Seis meses após o início do governo de La Libertad Avanza (LLA), o partido criado pelo líder de extrema-direita Javier Milei, a economia argentina está mergulhada na maior crise das últimas duas décadas. O “maior e mais abrupto reajuste da história da humanidade”, nas palavras do próprio presidente, paralisou a atividade econômica em quase todos os setores, e os protestos estão se multiplicando ao longo de todo o país.
Além das duas greves gerais convocadas pelos sindicatos e da grande marcha pela educação pública, que reuniu mais de 800 mil pessoas somente em Buenos Aires, os conflitos se espalharam por várias regiões e levaram a província de Misiones à beira do colapso social – enquanto Milei viajava para os Estados Unidos pela quarta vez –, onde a polícia também entrou em greve, reivindicando aumentos salariais e participando de marchas ao lado de professores, médicos e profissionais da saúde, bem como de outros trabalhadores do setor público.
Depois de alguns confrontos com as forças nacionais enviadas pela ministra da Segurança, Patricia Bullrich, a polícia local chegou a um acordo com o governo após duas semanas de greve. No entanto, no final de maio, o acampamento de professores e profissionais de saúde seguiu firme na capital da província, Posadas, acompanhado de bloqueios de estradas em toda a província, em uma rede de estradas que formam um corredor estratégico para a economia do Mercosul.
As “idas e vindas” sobre a Lei de Bases
Em seu primeiro semestre no poder, o governo de Milei não conseguiu obter a aprovação definitiva de nenhum de seus projetos legislativos. O DNU (Decreto de Necessidade e Urgência) 70/2023, um megadecreto através do qual o presidente de ultradireita pretendia transformar completamente o país sem sequer um debate parlamentar, foi impugnado primeiro pelo Judiciário em alguns de seus pontos mais polêmicos, como a reforma trabalhista, e o Senado rejeitou o projeto em meados de março por 42 votos contra e 25 a favor. Entretanto, essa situação gera grande insegurança jurídica, pois questões como a revogação da lei do aluguel podem permanecer no limbo até que se decida se essa mudança será definitiva ou não.
A nova versão “descafeinada” da Lei de Bases, ou Lei Ómnibus, rejeitada em fevereiro passado pelo Congresso, foi aprovada em 30 de abril pela Câmara dos Deputados com um total de 142 votos a favor e 106 contra. A abrangente lei reciclada pelo governo contém apenas 223 cláusulas, um terço das incluídas na proposta anterior, mas entre elas estão questões cruciais, como a delegação de poderes ao presidente para agir sem autorização do Congresso. Além do pequeno grupo de 38 deputados da coalizão governista LLA, votaram a favor todos os deputados do PRO – liderado pelo ex-presidente Macri –, 30 deputados da União Cívica Radical (UCR) e outros 18 do Hacemos Coalición Federal – uma tendência peronista de direita liderada por Miguel Ángel Pichetto. Os deputados da Unión por la Patria (UP, peronistas) votaram contra, assim como os quatro representantes da Frente de Izquierda (FIT, esquerda trotskista).
Em conjunto com a Lei de Bases, em abril, o governo obteve a aprovação na Câmara dos Deputados do chamado “pacote fiscal”, uma lei intitulada “Medidas fiscais paliativas e relevantes”, que contém 102 artigos e inclui, além da reforma trabalhista que o governo tentou introduzir pela DNU e que foi invalidada pelos tribunais, um Regime de Regularização Patrimonial, que “permitirá a lavagem de até 100 mil dólares sem penalidades, com uma alíquota de 0% sobre esse valor sob certas condições”.
A aprovação de ambas as leis no Senado dependia de acordos entre o governo e os governadores, que discordavam de certos aspectos da lei. O governo de Milei convocou os governadores para se reunirem em uma data simbólica, 25 de maio, mas não houve acordos prévios para selar o denominado Pacto de Maio.
