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Isis Mustafa (UP-SP): “Temos que fazer frente ampla com a maioria do povo”

Pré-candidata da UP a deputada federal, Isis Mustafa, secretária-geral da UNE, fala sobre sua pré-candidatura e situação da educação sob Bolsonaro.
Pré-candidata da UP a deputada federal, Isis Mustafa, secretária-geral da UNE, fala sobre sua pré-candidatura e situação da educação sob Bolsonaro. Por Pedro Marin | Revista Opera
(Foto: Amanda Alves / Jornal A Verdade)

Isis Mustafa nasceu na Favela do São Pedro , em Itapecerica da Serra (SP), há 25 anos. “Minha família é uma família de mulheres trabalhadoras, mulheres que lutam para sobreviver: não têm casa própria, não têm a perspectiva de uma aposentadoria, vivem do seu próprio suor”, conta. “Isso foi o que sempre marcou minha compreensão da vida”.

Seguia os passos da mãe como vendedora de roupas num shopping do Rio Grande do Sul, para onde a família se mudara, quando foi aprovada, nos idos de 2015, para o curso de Políticas Públicas na Universidade Federal do ABC (UFABC), em São Paulo. Repetia-se uma história comum: em famílias que, geração após geração, não conseguiam acessar o Ensino Superior, por vezes sequer completar o ciclo básico, chegava a notícia daquele primeiro membro aprovado numa universidade. “Foi uma alegria gigante, mas não sabíamos muito o que fazer com essa informação. Tivemos que fazer uma movimentação muito grande para eu poder estudar”.

A movimentação envolveu voltar para São Paulo e viver de favor na casa de um familiar enquanto iniciava seu curso. Na UFABC, confrontando-se com os cortes nos gastos da educação que a atingiam diretamente – cortes em bolsas e em políticas de permanência –, Isis tomou contato com o Diretório Central dos Estudantes da universidade e com o movimento estudantil. Mobilizou-se durante os atos contra o impeachment de Dilma Rousseff (PT) e, ao fim, teve contato com o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB). “Me identifiquei como comunista, entendendo a profundidade da luta de classes no Brasil, quando participamos de uma ocupação urbana com cerca de 80 famílias sem-teto de Diadema e São Bernardo. Nós estudantes cumpríamos a função de defender as famílias, mas naquele mesmo dia a Guarda Civil Municipal, que nem cumpre papel de reintegração de posse, entrou armada no terreno e houve um enfrentamento muito forte”, rememora. “Naquele momento olhei e pensei: ‘não é possível que a gente se contente em viver em um país em que famílias são expulsas de um terreno à mão armada pela Guarda Municipal, que nem devia cumprir essa função’. Acho que essa foi a virada”.

Sete anos depois de sua entrada na universidade, Isis Mustafa hoje é secretária-geral da União Nacional dos Estudantes (UNE). Foi diretora de Mulheres e diretora de Relações Internacionais desta entidade, além de diretora do DCE da UFABC em 2017. Mas não se restringe ao movimento estudantil. Isis é daquelas militantes que, num mesmo dia, será vista numa assembleia de metroviários na Zona Leste de São Paulo, depois numa ocupação de mulheres na Zona Norte, depois ainda fazendo trabalho de base numa favela de Mauá. Além de tudo isso, e de colunista nesta Revista Opera, Isis Mustafa é, neste ano, a pré-candidata da Unidade Popular pelo Socialismo (UP) a deputada federal por São Paulo. O que segue é a entrevista que concedeu à Revista Opera sobre sua pré-candidatura e a situação do País.

Revista Opera: Antes de tudo queria que falasse sobre sua pré-candidatura, por que lançar a pré-candidatura para deputada federal, e que bandeiras você prioritariamente defenderia na Câmara, caso seja eleita. 

Isis Mustafa: Primeiro queria agradecer a entrevista, porque acho que o papel que a Opera e todos os meios independentes de comunicação estão cumprindo nessa eleição é muito importante; a Unidade Popular tem sofrido um boicote sistemático por parte da mídia tradicional – sabemos as origens desse boicote, claro – mas todo espaço que é organizado e fornecido pelas mídias independentes é central para a gente divulgar nossas ideias e chegar em mais gente.

