A crise política no Peru, que desatou numa explosão na última segunda-feira (30), revela com clareza a validade de duas teses que temos reiterado neste veículo: primeiro, que as exceções que fogem (ou obliteram?) às regras estão muito mais próximas de nós do que imaginamos; segundo, que em momentos de exceção será a força concreta que decidirá em última instância.
Na noite de segunda-feira, o presidente peruano Martín Vizcarra anunciou dramaticamente em rede nacional que havia decidido dissolver o Congresso do país e convocar novas eleições. “Fizemos tudo o que foi possível”, declarou o presidente, que argumenta que o partido Fuerza Popular, de Keiko Fujimori, tem tentado bloquear suas reformas anti-corrupção.
Não demorou muito para que o Congresso respondesse, convocando uma moção de desautorização do presidente, votando-a, aprovando sua suspensão e colocando a vice-presidente Mercedes Aráoz em seu lugar. A oposição fala em um “golpe de estado.”
A república chegou a um paradoxo: o Executivo dissolveu o Legislativo, o Legislativo desautorizou o Executivo. Quem decide?
A decisão – ou, ao menos, a primeira decisão – veio logo, em uma foto no Twitter oficial da presidência peruana, que mostra os comandantes do Exército, Marinha, Força Aérea e Polícia Nacional sentados à mesa com Vizcarra. Para que não houvesse dúvida, as forças emitiram ainda pronunciamentos reconhecendo Martín Vizcarra como legítimo presidente.
Enquanto a vice era feita presidente no Congresso desautorizado, milhares de manifestantes se reuniam nas ruas adjacentes em apoio a Vizcarra.
Tudo que é vivo está sujeito à morte
Por trás do conflito pela decisão da exceção, a questão da corrupção, como no Brasil, também é chave. Em outubro do ano passado Keiko Fujimori, filha de Alberto Fujimori, que governou o país com mãos de ferro de 1990 a 2000, foi presa em meio a uma investigação que varreu as relações de seu partido com a empresa brasileira de construção civil Odebrecht. Uma das principais peças no tabuleiro político peruano, onde o fujimorismo consolidou-se como força hegemônica, Keiko aguarda julgamento. Mas não foi só ela.
Quatro presidentes peruanos também foram acusados em esquemas de corrupção envolvendo a Odebrecht: Pedro Pablo Kuczynski, que renunciou no ano passado; Ollanta Humala, que governou até 2016 e foi condenado em 2017; Alan García, que se suicidou em abril deste ano quando a polícia chegava à sua casa para prendê-lo; e Alejandro Toledo, preso nos Estados Unidos no começo do ano.
As similaridades do Peru com o Brasil, recordadas em excelente artigo de Henrique Júdice, devem nos fazer refletir. Primeiro: A espiral de caos instaurada pela devassa anticorrupção não faz ninguém Soberano – só limpa do caminho os concorrentes. Lição que já deve estar patente no ano em que a Lava Jato passou a balbuciar com os socos desferidos de todos os lados. Segundo: tudo o que é vivo pode morrer; todos os que têm poder podem perdê-lo; as torres da hegemonia podem desabar. Terceiro: O Soberano, aquele com o timão da decisão no mar revolto da exceção, depende da força; concreta, real, mortífera. O espírito das leis não manobra barcos.
Enquanto Vizcarra tiver a seu lado as Forças Armadas, até que perca seu apoio ou, ainda, até que um inimigo (talvez até seus hoje aliados?) também tire a espada da bainha – porque é ela, dizia Nicolau, quem é capaz de levar homens de condição privada ao posto de príncipe – ele se manterá presidente.