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Na ‘democracia inabalada’ todos temem os generais

Ministros deixam claro que, no 8 de janeiro, todos temiam os generais; resta saber se inação desde então é incoerência ou também manifestação desse temor
Pedro Marin
Ato Democracia Inabalada realizado no Salão Negro do Congresso Nacional, em 08/01/24. (Foto: Lula Marques/Agência Brasil)
Um humor muito distinto do institucionalismo auto-lisonjeiro que marcou o evento em memória ao primeiro ano do 8 de janeiro de 2023 aparece no documentário “8/1 – a democracia resiste”, de Julia Duailibi e Rafael Norton, para a GloboNews.

Com imagens abundantes do 8 de janeiro e entrevistas com os principais atores institucionais envolvidos, o filme de Duailibi e Norton, apesar do título, não serve para quem quer apregoar a grandeza invencível das instituições e o caráter inabalável da democracia: pelo contrário, termina demonstrando a fragilidade e a pequeneza de tudo isso frente ao poder armado.

Esse amargor na garganta do espectador ao final do documentário não é efeito da criatividade dos documentaristas, nem uma simples narrativa cinematográfica. Não; são os próprios atores institucionais que relatam todo o temor que os generais lhes impuseram, mesmo que hoje prefiram festejar uma “democracia inabalada”.

Ricardo Capelli, interventor na Segurança Pública do DF no dia 8 de janeiro, descreve sua chegada ao Setor Militar Urbano de Brasília, acompanhado da PM do DF, pronto para prender os golpistas, na noite do 8 de janeiro: “Passa cinco minutos, o general Dutra [ex-comandante militar do Planalto] chega, e aí ele me diz: ‘se o sr. entrar, nós vamos ter um banho de sangue’. E eu perguntei a ele, falei: ‘General, um banho de sangue? Por que nós vamos ter um banho de sangue? O sr. está me dizendo que o Exército Brasileiro está protegendo manifestantes armados dentro do Setor Militar Urbano?’”. E prossegue: “Enquanto eu conversava com ele, chegaram reforços na linha da Polícia do Exército. Inclusive eles moveram blindados. […] Quando cria um impasse com ele, ele se afasta de mim e faz uma ligação telefônica. […] Num dado momento, ele volta para minha frente, para que eu ouvisse a conversa dele ao telefone, e ele fala: ‘Que bom, presidente’. […] Ele dá a entender que o presidente [Lula] teria concordado [com adiar a entrada no acampamento e a prisão dos golpistas]. Ele dá a entender; se aconteceu ou não, não posso afirmar. Aí desliga o telefone e fala: ‘conversei com o presidente, o presidente ponderou, está concordando em a gente ter mais calma. O general Arruda quer falar com o sr., lá no QG (Quartel-General). Vamos lá?’ Eu concordei: ‘Pois não, vamos lá’. Chegamos na porta do QG, estava o general Arruda, lá embaixo, com muitos generais […] boa parte, ou quase todo, o alto-comando. Ele me cumprimenta, muito sério, nós subimos para a sala dele, sentamos numa mesa, e assim que eu sento, ele virou para mim e falou: ‘o sr. ia entrar aqui com homens armados sem a minha autorização?’. Aí eu falei: ‘General, eu tinha ordens de entrar, mas ia avisar o sr.’ E aí ele vira para o coronel Fábio Augusto [da PM] e fala: ‘porque eu acho que eu tenho um pouquinho mais de homens armados que o sr., não é, coronel Fábio Augusto?’. Eu percebi que o ânimo, o clima, estava bastante tenso, e passei a argumentar com o general Arruda sobre a necessidade de imediatamente desmontar o acampamento e prender todos que estavam ali. E eu fiz a afirmação e falei para ele: ‘o sr. concorda, general?’ E ele falou: ‘Não!’

Passemos a Flávio Dino, que descreve sua chegada ao Setor Militar Urbano: “Nós fomos conduzidos a uma sala em que estavam vários militares. E chegamos eu, [o ministro da Defesa José] Múcio, e Rui [Costa, ministro da Casa Civil]. E eu digo ao comandante: ‘Comandante, nós vamos cumprir o que a lei manda’. E aí ele diz: ‘Não, não, não vão’. Tenho absoluta certeza que torciam por uma virada de mesa, porque tinham ojeriza, ódio; um ódio nos olhos, um ódio que não é presumido – eu vi! – ao que nós representávamos. […] E nesse impasse – eu não lembro bem se foi o Múcio, creio que foi o Múcio – que propôs que nós fôssemos para uma sala menor, ao lado. E sentamos nessa sala, eu, o ministro Rui, o ministro Múcio, o comandante Arruda e o general Dutra […] E aí nós temos um longo debate. Hoje, descrever, não tem a carga emocional do momento. E nós fizemos o acordo de prender às 06 horas da manhã.”

Em outro trecho, Capelli se lembra de algum dos generais – cujo nome não se recorda – fazendo comparações entre o 8 de janeiro e manifestações contra o impeachment de Dilma, em 2016. A jornalista Julia Duailibi questiona o ministro da Defesa, José Múcio, sobre isso, que diz: “Não, não… Não ousei perguntar [sobre isso], porque tive medo das respostas.” Quando a repórter o questiona sobre a razão desse medo, Múcio diz: “Julia, evidentemente o presidente me trouxe para eu fazer um processo de pacificação.” A jornalista enseja o seguinte diálogo:

– Julia Duailibi: “mas parece, por um lado, que a última palavra foi do Exército”.
– Múcio: “Não.”
– Julia Duailibi: “Sim, ‘aqui não entra’”.
– Múcio: “Não, mas não foi, depois a própria Polícia Federal, o próprio Capelli, as próprias pessoas que não eram do comando chegaram à conclusão de que seria imprudente um enfrentamento.

Apesar de todos os relatos, estes são os mesmos atores que terminam por dizer que as Forças Armadas ou o alto-comando, em sua maioria, mantiveram-se “legalistas”. Apesar do fato de que a “ojeriza, ódio” era evidente na sala “com muitos militares”; apesar das ameaças – veladas e abertas – que Capelli testemunhou por parte do comandante do Exército e do comandante militar do Planalto; apesar dos receios de sequer fazer perguntas por parte do ministro da Defesa… A conclusão a que nos encaminham todos é de que as Forças Armadas, em sua maioria, se mantiveram e são legalistas, ao mesmo tempo em que se perguntam “o que teria ocorrido” se não tivessem se submetido – por que fazer tal questionamento, se lidavam com Forças Armadas majoritariamente legalistas? Não parece uma contradição em termos submeter-se absolutamente a comandantes de uma organização, sob ameaça, e afirmar, ao mesmo tempo, que tal organização manteve-se legalista – mesmo quando seus comandantes literalmente diziam não concordar com o cumprimento da lei? É um tipo novo de legalismo: o que se dá somente nos termos impostos pelas Forças Armadas, mesmo que tais termos caminhem às margens da lei. Um legalismo cuja definição é tutela.

Fica evidente que, no 8 de janeiro, todos temiam os generais. Resta saber se a afirmação de que as Forças Armadas mantiveram-se legalistas, a grandiloquência dos festejos democráticos e a manutenção de um espírito de obsessiva “normalidade” desde o 8 de janeiro são simples incoerências ou também manifestação desse temor.

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