Sobre a candidatura: a Unidade Popular (UP) foi fundada nestes últimos anos. Nós passamos a discutir a criação dela após as manifestações de 2013, quando tivemos aqueles grandes levantes populares, que tiveram como um dos resultados, à esquerda, a criação da UP, a necessidade de um partido político que representasse a radicalidade das ruas e dos movimentos sociais. Em 2014 nós começamos a coletar as assinaturas, mas só conseguimos a legalização do partido, após as mudanças na legislação eleitoral, em 2019. Foi um processo amplo, de ir pra dentro das favelas, trens, pontos de ônibus, para apresentar nossas ideias, fazer denúncias contra o governo, e conquistamos a legalização da UP – coisa que o Bolsonaro não conseguiu fazer, tendo dinheiro, parlamentares, etc. Nós, sem um centavo no bolso, mas com muita força social, conseguimos a legalização da UP. E participamos para o nosso primeiro processo eleitoral em 2020, nas eleições municipais. Fui candidata a vereadora aqui na cidade de São Paulo, trabalhando em torno principalmente nas pautas da presença da juventude periférica e negra, no debate sobre acesso à cidade, educação e cultura. Foi uma candidatura importante, conseguimos chegar em periferias muito distantes, organizar vários núcleos de bairro em que a juventude e a população em geral puderam se engajar na transformação de seus locais, e também nas universidades. Então na discussão sobre quem seriam nossos candidatos este ano, nós avaliamos que o papel da juventude, em especial a juventude das periferias, a juventude negra, era central nesse debate que vamos fazer nas eleições gerais de 2022. Por quê? Porque estamos debaixo de um governo que é extremamente reacionário, racista e fascista. Há um aumento da violência contra a juventude nas periferias, e uma falta de perspectiva sobre emprego, educação, futuro. Precisávamos apresentar um projeto diametralmente oposto ao que as classes dominantes têm apresentado para os nossos jovens. E na nossa opinião, fazer o debate sobre qual País nós queremos precisa passar pela mão desses que, nos últimos anos, estiveram na linha de frente da resistência: da denúncia de que esse sistema capitalista é absolutamente incapaz de resolver os problemas da humanidade, e que temos uma alternativa que é jovem e que tem condições concretas para resolver problemas simples, como o problema da fome, do desemprego, etc.

Então acreditamos que o caráter jovem da disputa eleitoral era importante, e principalmente o segundo aspecto, que é a questão da educação, denunciarmos a situação da educação hoje. O Plano Nacional da Educação prevê que em 2024 o Brasil deveria estar investindo 10% do PIB na educação, e nós vivemos uma realidade hoje que é o ex-ministro da Educação sendo preso por trocar por propinas a verba do fundo que vai basicamente para merenda. Então achamos importante levantar esse debate sobre a situação do orçamento da educação, da perseguição ideológica que esse setor que assaltou o poder tem feito – intervenções nas universidades, o Escola Sem Partido, etc. Todo um programa de educação que quer colocar nosso povo de cabeça baixa, basicamente apertando botões. E nós, por outro lado, apresentando um projeto de educação popular que seja emancipadora, capaz de organizar nosso povo para resistir.

E o terceiro aspecto, mas não menos importante, é que nossa pré-candidatura cumpra a função de fazer a denúncia ampla e irrestrita, na sociedade, de que estamos à beira de um golpe. Porque o Bolsonaro e os militares que se instalaram no poder neste último período têm dito aos quatro ventos que não vão aceitar o resultado das eleições. Isso do ponto de vista institucional. Fora o que vimos nos últimos dias: o assassinato de uma liderança lá no sul do País; o assassinato do Dom e do Bruno. O fascismo tem crescido, numa escalada cada vez maior, e nós acreditamos que o papel da UP é justamente fazer com que nossas candidaturas cumpram a função de denunciar essa crescente e de chamar o povo a ocupar as ruas e impedir um novo golpe militar e fascista em nosso País. Então estamos cumprindo um papel de organização, de agitação e de mobilização. São esses os três aspectos principais da nossa pré-candidatura.

Revista Opera: Os estudantes foram o primeiro setor a reagir de forma organizada contra o governo Bolsonaro, durante o chamado “Tsunami da Educação”, em maio de 2019. Qual é sua avaliação sobre a situação de vida do estudante brasileiro hoje, sob este governo? E quais são, na sua avaliação, as demandas centrais desse setor hoje?

