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Frei Betto: Estados Unidos e o perfil religioso da América Latina

Por meio dos Documentos de Santa Fé, EUA delinearam estratégia para combater a Teologia da Libertação na América Latina e avançar as igrejas evangélicas na região
Frei Betto
Homens descansam na Plaza Salvador del Mundo, durante ato de beatificação do Monsenhor Oscar Romero, assassinado em 24 de março de 1980 enquanto celebrava uma missa na Capela do Hospital La Divina Providencia. (Foto: Luis Astudillo C. / Cancillería del Ecuador)
Homens descansam na Plaza Salvador del Mundo, durante ato de beatificação do Monsenhor Oscar Romero, assassinado em 24 de março de 1980 enquanto celebrava uma missa na Capela do Hospital La Divina Providencia. (Foto: Luis Astudillo C. / Cancillería del Ecuador)

A América Latina passou por profundas transformações religiosas ao longo das últimas décadas do século XX. Um dos fenômenos mais notáveis foi o crescimento expressivo das Igrejas evangélicas, especialmente as de orientação pentecostal e neopentecostal. Embora diversos fatores internos – crises sociais, esvaziamento da Igreja Católica, e a busca por experiências religiosas mais pessoais – tenham contribuído para esse processo, há também influências externas, políticas e estratégicas, que desempenharam papel crucial. 

Nesse contexto, destacam-se os Documentos Santa Fé I (1980) e Santa Fé II (1988), produzidos por setores conservadores da política e dos serviços de inteligência dos Estados Unidos, com o objetivo de orientar a política externa do país frente à América Latina durante a Guerra Fria. 

Esses documentos foram elaborados em reuniões na cidade de Santa Fé, no Novo México (EUA), e não apenas formulam uma crítica contundente à Teologia da Libertação, mas também defendem ações práticas que acabaram contribuindo para o fortalecimento de movimentos evangélicos na região. (Os documentos podem ser encontrados aqui.)

Santa Fé I e II

Em maio de 1980, o governo dos EUA, então presidido por Jimmy Carter, emitiu o Documento Santa Fé I, denominado “Uma nova política interamericana para os anos 80”. E no governo Ronald Reagan foi publicado o Documento Santa Fé II, intitulado “Uma estratégia para a América Latina nos anos 90”.

Os signatários dos dois documentos afirmam que “o regime democrático é aquele no qual o governo tem a responsabilidade de preservar a sociedade vigente de ataques externos ou da intromissão do aparato estatal permanente.” Ou seja, reduzir ao máximo a intervenção do Estado na economia. Na prática, privatizar, privatizar, privatizar. O que o capitalismo tenta esconder é que a maioria das privatizações é financiada por dinheiro público!

No contexto da Guerra Fria, os documentos alertavam para a “ofensiva cultural marxista”, ao afirmar: “Para os teóricos marxistas, o método mais promissor para a criação de um regime estatista em um ambiente democrático se obtém mediante a conquista da cultura da nação. De acordo com este modelo, todos os movimentos marxistas na América Latina têm sido encabeçados por intelectuais e estudantes, e não por trabalhadores”. 

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Isso explica o horror que a direita tem de intelectuais e cientistas. Prefere pessoas analfabetas ou semianalfabetas, mais fáceis de serem manipuladas. 

O Documento Santa Fé II assinala que nesse contexto “deve ser entendida a Teologia da Libertação, uma doutrina política disfarçada de crença religiosa com uma significação antipapal e contrária à livre empresa, com o propósito de debilitar a independência da sociedade”. 

Na época, o papa era João Paulo II, polonês anticomunista, aliado de Reagan. Hoje, com certeza, a alusão à “significação antipapal” não constaria, já que o papa Francisco é considerado “comunista” até mesmo por bispos estadunidenses.

Contexto da Guerra Fria e a preocupação ianque

Durante a Guerra Fria, os EUA viam a América Latina como região estratégica na contenção da expansão do socialismo. Após a Revolução Cubana, em 1959, aumentou o temor de que outros países latino-americanos seguissem o mesmo caminho, abraçando regimes socialistas. A ascensão da Teologia da Libertação, nas décadas de 1960 e 1970 — um movimento dentro do catolicismo que combina fé cristã com análises marxistas da sociedade, defendendo a luta contra a opressão e a injustiça social — passou a ser vista com crescente preocupação pelos setores conservadores dos EUA, tanto no governo quanto em think tanks e setores religiosos.

O primeiro documento, conhecido como Santa Fé I, foi elaborado em 1980 por um grupo de assessores conservadores de política externa ligados a Ronald Reagan. Seu objetivo era fornecer diretrizes para a ação americana na América Latina diante do avanço do marxismo e de movimentos revolucionários. O texto traz uma crítica direta à Teologia da Libertação, classificando-a como uma ferramenta ideológica do marxismo que se infiltrara na Igreja Católica. Os autores alegavam que padres e bispos progressistas, inspirados por essa teologia, estavam incentivando a luta de classes, a desobediência civil e a revolução armada.