No contexto dessa negociação política multipartidária, o presidente pediu a renúncia de seu chefe de gabinete, Nicolás Posse, em meio a acusações de espionagem contra o presidente e sua irmã Karina, secretária da presidência. Posse foi substituído pelo ministro do Interior, Guillermo Francos, que é bem versado em relação aos truques dos governadores, a fim de facilitar acordos no Senado que permitissem a aprovação da lei com o apoio daqueles que a aceitavam em geral, mas mantinham algumas objeções.
Finalmente, depois de ter feito concessões aos senadores de algumas províncias para obter os votos necessários, a Lei Fundamental foi aprovada pelo Senado em 29 de maio. Isso não significa sua aprovação final, pois o novo texto deve ser submetido novamente à Câmara dos Deputados.
Duas questões importantes e altamente polêmicas abordadas pela Lei Fundamental são a privatização de empresas estatais e o Regime de Incentivo a Grandes Investimentos (RIGI).
A lei reformulada implica na privatização de nove empresas públicas, quatro delas em sua totalidade: Aerolíneas Argentinas, Energía Argentina (Enarsa), Radio y Televisión Argentina e Intercargo. Outras cinco poderiam ser parcialmente privatizadas: Agua (AYSA), Correo Argentino, duas empresas ferroviárias e a rede rodoviária nacional. A urgência do governo em realizar esse programa de privatização é motivada por sua avidez de obter receitas em moeda estrangeira.
Outro aspecto importante da Lei Fundamental que o governo quer ativar o mais rápido possível é o RIGI, que prevê a concessão de enormes benefícios fiscais e cambiais a grandes empresas que investirem mais de 200 milhões de dólares no país. Os privilégios fiscais para grandes investidores são desproporcionais e colocam as empresas nacionais em uma enorme desvantagem competitiva. Embora os representantes de algumas províncias mineradoras, como Catamarca, tenham saudado a implementação desse regime “como um elemento facilitador para atrair investimentos”, nas palavras do senador Flavio Fama, para aumentar a extração de cobre e lítio, entre outros minerais, ou ainda que tenha havido apoio irrestrito à RIGI por parte do presidente da empresa petrolífera estatal YPF, outros setores econômicos poderosos, como o setor agroindustrial, representado pela Câmara da Indústria de Óleos Vegetais, se opõem à “concorrência desleal” que isso traria para seu setor.
Mas a principal crítica a esse regime vem dos sindicatos. Héctor Laplace, secretário geral da Associação Argentina de Trabalhadores da Mineração (AOMA), disse que o RIGI “é concorrência desleal, mas também é uma pilhagem dos recursos naturais argentinos”. Para ilustrar isso, ele comparou as isenções fiscais concedidas às grandes multinacionais com a carga tributária sobre a indústria nacional. No projeto de lei original, as empresas que investissem mais de 200 milhões de dólares estariam isentas do pagamento do IVA (21%), do imposto PAIS (17,5%), d imposto sobre renda bruta (6%), das taxas de exportação (16%) e das taxas de importação (13%), bem como de reduções no imposto sobre lucros(de 35% para 25%).
Recessão, desemprego e queda do poder aquisitivo
A economia real continua moribunda como resultado do tratamento de choque aplicado pelo governo ultraliberal. A inflação continua altíssima, embora em abril tenha sido de 8,8% e, pela primeira vez, não tenha atingido dois dígitos, mas o valor total acumulado nos primeiros cinco meses do governo de Milei é de 107%. O presidente comemora esses números como um sucesso diante de uma hipotética hiperinflação em marcha de cerca de 15.000%, sobre a qual ele especulou quando assumiu o cargo, atribuindo-a a seus antecessores. Diante desse panorama fantasioso, qualquer esforço para colocar a situação sob controle vale a pena, mesmo que seja ao custo de uma recessão brutal. O governo fala em queda da inflação, embora os preços continuem a subir em um ambiente de estagflação acentuada.