Isis Mustafa: Antes de tudo precisamos pensar na pandemia. Passamos dois anos de apagão da educação. E isso, do ponto de vista da educação básica, temos visto – sem números, sem um levantamento concreto ainda disso – uma evasão escolar muito grande, um abandono das escolas gigantesco. Por outro lado, esse abandono não significou necessariamente que algo preencheu esse espaço na vida do jovem. Então temos um número muito grande, chuto que pelo menos um terço desses jovens que desistiram da escola, que também não arrumou emprego e está nesta situação lastimável. Então temos uma tarefa muito concreta, que é recuperar esses dois anos de pandemia do ponto de vista da educação básica e dos estudantes que estão no Ensino Médio. Isso significa contratar mais professores: hoje o déficit de professores no Estado de São Paulo é de 100 mil profissionais – quase um terço da força de trabalho necessária para garantir os jovens dentro da escola. E é necessário fazer uma busca ativa para que esses jovens voltem para a escola, depois desses dois anos enfrentando a dificuldade de terem tido aulas remotas, tendo que assistir aula no celular. Esse é o primeiro desafio, e a proposta atual do governo estadual vai na contramão disso: vai fazer dez anos que não se abre concurso para professor no Estado. Fora que o projeto da PEI, do Ensino Integral, é um projeto absolutamente excludente, porque o menino ou a menina que está trabalhando não consegue mais ir pra escola, não tem mais a possibilidade de ir pro noturno. Então do ponto de vista geral da questão da pandemia, essa é nossa tarefa imediata.

Agora, sobre as universidades, que é minha principal área de atuação. Nós encontramos as universidades devastadas. Os cortes no orçamento… Este último atingindo quase 15% do orçamento atual das universidades fez com que muitas universidades voltassem às aulas sem um restaurante universitário – como é o caso da minha universidade –, com cortes nas bolsas, redução do orçamento para garantir o funcionamento básico da universidade com a contratação de terceirizados. Hoje a realidade é que boa parte das universidades do País estão sem as políticas de permanência funcionando: políticas voltadas ao transporte, alimentação, a bolsa estudantil, etc. E isso na contramão do que eu falei anteriormente, do que deveria ser o Plano Nacional da Educação: deveríamos chegar aos 10% do PIB investidos em educação. E hoje não chega a 6% do PIB.

E outro aspecto que acho importante colocar é o fato de termos um número grande de instituições de ensino que estão sob intervenção direta do governo federal, ou seja: elegeram seus reitores, mas eles não assumiram a direção da universidade. Isso causa uma instabilidade, e abre um precedente gigante nas universidades para que as privatizações passem, para que haja extinção daqueles projetos que visam conectar a universidade à comunidade extra-muros, etc. Então hoje quem impede o estudante de estudar é o governo.

Nesse sentido, nós temos feito o debate para, além de ampliar o orçamento da educação, também combater a intervenção direta que os setores do capital privado fazem na educação brasileira hoje. Um exemplo disso é a situação das universidades privadas aqui em São Paulo. A Uninove, por exemplo, uma universidade gigantesca, até agora, no segundo semestre de 2022, não teve ainda aulas presenciais para os estudantes que, em sua maioria, são trabalhadores, suam para pagar as mensalidades. E nada se faz sobre isso: afinal de contas são elas que mandam e desmandam na educação do País. Uma tarefa nossa seria também fiscalizar essas universidades privadas, reduzir o poder de barganha que elas têm no Congresso Nacional.

Revista Opera: Ainda no tema da educação, mas entrando também na questão racial: estamos completando esse ano dez anos da Lei de Cotas, sendo previsto para esse ano a discussão sobre a revisão desta lei. Ao mesmo tempo, também neste ano, voltou ao debate público com certa força, com a PEC 206, aquela velha proposta de cobrança de mensalidade nas universidades públicas “para quem possa pagar”. Que acho que não devemos nos iludir: é uma proposta que acaba tendo apoio de alguns setores de nossa classe, que pensam “se o cara pode pagar, por que não?”. Queria que falasse um pouco sobre isso; sobre a Lei das Cotas, a sua posição sobre essa lei neste ano em que se prevê sua discussão, e também sobre essa proposta de cobrança de mensalidades nas universidades públicas.

Isis Mustafa: A Lei de Cotas foi primordial para transformar a realidade do Ensino Superior público brasileiro. O último levantamento realizado pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) mostrou que cerca de 70% dos estudantes nas instituições federais de Ensino Superior têm renda familiar de até 1,5 salário mínimo. Ou seja: são estudantes pobres, da classe trabalhadora. Isso é uma transformação profunda, porque até então a universidade no Brasil servia para atender os filhos dos ricos, das classes dominantes. Antes iam para fora estudar [risos], depois foram criadas as universidades públicas para eles estudarem aqui. E para nós ficava reservado somente o trabalho braçal; não podíamos pensar o Brasil, acho que essa é a questão. Então sim, houve uma transformação gigantesca, e precisamos defender essa transformação – afinal de contas somos a maioria. E, especialmente, defender a presença de negros e negras nas universidades. Essa lei tem corrigido a distorção do ponto de vista da renda, mas ainda há uma distância gigante da presença dos negros e negras nas universidades públicas. É um desafio ainda não completo. E a oportunidade de revisar deve ser usada justamente para verificar onde chegamos e onde queremos chegar.