O documento defende a necessidade de conter essa influência teológica por meio de uma “reorientação cultural” que envolva o incentivo a formas alternativas de cristianismo. Embora o texto não mencione explicitamente o apoio a Igrejas evangélicas, a lógica subjacente é clara: a necessidade de promover formas de religiosidade anticomunistas, individualistas, “apolíticas” e alinhadas aos valores do “mundo livre” capitalista. 

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Igrejas evangélicas pentecostais se encaixam perfeitamente nesse perfil, pois enfatizam a salvação pessoal, a prosperidade individual, a autoridade bíblica e a rejeição de ideologias políticas consideradas subversivas.

O Santa Fé II, publicado em 1988, em pleno governo Reagan, reafirma e aprofunda essas diretrizes. O novo documento volta a criticar a Teologia da Libertação, classificando-a como ameaça à estabilidade política e à influência dos EUA na América Latina. Além disso, alerta para o papel das universidades católicas, ONGs e outras instituições ligadas à Igreja na difusão de ideias “marxistas”. A solução proposta segue na mesma linha: enfraquecer a influência dessas correntes através de um reforço da “guerra cultural”, promovendo valores tradicionais, religiosos e pró-Ocidente.

Embora os Documentos Santa Fé não defendam explicitamente o financiamento ou a implantação de Igrejas evangélicas, na prática, suas diretrizes são interpretadas e operacionalizadas por diversas agências e grupos com atuação direta. Missões evangélicas norte-americanas, como a Summer Institute of Linguistics (SIL) e organizações pentecostais como as Assembleias de Deus, receberam incentivos diretos e indiretos para expandirem sua atuação na América Latina, especialmente em regiões indígenas e pobres, tradicionalmente negligenciadas pela Igreja Católica.

O apoio envolvia desde isenções fiscais e vistos facilitados para missionários, até financiamentos por parte de fundações conservadoras estadunidenses. Essas Igrejas e missões foram encaradas como aliadas ideológicas por promoverem valores como disciplina, obediência, moralidade conservadora e anticomunismo. E sua penetração em comunidades carentes contribuía para desmobilizar movimentos de base influenciados pela Teologia da Libertação, desviando o foco da luta política para questões espirituais e individuais.

O ataque à Teologia da Libertação

A estratégia delineada nos documentos Santa Fé mostrou-se eficaz a médio e longo prazos. A partir da década de 1980, diversos fatores contribuíram para o enfraquecimento da Teologia da Libertação: a repressão por regimes autoritários, a censura do Vaticano sob o pontificado de João Paulo II, e a ascensão de lideranças eclesiásticas conservadoras em várias dioceses. 

A pressão estadunidense, tanto direta quanto indireta, também desempenhou papel importante. Ao mesmo tempo, o crescimento exponencial das Igrejas evangélicas transformava o panorama religioso latino-americano.

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O discurso dessas Igrejas, centrado na experiência pessoal de conversão, na promessa de prosperidade e na rejeição de ideologias políticas, contrasta com a proposta de transformação estrutural da Teologia da Libertação. Muitos fiéis encontram nelas uma alternativa mais imediata e emocional às suas angústias, ao mesmo tempo em que se afastam dos discursos de luta de classes e mobilização política.

O impacto dos Documentos de Santa Fé e da estratégia que inspiraram continua a ser sentido. A América Latina, que até meados do século XX era majoritariamente católica, passou a ter uma presença evangélica cada vez mais forte. Muitos países assistiram à ascensão de lideranças políticas vinculadas a Igrejas evangélicas, e que expressam uma visão de mundo fortemente conservadora e alinhada a valores tradicionais.

Além disso, o declínio da Teologia da Libertação abriu espaço para uma nova configuração religiosa e política, marcada por menor presença das Comunidades Eclesiais de Base e maior protagonismo de Igrejas com discursos centrados na prosperidade, no combate a “inimigos espirituais” e na negação da política como instrumento de transformação social.

Conclusão 

Os Documentos de Santa Fé I e II são mais do que simples relatórios de análise política. São instrumentos estratégicos que ajudaram a moldar o panorama religioso e ideológico da América Latina nas últimas décadas do século XX e neste início do século XXI. Ao identificarem a Teologia da Libertação como inimiga e defenderem uma reorientação cultural na região, contribuíram diretamente para a ascensão das Igrejas evangélicas como alternativa ideológica e espiritual. 

Embora não sejam a única causa desse fenômeno, desempenharam papel decisivo ao alinhar interesses geopolíticos, religiosos e culturais em uma frente comum contra o que era percebido como ameaça do “marxismo teológico”. O resultado foi uma profunda transformação no tecido religioso latino-americano – cujos efeitos continuam a reverberar até hoje.

(*) Frei Betto é escritor, autor de “Jesus revolucionário” (Vozes), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

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