Seis semanas após o governo de facto do Haiti ter solicitado uma intervenção militar estrangeira, em meio a níveis sem precedentes de insegurança no país, e após os Estados Unidos ter começado a trabalhar em uma resolução para o Conselho de Segurança da ONU para autorizar uma “força de ação rápida” no Haiti, líderes regionais têm começado a declarar sua oposição ao plano. Ao longo das últimas semanas, diversos países, incluindo o Canadá – que os EUA esperavam que liderasse tal missão –, têm manifestado que mudanças políticas no país são um passo necessário. Ao mesmo tempo, à medida que as semanas passam, o mandato e o escopo de uma possível intervenção militar estrangeira no Haiti parecem estar mudando.
“A situação da segurança não pode ser dissociada da situação política”, disse à imprensa o primeiro-ministro de São Vicente e Granadinas, Ralph Golsalves, após um encontro entre os líderes dos EUA, Canadá e CARICOM neste mês. Ele declarou que antes de qualquer coisa, os atores políticos haitianos teriam de se juntar e definir um caminho a ser seguido.
“A não ser que você aborde a questão política de um diálogo nacional, trazendo à frente um governo de unidade nacional, um governo inclusivo, não há como resolver de forma apropriada a questão da segurança, porque qualquer força de segurança que entre lá [no Haiti] seria vista com desconfiança, como se estivesse apoiando o atual governo haitiano”, disse Gonsalves, o líder político mais antigo do Hemisfério Ocidental.
Gonsalves disse também que alguns países preferem uma resposta rápida, independente de qualquer acordo político e, segundo explicou, esses países têm feito forte lobby com as nações do CARICOM para obter o seu apoio para tal missão. “Bem, uma coisa que posso te dizer é que São Vicente e Granadinas não enviará qualquer força policial nessa situação, porque não quero que ninguém interprete que enviamos uma força policial lá para sustentar o governo”, disse ele.
Apesar de não ter mencionado nenhum país, é provável que a referência feita seja aos Estados Unidos, que se mantém como um aliado de primeira hora do primeiro-ministro de facto do Haiti, Ariel Henry. Apesar de ser um dos apoiadores mais vocais de uma nova missão de segurança liderada pelo Ocidente no Haiti, os EUA até o momento se recusaram a usar suas próprias tropas, e têm procurado persistentemente outras nações na esperança de encontrar um outro país para assumir a liderança de tal intervenção. Esses esforços tiveram como foco primário o Canadá, e incluíram uma visita a Ottawa do Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, no mês passado.
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O Canadá, embora não rejeite explicitamente a ideia de que poderia liderar tal intervenção, disse que está considerando suas opções. Mas, na semana passada, o primeiro-ministro Justin Trudeau apoiou publicamente a análise de Gonsalves.
“Não é suficiente que o governo haitiano faça o pedido [de uma intervenção]”, disse Trudeau. “É necessário que haja consenso entre os partidos políticos no Haiti antes que possamos avançar em passos mais significativos.” O líder canadense disse mais uma vez que seu país estava aberto para participar em uma intervenção militar, mas que “nós temos que ter o consenso haitiano” antes.
Os EUA abordaram uma série de outros países para tratar da participação em tal missão, incluindo o Brasil, que liderou a última força militar das Nações Unidas no Haiti, a MINUSTAH, de 2004 a 2017. Telegramas diplomáticos publicados pelo Wikileaks revelaram que, à época, os EUA buscaram um outro país para liderar a missão da ONU com o fim de economizar dinheiro e terceirizar seu controle sobre o Haiti. “Sem uma força de paz e estabilização sancionada pela ONU, estaríamos recebendo muito menos ajuda de nossos parceiros hemisféricos e europeus na gestão do Haiti”, escreveu a então embaixadora dos EUA no país, Janet A. Sanderson, em 2008.
Mas, aparentemente, o Brasil não tem muito apetite de voltar ao Haiti hoje. “Qualquer participação brasileira seria difícil, sobretudo em uma força multinacional”, declarou à Reuters o ex-ministro de Relações Exteriores e conselheiro de Lula, Celso Amorim. “Nós fizemos um esforço enorme que nos trouxe uma série de problemas, inclusive internos”, ele disse.