Acredito que os projetos de lei que estão em tramitação no Congresso… Alguns propõem a extinção da Lei de Cotas, naturalmente; estes que estão no governo a última coisa que querem é os jovens negros nas universidade. Mas há projetos que propõem a prorrogação da verificação da lei, entendendo que é preciso construir um movimento amplo na sociedade, junto com setores da educação e com os movimentos negros, para que a gente possa fazer uma revisão da lei não mais debaixo do governo Bolsonaro, que é extremamente racista e odeia as universidades e os pobres. Então acho que isso é o central: acredito que já podemos apontar inclusive quais são as mudanças primordiais que necessitamos nessa lei.

Uma delas, temos feito a discussão no movimento estudantil, é que a Lei de Cotas precisa estar atrelada à política de permanência. Porque o estudante cotista ingressa na universidade mas, especialmente naquelas universidades que são fruto do Reuni (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais), ele não encontra uma universidade preparada para recebê-lo. São universidades que não têm moradia estudantil, e quando têm faltam vagas; os restaurantes universitários são todos geridos pela iniciativa privada, terceirizados, dificultando a garantia de uma refeição a preço popular e acessível; as bolsas são limitadas, o último reajuste nas bolsas da UFABC, por exemplo, foi em 2014 – desde então todo mundo recebe 400 reais. Então atrelar a Lei de Cotas à política de permanência é justamente uma das demandas que estamos levantando. E para isso o Plano Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes) precisa ser lei, e não mais só um programa, porque aí não seria possível o governo simplesmente suspendê-lo.

Esse é um pouco o debate que temos feito. Mas se quisermos debater verdadeiramente a fundo a questão da Lei de Cotas, nós precisamos preparar um grande movimento de mobilização, debate e rua imediatamente. Como foi a conquista da lei, que veio da mobilização social. Achamos que essa é a única forma de garantir não só a continuidade da Lei de Cotas, mas justamente a ampliação e aprofundamento dela. Há outros setores que estão propondo também o debate, junto a esta lei, dela abranger outros setores. Na UFABC, por exemplo, há cotas para refugiados e cotas para pessoas trans.

Sobre a cobrança de mensalidade: como você bem lembrou, isso não é nenhuma novidade. Não é um assunto novo. Na verdade, quando Temer assumiu o governo, ele encomendou um relatório para o Banco Mundial sobre a questão do ajuste fiscal, e nesse relatório – no qual o Banco Mundial tinha a intenção de dizer para o Brasil, justamente, “para de gastar com esse negócio de pobre e começa a pagar os juros da dívida pública, se comprometa mais com o capital financeiro” –, uma das recomendações era que se extinguisse a universidade pública gratuita no País, que se cobrassem mensalidades. Então de fato não é novidade nenhuma, e naquele momento nós já começamos a debater isso entre os estudantes. Hoje existe bastante acúmulo no movimento estudantil e dentro das universidades para combatermos essa proposta de cobrança das mensalidades. Porque ainda que esse argumento faça sentido em um primeiro momento, quer dizer: “o cara tem dinheiro, pode pagar” – o fato é que isso não tem nada a ver com a sustentação da universidade. Porque se esse fosse o caso… As universidades têm iniciativas próprias de arrecadação. Têm editoras, fazem eventos, etc., e elas arrecadam. Mas mesmo arrecadando, por conta da lei do Teto de Gastos, essas universidades são obrigadas a devolver o recurso para o Tesouro da União se atingirem o teto de arrecadação! Então o problema original da sustentação das universidades é essa emenda do Teto de Gastos, que impede que as universidades se desenvolvam e tenham recursos para funcionar. E se quisermos falar em corrigir as desigualdades, ora, a desigualdade original está nos grandes ricos não pagaram impostos no País, na dívida pública que consome 44% do PIB nacional e ninguém sabe para onde vai esse dinheiro, porque nunca se fez auditoria dessa dívida. É aí que se corrige a desigualdade, não cobrando mensalidade nas universidades públicas – porque aí sim iríamos retroceder em tudo o que foi conquistado, por exemplo, pela Lei de Cotas.

