Dona Baratinha queria se casar e encontrou o noivo perfeito, um rato. Mas a gula fez das suas e o casamento foi para o brejo. Será?
Devido à prisão do empresário do setor de ônibus do Rio Jacob Barata Filho, a administração dos transportes públicos voltou a ser pauta, principalmente no que diz respeito à exploração econômica na concessão do serviço até porque a relação entre as empresas e a prefeitura sempre foi objeto de controvérsias e os dados do setor de transportes são de difícil acesso. Ainda assim, o FPO atualizou a pesquisa semelhante realizada em 2014[1]. A presente pesquisa visa abordar a suspeita da existência ou não de cartel no sistema rodoviário, apresentar os valores da alíquota tributária reduzida e a evolução das tarifas vis-à-vis à média salarial dos cidadãos.
Os dados foram deflacionados segundo o IPCA de março de 2016, com exceção os dados referentes às renúncias de receitas, que estão a valores de março de 2017.
Como é formado o sistema?
Para mostrar a relação das empresas com o poder público, é importante esclarecer como é desencadeado o funcionamento do sistema de ônibus na cidade. O transporte público rodoviário é operado sob regime de concessão[2] desde 2010, sendo a cidade dividida em quatro regiões. Na tabela 1 constam os consórcios vencedores da licitação e as empresas que os formam.
Em 2013, o Sindicato das Empresas de Ônibus da Cidade do Rio de Janeiro – Rio Ônibus – divulgou um estudo que aborda questões como a não existência de conluios ou quebra de sigilo das propostas entre os concorrentes, CNPJ sequencial, cartas de fiança semelhantes e mesmo endereço, que são justificados por uma maior “facilidade” de logística e custos. O estudo ainda alega não haver concentração empresarial, já que 206 empresários seriam acionistas e sócios das empresas participantes dos consórcios e, ao empresário com maior participação, pertenceriam 4,6% do sistema e, ao maior grupo familiar, 11,28% do total. Assim concluiu que o setor de transporte público rodoviário não é cartelizado. Na tabela 2 consta a participação individual e das famílias.
No entanto, baseado em um levantamento feito pelo jornal O Globo em 2013, apesar de o sistema ser dividido em várias empresas, quase um terço de todas as participações nos quatro consórcios vencedores são concentrados por apenas quatro donos. São eles:
• Jacob Barata, o “Rei do Ônibus”: Ele e seu grupo estão presentes em pelo menos nove empresas espalhadas por três consórcios, que operam nas regiões de Jacarepaguá e Barra, Zona Sul e Zona Norte, sendo na Zona Sul a maior participação: cerca de 32,2%. Na Zona Norte, Barata ficou com 21,7% e ainda possui 0,38% de participação na Normandy.
• Avelino Antunes: Com 41% da Transcarioca, tornou-se nome forte do grupo Redentor. Sua participação também é composta pelas empresas Transportes Futuro e Barra.
• Álvaro Rodrigues Lopes: É representante do consórcio Santa Cruz, da Zona Oeste. Três empresas (Rio Rotas, Algarve e Andorinha) concentram cerca de 35,5% do transporte nesta região. Translitorânea e City Rio são outras duas companhias em que Álvaro também está presente.
• Cassiano Antônio Pereira: Detém 13,2% de participação dividida em três empresas: Rubanil, Transportes América e Viação Madureira Candelária. Destaca-se na Zona Sul.
O Império Barata
Dentre esses empresários destaca-se Jacob Barata, fundador do Grupo Guanabara em 1968. Se em 2013 a reportagem publicada pelo Globo afirmou que o Grupo estaria presente em pelo menos nove empresas no Rio, hoje, segundo uma matéria do site UOL, a família é dona de onze e possui, ao todo, mais de 20 empresas, fazendo transporte urbano, intermunicipal e interestadual. O império do “Rei do Ônibus” abrange oito Estados, cobrindo 2200 cidades e com uma frota de 6 mil ônibus.
O Grupo Guanabara também é composto por outras empresas: a Guanabara Diesel, a Guanabara Empreendimentos Imobiliários e o Banco Guanabara. Além das revendedoras de produtos Mercedes-Benz e dos investimentos no Hotel Mar Ipanema, o grupo também atua em Portugal.
Assim, é observado que, além de o transporte rodoviário ainda ser de administração bem restrita, as empresas por trás de tal concentração são grandiosas podendo ter influência na esfera política municipal e estadual dos transportes públicos[3].