De acordo com os números oficiais, a atividade caiu 8,4% em março desse ano, em comparação com o mesmo mês do ano anterior. Em abril, as vendas no varejo caíram 7,3% em relação ao ano anterior e 18,4% no acumulado dos quatro primeiros meses do ano, de acordo com dados do Índice de Vendas no Varejo da Confederação Argentina de Médias Empresas (CAME). A queda na indústria em março foi de 17,2% em relação ao ano anterior, com a crise mais acentuada nos setor es automotivo e de construção, que caíram mais de 40%.
Além disso, os produtores nacionais estão sendo prejudicados pela tentativa do governo de reduzir a inflação por meio da importação de alimentos, o que representa um desafio para a produção doméstica, que, de qualquer forma, está hiperconcentrada em oligopólios de capital transnacional. A recessão já se traduz em uma perda de empregos formais de 240 mil pessoas no final de março, com o principal impacto na indústria e nos serviços.
A intensidade do ajuste é especialmente sentida entre os aposentados, que perderam 37% de seu poder de compra com um salário mínimo. O ajuste também tem um impacto decisivo sobre os salários, que, de acordo com números de empresas de consultoria privadas citadas pelo jornal La Nación, caíram 17% em comparação com outubro de 2023. E isso apesar do aumento de 15,53% no Salário Mínimo Vital e Móvel anunciado pelo governo, já que o salário médio em março atingiu um aumento anual de 194%, enquanto a inflação foi de 288%. Até mesmo os analistas mais conservadores confirmam que não haverá aumento salarial significativo até que a inflação seja reduzida para 1% ou 2% ao mês.
Rejeição social às políticas de ajuste
Embora o presidente Javier Milei continue apresentando uma imagem positiva nas pesquisas, com uma avaliação favorável de mais de 45%, os protestos de muitos setores sociais afetados pelas políticas de seu governo têm aumentado. Um mês após a grande passeata do Dia Nacional da Memória pela Verdade e Justiça, comemorado todos os anos em 24 de março, data do último golpe militar, foi realizada uma passeata universitária em 23 de abril contra as políticas do governo de Milei de desfinanciamento da educação pública. Essa grande manifestação em favor da universidade pública reuniu mais de 800 mil pessoas somente na cidade de Buenos Aires e foi massiva em todo o país. Foi um ato intergeracional em defesa da universidade “pública, gratuita e de qualidade” que ultrapassou as previsões de participação do governo e dos próprios organizadores, constituindo um ponto de inflexão no ânimo coletivo em relação à extensão da rejeição social que as políticas ultraliberais de Milei estão provocando.
O movimento de protesto seguinte ocorreu em 1º de maio, Dia do Trabalhador, com uma grande marcha contra a redução dos direitos trabalhistas e outras medidas incluídas na DNU e na Lei Básica que afetam diretamente os trabalhadores do Estado, como as demissões e o desmantelamento geral do setor público. Os sindicatos convocados – a CGT, as duas CTAs e a UTEP – também lançaram uma campanha para coletar assinaturas pela revogação da DNU.
Em 9 de maio, houve uma segunda greve geral convocada pelos principais sindicatos contra a política econômica do governo de Javier Milei, em especial contra a Lei de Bases. Essa greve foi antecedida por outra greve que durou metade do dia 22 de janeiro, também convocada pela CGT e por outros sindicatos, que serviu como um alerta ao governo 40 dias após o início de seu mandato. O apoio à greve geral de 9 de maio foi generalizado, com a interrupção total de todos os meios de transporte, afetando totalmente a indústria e os serviços, bem como os sindicatos de educação e saúde, especialmente no setor público. Embora o governo tenha negado a real extensão do protesto, as ruas de cidades como Buenos Aires estavam absolutamente desertas.
A intensidade do conflito na província de Misiones e a falta de interesse do governo em encontrar uma solução política poderiam significar o início da erosão do prestígio de Milei entre muitos de seus apoiadores diretos e indiretos. Misiones é uma província com importantes recursos – agrícolas, florestais e turísticos – concentrados em poucas mãos, com enorme desigualdade social e, portanto, altamente dependente de recursos estatais. Ela também foi a mais afetada pelo reajuste nos repasses de verba nacionais, apesar de seu governador ter feito pressão a favor da Lei de Bases.