Revista Opera: Você participou ativamente da criação da Casa de Referência da Mulher Helenira Preta, em Mauá, que posteriormente, se não estou enganado durante a pandemia, seria acompanhada pela Ocupação Manoel Aleixo, logo ao lado da casa. É perceptível que, ao menos em São Paulo, a Unidade Popular tem tido um papel bastante forte especialmente na criação de casas de referência da mulher a partir de ocupações. Queria que falasse um pouco sobre isso; do porquê é uma questão central para vocês, porquê optaram por dar uma atenção especial a essa questão; e que desse um testemunho geral da situação da classe trabalhadora durante a pandemia – porque você se manteve bastante ativa durante a pandemia – e especificamente a situação das mulheres trabalhadoras nesse período.

Isis Mustafa: Essa pergunta é muito importante. Nós fazemos a luta feminista, enfim, desde que nascemos… Lutamos para resistir. Mas nós temos uma situação hoje no Brasil que é: existe muita formulação de política pública para combater a violência contra a mulher, mas políticas que não são efetivadas, não são implementadas. Na região do ABC paulista mesmo, o que vimos nos últimos períodos foi o fechamento das casas de referência que existiam; a extinção das casas-abrigo, que é aquela casa para onde a mulher vai quando está na iminência de ser assassinada. Também a prefeitura de São Paulo, durante a pandemia, fez o movimento contrário: cortou as verbas que eram destinadas ao combate à violência contra as mulheres. Então há formulações, porque o movimento foi muito ativo na formulação de política pública no Brasil, mas não há vontade política de garantir a vida das mulheres. E, mediante essa realidade, decidimos ocupar espaços em que nós pudéssemos por um lado pressionar o poder público para que ouça o que as mulheres têm a dizer e para que implemente as políticas públicas que já existem, e por outro lado mostrar como deve funcionar inclusive o serviço de atendimento às mulheres. Porque a questão é salvarmos a mulher da iminência do assassinato, mas também organizá-la para que ela passe a se sentir autônoma e capaz de resistir às futuras violências que ela viverá na vida. Essa é a questão: emancipar essas mulheres. Mulheres que muitas vezes até chegam a ir na Delegacia da Mulher, mas encontram as portas fechadas – como numa denúncia que foi feita sobre a Delegacia da Mulher de Diadema, que só funcionava até as 15h00. Então essa é nossa decisão, e nossas ocupações passaram a cumprir um papel político mesmo, de organizar as mulheres das regiões, ser um espaço de resistência das mulheres ao mesmo tempo em que servia para salvar a vida delas.

Você citou a Ocupação Manoel Aleixo. A Manoel Aleixo, durante várias vezes, serviu de casa para mulheres que precisaram sair [de casa], chegavam na [Casa] Helenira Preta e não tinham para onde ir. E a Manoel Aleixo as acolhia. Isso não significa que estamos cumprindo o papel do Estado. Estamos botando uma pressão para que nossas demandas sejam ouvidas. Um exemplo disso: desde a criação da Helenira Preta em Mauá, foi aprovada – em 2018, se não estou enganada – uma prioridade no orçamento para o combate à violência contra a mulher; em seguida se criou a Secretaria de Mulheres da cidade de Mauá e, no ano passado, foi inaugurado o primeiro centro de referência de mulheres de Mauá. Ou seja: foi a pressão que fizemos ali.

Por outro lado, achei interessante você colocar a questão da pandemia. Porque na pandemia aumentaram muito as denúncias de violência contra as mulheres. Primeiro, claro, porque elas passaram a ficar mais tempo com seus agressores em casa – essa é a realidade, ampliou os casos de violência; segundo, a situação econômica do País – mais mulheres desempregadas, mais famílias sem renda, é um fator que aumenta o índice de violência; e terceiro, o aspecto que eu disse, de nenhuma aplicação de políticas de combate efetivo a essa violência. A questão é: as nossas mulheres estão sem empregos, as crianças sem ir para a escola, a fome no Brasil atingindo patamares gritantes, nos recolocando no Mapa da Fome, com milhões de famílias que passam mais de 24 horas sem comer. Quem são essas famílias? São famílias de mulheres. Então a nossa política é voltada para essa realidade justamente porque entendemos que o capitalismo é cruel, mas com as mulheres ele é ainda pior. Vimos nesses últimos dias as denúncias gravíssimas de estupros, de violências contra as mulheres, inclusive cometidas por membros do alto-escalão do governo – como foi a denúncia quanto ao ex-presidente da Caixa Econômica, Pedro Guimarães. Por isso essa é nossa decisão. Inclusive as nossas pré-candidaturas aqui em São Paulo são todas de mulheres, para colocar as mulheres num lugar que devem estar, ocupando espaços de poder para combater a violência e a discriminação de gênero.