O próximo tópico a ser abordado serão as Benefícios Fiscais, um benefício usufruído pelas empresas que compõem os consórcios da cidade.
Benefícios fiscais
O principal imposto municipal, o Imposto Sobre Serviços (ISS), pesa mais de 50% na receita tributária, apesar de, nos últimos anos, a sua renúncia também ter sido crescente. As maiores beneciadas são as empresas de ônibus.
Nesse contexto, foi sancionada, em 2010, a Lei 5.223, que reduz de 2% para 0,01% a alíquota do ISS das empresas de ônibus participantes dos consórcios que prestam serviço para o município. Como justificativa, a prefeitura carioca afirmou que o objetivo da redução era garantir a modicidade tarifária, ou seja, manter a tarifa em níveis acessíveis.
Desde então, a prefeitura deixou de arrecadar com esse setor cerca R$ 390 milhões e estima-se que, em 2017, a renúncia será de mais de R$ 71 milhões, chegando a R$ 685 milhões até 2020. Isso significa que mais de meio bilhão de reais deixarão de ingressar nos cofres públicos, sem que haja indícios perceptíveis de retorno à população que justifiquem a concessão de tamanho benefício.
Segundo o Rio Ônibus, a redução da alíquota do ISS não foi um benefício às empresas do setor, mas aos usuários do sistema de ônibus municipal, pois tal procedimento estava previsto no edital de licitação das linhas de ônibus em 2010 como garantia para a implantação do Bilhete Único Carioca. Sem o benefício, o Rio Ônibus arma que a tarifa em 2016 teria sido de R$ 4,00, em vez de R$ 3,80[4].
Diante disso, resta-nos averiguar se de fato as tarifas foram afetadas de forma positiva pelo tal benefício fiscal. É o que discorreremos a seguir.
Tarifas de ônibus
Os gastos com mobilidade consomem boa parte dos recursos de quem precisa se locomover, sobretudo os assalariados que, em geral, necessitam do transporte público no dia a dia. O gráfico 2 evidencia que os ônibus municipais são responsáveis por volta de 60% do mercado total de transportes coletivos no estado. Nota–se também que na capital o número de passagens chegou a 805 milhões em 2016. Dessa forma, fica claro que a mudança na tarifa desse tipo de modal impacta significativamente o bolso dos cidadãos cariocas.
Desde 2010, o reajuste tarifário é regulado através de uma fórmula que reflete os índices que indicam a variação dos preços dos insumos mais relevantes da composição dos custos para funcionamento do sistema[5]. No entanto, entre os anos de 2012 e 2016, somou-se ao cálculo elementos além dos presentes na fórmula com a justificativa de recuperar o equilíbrio financeiro das empresas.
Os motivos apresentados para as revisões tarifárias foram, entre outros, o incremento na frota de ônibus e a implantação de ar condicionado, apesar deste último já constar no cronograma do contrato, o que tornaria o pedido injustificável. Assim, apesar do Rio Ônibus afirmar que não há cartel, pois o próprio poder concedente estipula o valor da tarifa de forma independente, o que se vê é um aceite recorrente de pedidos de revisão tarifária sem embasamento suciente.
Ao analisarmos o período entre 2010 e 2016, o aumento da tarifa foi, na maior parte dos anos, acima do IPCA. O ano de 2013 merece destaque, devido à ocorrência das “Jornadas de Junho”, que englobou reivindicações contra o aumento da passagem. Nesse cenário, a pressão popular para a manutenção do valor da tarifa, então em R$ 2,75[6], foi vitoriosa e barrou o aumento da tarifa. Porém, essa manutenção foi compensada com o reajuste bem maior nos anos seguintes, principalmente em 2015, quando o aumento da passagem foi mais que o dobro do IPCA[7].
A atual gestão municipal não reajustou o valor das tarifas, mas em maio de 2017 os quatro consórcios que comandam as linhas de ônibus haviam obtido o reajuste da tarifa para R$3,95 junto à 15a Vara da Fazenda Pública do Rio de Janeiro, que considerou a falta de reajuste de 2016 um “certo desprezo” ao contrato firmado [8]. Porém, o prefeito Crivella recorreu e o Tribunal de Justiça revogou a liminar, afirmando que a autorização do aumento causaria prejuízos irreparáveis aos usuários de ônibus [9]. Mesmo com o reajuste, a variação neste ano estaria abaixo do IPCA. Contudo, ao final do período analisado, enquanto o aumento acumulado da tarifa foi de 63%, o do IPCA foi de 41%, causando um crescimento real da tarifa.
