” como a verdadeira? Porque efetivamente Zúñiga moveu seus blindados e pôs abaixo o portão do Palácio Quemado. Se o fez a mando de Arce, num autogolpe; por iniciativa própria, numa intentona golpista; ou estimulado pelos evistas, também num golpe; o conteúdo do fato, encoberto pela própria polêmica sobre sua forma, é que o elemento militar, na Bolívia, se coloca à disposição de atuar internamente com fins políticos. Como bem disse García Linera, “o ruim é que nessa briga interna, muito egoísta, muito mesquinha, eles estão brincando com monstros. De um lado e de outro estão brincando com os militares e isso é muito perigoso.” Ao fim, o golpismo é desprovido de seu conteúdo à medida que é espetacularizado, e assim também as resistências ao golpismo são esvaziadas de antemão.
Essa verdade se torna ainda mais incômoda e perigosa ao nos lembrarmos de que o golpe de 2019 foi, indubitavelmente, verdadeiro. Se olhar aos acontecimentos recentes como uma tentativa golpista implica, simplesmente, reconhecer que 2019 pode se repetir, afirmá-los como “falsos”, como um autogolpe, é simplesmente reconhecer que os militares podem aliar-se às forças políticas mais improváveis, com os fins mais rebaixados, e ainda assim manifestar-se abruptamente, irrompendo palácios e disparando bombas de gás. É dizer: se um comandante se dispôs a tomar a Praça Murillo e ir para a prisão, estimulado simplesmente por um presidente em busca de algum aumento de popularidade, o que não poderão fazer os comandantes do futuro, estimulados sabe-se-lá por quem, com sabe-se-lá que fim?
A leitura estratégica do ocorrido nos leva a crer que, de fato, o que se operou foi uma tentativa de golpe clássico, derrotado pois enfrentado via força e rapidamente – como costuma ocorrer com o golpismo. Mas as leituras concorrenciais não seriam de forma alguma, caso alguma delas fosse real, melhores no que tange ao golpismo militar; e, no entanto, a existência de leituras concorrenciais, fragmentando a verdade tal qual a fragmentação existente dentro do MAS, ajudam irresponsavelmente a eclipsar este fato primordial da permanência do elemento militar afirmando-se ilegitimamente, por meio de suas armas, sobre a política – mais irresponsavelmente ainda se nos lembrarmos de 2019.
Mas essa irresponsabilidade não encontra fronteiras, e começa a ser difundida em países que foram alvo do golpismo ontem e serão amanhã, como o nosso. Uma tentativa golpista derrotada no coração do continente torna-se assim, primeiro, ferramenta de disputa da pequena política local, para depois se regionalizar como uma espécie de entretenimento, a ser consumido com pipoca.
O problema da lógica espetacular não é tanto que “a verdade não importe”; é que seja de tal forma fragmentada que nada de útil possa ser extraído dela, de forma que o “primeiro intuito da dominação espetacular” se manifesta: “fazer sumir o conhecimento histórico geral; e, em primeiro lugar, quase todas as informações e todos os comentários razoáveis sobre o passado recente. Uma evidência tão flagrante não precisa ser explicada. O espetáculo organiza com habilidade a ignorância do que acontece e, logo a seguir, o esquecimento do que, apesar de tudo, conseguiu ser conhecido. O mais importante é o mais oculto. […] Na França, há dez anos, um presidente da República […] expressava, ingênuo, a alegria que sentia ‘ao saber que viveremos a partir de agora num mundo sem memória, onde, como na superfície de um lago, a imagem afasta indefinidamente a imagem’. […] O fim da história é um agradável repouso para todo poder presente. É a garantia do sucesso absoluto de todos os seus empreendimentos, ou, ao menos, do rumor do sucesso”. E ao golpismo militar, que tudo de que precisa para ser vitorioso é que não seja enfrentado, o rumor do sucesso não será também o sucesso absoluto?