Então cavamos esses espaços das casas de referência como espaços de resistência política e de organização de outras mulheres, a experiência do nosso movimento durante a pandemia – que foi subir os morros, chegar nas favelas, bater nas portas de casa em casa, e organizar as campanhas de solidariedade, organizar as mulheres nos núcleos do Movimento de Mulheres Olga Benário –, e o terceiro aspecto é essa representação política, para que as mulheres possam olhar e dizer: “tem gente como a gente ali, lutando, em defesa das nossas vidas”.

Revista Opera: Um outro movimento em que você participou de forma bastante ativa foi justamente na retomada das manifestações no ano passado contra o governo Jair Bolsonaro, a UP tendo um papel preponderante nessa retomada, na frente Povo na Rua. Houve um esforço muito grande para efetivamente conseguirem fazer as manifestações, começando em maio do ano passado, mas esses atos acabaram esvaziados já por volta de outubro, novembro. Queria que falasse desse processo. Qual foi a importância dessa retomada das ruas em 2021, e por que, na sua avaliação, mesmo depois de atos bastante grandes, esse movimento terminou esvaziado?

Isis Mustafa: Foi realmente um esforço gigantesco mobilizar as forças políticas de esquerda para ocupar as ruas novamente. Até porque em determinado momento nós vimos que a questão era: ocupar as ruas, morrer de Covid ou morrer de fome. O governo era mais perigoso do que as limitações que a pandemia impôs para nós. E queria lembrar que mesmo antes disso, quando a direita começou suas movimentações, ali na Paulista, no Congresso Nacional, as torcidas organizadas também fizeram manifestações antifascistas. Então espaço político para convocar as manifestações já existia.

Por isso nós organizamos, junto ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), ao Movimento de Esquerda Socialista (MES) e outras organizações de esquerda essa articulação que ficou conhecida como “Povo na Rua, Fora Bolsonaro”, e fomos colocar pressão sobre outros setores, para que se somassem. Precisávamos ir para as ruas e dar resposta imediata aos crimes que Bolsonaro vinha cometendo à frente da presidência do Brasil. Essas manifestações foram muito importantes, romperam o marasmo que estava colocado de “vamos aguardar as eleições, resolvemos lá, vencendo o Bolsonaro”, e cumpriram inclusive um papel de fazer o enfrentamento de rua a esses setores reacionários, fascistas e bolsonaristas, que estavam indo para as ruas todo final de semana. De verde e amarelo, reivindicando intervenção militar, fechamento do STF… Eles estavam na rua. Então cumprimos esse papel, junto dos outros companheiros, de botar o movimento na rua, fazer grandes jornadas. E na nossa opinião elas foram bastante importantes: porque arrancamos essa direita reacionária da rua, demonstramos a força da esquerda, e colocamos também um nível importante de rejeição e denúncia contra Bolsonaro. Porque o povo estava com fome, sem ter vacina… E o Bolsonaro estava nadando de braçada. Colocamos o governo na defensiva, na nossa opinião.

Agora, é fato que essas manifestações foram sofrendo um esvaziamento, na nossa visão intencional, por parte de setores da social-democracia. Passamos a enfrentar esse tipo de dificuldade. E acho que um ponto importante, que colaborou para esse esvaziamento, foi a tentativa de diálogo com a direita nas manifestações. Queria lembrar do dia 12 de setembro, em que a proposta de alguns setores era ir para as ruas ao lado do Movimento Brasil Livre (MBL), ou seja, os mesmos caras que ajudaram a eleger o Bolsonaro; ratos saindo do navio. Porque sustentaram o Bolsonaro até ontem; quando ele começou a perder hegemonia na sociedade eles pularam do navio. Nós fomos contrários a ir pra rua com esse setor. Com PSDB, setores que deram o golpe, sustentaram Bolsonaro… Essa sinalização de “somos todos pelo Fora Bolsonaro” ajudou a esvaziar a rua. Porque o povo olha e fala: “bom, se é isso aí…”. São duas coisas que colaboraram para o esfriamento das manifestações.

Isso significou que saímos das ruas? Não. Passamos a organizar os povos nas ruas, mas nas periferias: manifestações em São Mateus, em São Paulo; em Madureira, no Rio de Janeiro. Fomos mobilizar nas periferias, mobilizar quem estava sofrendo diretamente os ataques do governo. E agora nós estamos propondo de novo que as ruas sejam tomadas contra o golpe militar fascista, em defesa dos direitos democráticos. No dia 16 de julho fizemos um Fora Bolsonaro nas periferias, lutamos para que essa articulação fosse com todos os setores que defendem a democracia, mas no sentido de tentar uma retomada das ruas. Não é possível acharmos que vamos vencer o Bolsonaro somente nas urnas, porque como eu disse antes, esse setor está disposto a não reconhecer o resultado das eleições, está disposto a cometer atrocidades – como têm sido esses ataques com bombas, assassinatos. Se não tiver povo nas ruas, organizado, vai ser impossível resistir à crescente do fascismo. Por isso estamos propondo e convocando, chamando as organizações políticas a também se responsabilizarem.