Ao fazer a comparação da evolução dos rendimentos médio da população ocupada com a tarifa, ambos a preços de 2016, nos meses de fevereiro entre 2011 e 2016, observamos que a tarifa aumenta acima dos salários. Dessa forma, o peso da mobilidade urbana para os trabalhadores assalariados que utilizam o ônibus aumenta ao longo do tempo.
Como o valor da passagem em 2013 não se alterou, a inflação corroeu o seu valor e assim, a tarifa, a preços de 2016, se reduziu cerca de 8%. Porém, nos anos seguintes o valor real da passagem apresenta uma trajetória crescente, enquanto a média salarial mensal demonstra uma queda abrupta a partir de 2014. Ao final do período, observamos que a tarifa real aumentou 15%, enquanto os salários reduziram 2%.
Com os dados do salário médio mensal e os valores da passagem, podemos estimar o quanto a mobilidade pesa no bolso dos cidadãos. Supondo que cada pessoa utiliza dois ônibus por dia e trabalha 22 dias, estima-se que o gasto com locomoção (R$ 167,2) representou 7% do rendimento médio do trabalhador assalariado (R$ 2.434,9) em 2016. Porém, em relação ao piso salarial da cidade, a locomoção atinge 17%. Vale mencionar que é comum o uso de outros tipos de modais integrados aos ônibus municipais, logo, este cálculo representa o gasto mínimo para os usuários de ônibus.
É possível, também, estimar o faturamento total do setor de ônibus municipais se multiplicarmos o valor da tarifa do ano em questão pelo número de passageiros pagantes. Assim, a partir dos dados do portal da Fetranspor [10], nota-se que o faturamento apresentou um crescimento por volta de 14%, demonstrando expansão da receita no período entre 2010 e 2016.
Considerações finais
É perceptível a concentração, em poucas famílias, das empresas atuantes no transporte coletivo municipal. O alto valor financeiro na atividade e a proximidade com o poder público na condução da política do setor favorecem a existência de um anel burocrático-empresarial [11]. Tal relação obscura se manifesta na dificuldade de se obter dados confiáveis sobre o faturamento das empresas, que, juntamente com os benefícios fiscais concedidos, torna impossível saber se o reajuste dos preços é uma simples tentativa de preservar ou aumentar os lucros.
Por outro lado, o crescente peso das passagens do transporte urbano no custo de vida dos assalariados significa o aprofundamento da nossa vergonhosa desigualdade social e estúpida concentração de renda.
Oxalá a prisão de um importante empresário do setor seja o estopim de uma urgente transformação nesse serviço essencial.
Fontes:
[1] Mais informações no Jornal dos Economistas – 05/14 e 06/14. [2] Mais informações no Jornal dos Economistas – 06/14. [3] https://brasil.elpais.com/brasil/2017/07/04/politica/1499121581_338417.html, acessado em 18/7/2017. [4] http://www.rioonibus.com/2017/01/12/tudo-o-que-voce-precisa-saber-sobre- reducao-do-iss/ , acessado em 20/07/2017. [5] http://www.rio.rj.gov.br/web/transparenciadamobilidade, acessado em 20/7/2017. [6] Ver o pedido de revisão tarifária em 2012: http://www.cpidosonibus.com.br/site/component/k2/content/22-revisoes-tarifarias/, acessado em 18/7/2017. [7] Ver mais em Jornal dos Economistas/Abril 2016. [8] https://diariodotransporte.com.br/2017/05/25/justica-autoriza-aumento-de- passagem-de-onibus-para-r-395-no-rio-de-janeiro/ [9] http://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2017-06-01/crivella-derruba-na-justica-reajuste- da-passagem-de-onibus-o-prefeito-marcelo-crivella-prbo-recorr.html, acessado em 18/7/2017. [10] https://www.fetranspor.com.br/mobilidade-urbana-setor-em-numeros (Dados operacionais mensais do município do Rio de Janeiro – 2016). [11] DREIFUSS, René Armand. 1964: A Conquista do Estado – Ação Política, Poder e Golpe de Classe. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 73 e nota 14. Apud: CARDOSO, Fernando Henrique. Autoritarismo e democratização. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975. Cap. 5.