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Obviamente, mesmo a obtenção de uma autorização da ONU permanece duvidosa. China e Rússia, países que têm poder de veto no Conselho de Segurança, expressaram ceticismo quanto a uma nova intervenção. No mês passado, o jornal Miami Herald reportou que os EUA estavam “planejando contingências para uma força multilateral que entraria no Haiti sem autorização formal da ONU”, embora não esteja claro se isso poderia significar o envio de ativos e tropas militares dos EUA.
O que está claro, no entanto, é que os EUA parecem comprometidos com pelo menos algum tipo de intervenção externa de segurança no Haiti. Em encontros a portas fechadas nas últimas semanas, oficiais estadunidenses repetidamente indicaram seu otimismo de que algo nesse sentido será feito.
“Não há clareza estratégica”
“Apoiamos muito que algo seja feito pelo povo haitiano”, disse o primeiro-ministro de São Vicente e Granadinas. “Mas você tem que compreender corretamente o [aspecto] humanitário, o de segurança e o político. Não é possível simplesmente vincular o [aspecto] humanitário ao de segurança, esquecendo o político […] há muita confusão tática porque não há clareza estratégica”.
A intervenção militar foi primeiro descrita como uma “força de ação rápida” que ajudaria a desbloquear o principal terminal de combustível do país, em Porto Príncipe, e a resolver a situação humanitária imediata. “Essa resolução proporá uma [missão] cuidadosa e de escopo limitado”, declarou ao Conselho de Segurança a embaixadora dos EUA na ONU, Linda Thomas Greenfield, em meados de outubro.
No entanto, mais de um mês já se passou e o terminal de combustível tem operado há duas semanas. Apesar disso, o escopo de uma possível missão parece ter se expandido.
“Continuam a haver desafios de longo prazo que uma força capacitadora autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU seria capaz de ajudar a resolver”, disse o porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, Ned Price, em resposta a uma pergunta sobre se a retomada do abastecimento de combustível havia diminuído a necessidade de intervenção. Thomas Shannon, ex-diplomata de alto escalão dos EUA, sugeriu que o que o Haiti realmente precisa é de uma missão de “construção do Estado” de longo prazo, similar ao esforço dos EUA no Afeganistão.
Depois de inicialmente dizer que o plano estaria pronto no início de novembro, o Miami Herald informou na semana passada que os EUA têm pouca esperança de progredir em sua resolução da ONU durante as férias – empurrando um cronograma potencial até o início de 2023. “Um segundo oficial do governo disse que o plano não está morto, mas que a formação de uma missão militar tão ambiciosa levaria tempo”, reportou o jornal.
Ninguém, ao que parece, tem ideia de como seria esse esforço militar. Um porta-voz da embaixada francesa disse ao Politico: “Até o momento, os contornos dessa possível força de intervenção não foram especificados”.
“O problema é que ninguém realmente acredita que é possível restaurar a ordem e se retirar rapidamente”, disse no começo de mês Richard Gowan, do International Crisis Group.
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Em 2004, após o golpe de estado contra Jean-Bertrand Aristide, o governo de facto do Haiti requisitou com urgência uma assistência militar estrangeira. No mesmo dia que Aristide voava rumo ao exílio, o Conselho de Segurança autorizou o envio, durante três meses, de uma força multinacional liderada pelos EUA e Canadá. Isso, no entanto, sempre foi apenas uma medida temporária enquanto os preparativos de longo prazo para a chegada dos Capacetes Azuis da ONU ocorriam. Essa missão durou 13 anos.
Apesar de apresentada ao mundo como uma intervenção bem planejada, feita somente para resolver uma terrível situação humanitária, a incapacidade dos EUA de encontrarem um apoio imediato agora revela qual tem sido a questão: qualquer intervenção militar provavelmente se transformará em mais uma tentativa de longo prazo, liderada por estrangeiros, de “construção nacional” no Haiti.