Revista Opera: Você mencionou essa questão dos golpes, dos militares, que para nós aqui na Opera é muito cara. Existe uma perspectiva, uma tensão, que é que na prática vemos a conjuntura se radicalizando, as rupturas cada vez mais evidentes e frequentes; como você disse, com esses casos de ataques e assassinato… Mas ao mesmo tempo parece que, do ponto de vista midiático, mas também até em lideranças políticas, há muito forte um discurso de normalidade, como se as coisas fossem se resolver magicamente. Como você enxerga esse cenário?

Isis Mustafa: Olha, ao mesmo tempo que nos apresentam esse discurso de normalidade, dizem também que vai ser uma eleição excepcional e que precisaríamos todos portanto votar contra Bolsonaro. Há uma dualidade aí também no entendimento. Eu acho que é uma ilusão imaginar que vamos sentar com os comandantes das três armas e negociar uma transição pacífica de poder. Porque isso só vai se dar se eles continuarem no poder; se abrirmos mão de tudo – inclusive do poder – para que essa transição seja pacífica. Afinal de contas, há mais de seis mil militares no Governo Federal; ampliaram seus privilégios com aumentos salariais e outras benesses; e tomam as decisões, na realidade, no nosso País. Então esse é um discurso de quem se ilude, achando que vai governar independente desses setores. E, por outro lado, de quem está abrindo mão de colocar o peso justamente na mobilização popular, não só no voto popular.

Porque veja, acho que é um debate interessante para aprofundar: quando falamos que existe uma ameaça de golpe fascista, de golpe militar fascista, estamos dizendo que existe uma ameaça de recrudescimento do regime. Seja quem for que ganhe as eleições. Um recrudescimento para perseguir as organizações populares, reduzir as liberdades democráticas, etc. E isso se traduz inclusive nessas ações mais pontuais, mas que não são comuns, normais, não estão no âmbito da normalidade. Como é o caso dessas organizações paramilitares de setores reacionários colocando sua ideologia na rua. Então na nossa opinião trata-se de um debate mais profundo sobre o que é o avanço do fascismo. Inclusive porque, neste aspecto, o Bolsonaro é descartável. Se os militares e a classe dominante identificarem que outro candidato possa cumprir a função do Bolsonaro, ou seja, garantir o recrudescimento do regime, reduzir as chances do povo se organizar, aumentar a exploração contra os trabalhadores, ele é descartável. Essa é a questão.

Por isso temos feito esse debate: se agirmos com esse nível de normalidade, de lógica de transição pacífica, sem nem responsabilizar esses setores pelos crimes que cometeram contra o povo, o que vai acontecer é que nenhuma das medidas necessárias para reverter estes crimes será possível. Na primeira oportunidade, vão derrubar o governo e instaurar um regime ditatorial – e se não estivermos preparados, vamos viver mais 20 anos de ditadura? Porque o povo não foi preparado, não estava alerta?

Por isso a Unidade Popular tem cumprido essa função, em um momento até de luta política com outros setores para que isso seja identificado como a luta central. Estamos cumprindo essa função.

Revista Opera: Por fim, há uma pressão muito grande nesse processo eleitoral pelo rebaixamento das pautas históricas da esquerda. Quer dizer, chegamos ao paradoxo de centrais sindicais defenderem a permanência da reforma trabalhista. E há uma pressão para que a esquerda amplie suas alianças e engula – ou seja engolida – pela frente ampla. Já que o PT embarcou nessa perspectiva, essa pressão se abate também sobre as pré-candidaturas radicais, como é o caso da sua – muitas vezes com acusação de divisionismo, de demasiado radicalismo, de ajudarem Bolsonaro, etc. Pode falar sobre isso? Por que a decisão da UP foi não embarcar neste processo de frente ampla e, pelo contrário, lançar suas pré-candidaturas? E para aqueles leitores que estão eventualmente divididos sobre o que fazer em outubro, por que é importante apoiar as pré-candidaturas do campo radical e, em São Paulo, especificamente sua pré-candidatura, a deputada federal?

Isis Mustafa: Na nossa opinião, o que ajuda o Bolsonaro nessas eleições, e o bolsonarismo e o fascismo enquanto ideologias políticas na sociedade, é se aliar a setores de direita. Isso ajuda Bolsonaro, garante que não façamos um combate na raiz e que não deixemos claro para a população que a questão no Brasil é que não podemos viver debaixo do sistema capitalista, no qual a grande maioria do povo é explorado, tem tudo o que é fruto de seu trabalho roubado para garantir os privilégios e interesses de uma pequena minoria de banqueiros, donos de grandes meios de produção, de membros do capital internacional. Na medida em que nós não fazemos da eleição um momento de debater abertamente a origem dos males, da fome, do desemprego, da falta educação e saúde; na medida em que se faz da eleição simplesmente um grande teatro, isso evidentemente fortalece aqueles que se interessam pela manutenção do regime. Esta é a nossa opinião.

É por isso que não embarcamos na frente ampla. Porque para nós temos que fazer frente ampla com a maioria do povo. O que temos que fazer agora é um mutirão de trabalho de base, cotidiano e persistente, para enfrentar, com a consciência do nosso povo, o sistema capitalista. Pôr fim na exploração desenfreada que nosso povo sofre. Quer dizer, o Brasil é um dos maiores produtores agrícolas do mundo – soja, milho, arroz… – e o povo passa mais de 24 horas sem comer. Isso é porque o Bolsonaro é mau? Também. Mas é porque o sistema econômico em que a gente vive faz com que aquilo que a gente produz vá a preço de banana para fora, enquanto o povo vai comer farelo de arroz. Se não for para colocar a nu essa contradição principal, a eleição não vai cumprir uma função que na nossa opinião é importante, que é de politização e organização da luta social. Por isso nossa pré-candidatura não está ajudando Bolsonaro: nossa pré-candidatura está ajudando a esquerda, o povo, a classe trabalhadora! Nossa pré-candidatura defende o socialismo! E nós acreditamos que esse papel nós cumprimos por sermos radicais, radicais no sentido de identificar a raiz dos problemas e apresentar uma alternativa real, concreta, que não é um sonho. Porque escuto muito isso: “vocês são sonhadores!”. Quase como se o que estivéssemos falando fosse impossível de realizar. Olha, nós estamos apresentando medidas concretas. O que não é possível fazer é tentar conciliar novamente os nossos interesses com os interesses dessa minoria de sanguessugas, de parasitas, que está no poder hoje. Esta é a nossa proposta.

Nós estamos disputando o voto de setores que eventualmente não iriam votar em ninguém, que talvez até iriam votar no Bolsonaro. Estamos cumprindo esse papel. É interessante: aquele gabinete do ódio da direita tem muito recurso. Eles fazem um disparo de fake-news, de mentiras, de confusão em cima do nosso povo muito grande. E o nosso povo por vezes não tem a oportunidade de desmentir aquela situação. Por que falo isso? Porque nosso papel é entrar em cada barraco, em cada conversa no trem, e desvendar quem é o Bolsonaro, quem é a direita fascista, o que é o sistema capitalista, e dizer que há uma alternativa. Uma pré-candidatura que está fazendo isso, a última coisa que está fazendo é ajudar o Bolsonaro. Essa é a questão central para nós.

E nós consideramos que nossas pré-candidaturas merecem esse apoio justamente porque estamos apresentando uma alternativa real e concreta para que nosso povo seja dono de si mesmo, que tenha condições de viver num sistema em que a fome e o desemprego não seja “normal” – como estávamos usando antes a expressão da normalidade. Que possamos reestatizar as empresas que foram privatizadas, que a gente possa reduzir a jornada de trabalho e ampliar o número de empregos, que a gente possa botar esses bancos para fora, escorraçar eles do nosso País, pra que parem de explorar as nossas riquezas. Essas são as propostas das nossas pré-candidaturas: concretas, reais, possíveis de serem feitas num país como o Brasil; país rico, gigante, com um povo com tradição de luta. Porque se tem algo que nosso povo tem é tradição de luta, de resistência: não baixa a cabeça. Essa é a questão para nós, e por isso achamos as pré-candidaturas imprescindíveis: não são só mais umas no meio de 33 partidos. Não, nós somos um setor que está falando aquilo que é imprescindível para que a gente tenha justiça social no Brasil. Então acho que seria esse o recado para a turma apoiar as nossas pré-candidaturas.

*Esta é a segunda de uma série de entrevistas realizadas pela Revista Opera com pré-candidatos nas eleições de 2022. Clique aqui para acompanhar as entrevistas.

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