Os conflitos sobre cortes orçamentários se alastraram para outras províncias. Em Mendoza, funcionários do judiciário entraram em greve exigindo a recomposição de seus salários. No sul, várias províncias da Patagônia entraram com uma ação coletiva para impedir os aumentos nas tarifas de gás, que para alguns usuários residenciais e comerciais ultrapassaram 1.000% em abril, de acordo com o governador de Santa Cruz, o ex-sindicalista Claudio Vidal, que levou o caso à Suprema Corte.
Nesse contexto de confronto entre as províncias e o governo federal, a tentativa fracassada de Milei de selar um pacto com os governadores em 25 de maio foi outra demonstração de sua falta de habilidade política e distanciamento da realidade. Ele não apenas fracassou, mas nesse dia teve que ouvir as reprimendas do arcebispo José García Cuerva no Te Deum celebrado todos os anos nessa data na Catedral Metropolitana.
Na presença dos principais funcionários do governo, da vice-presidente e de todos os ministros, o arcebispo se referiu em sua pregação à situação extrema do país e não poupou críticas aos aumentos salariais que os novos funcionários do governo e os membros do Congresso concederam a si mesmos. Como o Papa fez em várias ocasiões, o Arcebispo de Buenos Aires pediu aos argentinos que evitem o discurso de ódio e superem a divisão política.
Alguns dias antes, uma pesquisa da UCA indicou que, durante o primeiro trimestre, a pobreza atingiu 55% da população – com um pico de 58% em fevereiro – e que 18% dos argentinos estavam em situação de indigência. Nesse contexto delicado causado pelo ajuste, o Ministério do Capital Humano, liderado por Sandra Pettovello, foi denunciado por não entregar alimentos às cozinhas sociais, e um juiz federal emitiu uma liminar exigindo um cronograma de execução, depois de verificar a existência de 5,9 mil toneladas de alimentos armazenados em dois armazéns comprados pelo governo anterior, alimentos que, em muitos casos, estavam prestes a sair da validade. O escândalo dos alimentos estocados, depois de ser denunciado judicialmente pelo líder social Juan Grabois, levou à demissão imediata do número dois do Ministério, Pablo De la Torre, secretário da Infância e da Família, e revelou um esquema de corrupção no qual ele e outros funcionários do governo enriqueceram com um circuito de arrecadação ilegal por meio de um sistema de pagamento de salários apessoal fictício mediante contratos com a Organização dos Estados Ibero-Americanos (OEI).
A denúncia da falta de alimentos nas cozinhas sociais, que atendem gratuitamente aos indigentes ou àqueles com necessidades não atendidas, tem sido uma constante desde os primeiros dias de um governo que preferiu perseguir e estigmatizar os líderes sociais que lidam com as dificuldades da população mais pobre, em vez de resolver a fome cada vez mais palpável. A insensibilidade de Milei com relação a isso é evidente. Ao ser questionado por um jornalista sobre o aumento dos preços e a falta de alimentos nas cozinhas sociais, o presidente disse que “se as pessoas não conseguissem pagar as contas, estariam morrendo nas ruas”.
Mais tarde, ele demonstrou insensibilidade semelhante diante de uma plateia na Universidade de Stanford: “Você acha que as pessoas são tão estúpidas que não conseguem se decidir? Chegará um momento em que elas morrerão de fome, em que, de alguma forma, decidirão não morrer. Portanto, não preciso que alguém intervenha para resolver a externalidade do consumo, porque, no final, alguém a resolverá”.
Naqueles dias, com a província de Misiones à beira de um colapso social, Milei apresentou exultante seu último livro no Luna Park, em Buenos Aires, com um show espetacular, no qual cantou uma música que previa a proximidade de um colapso social e dissertou sobre a economia a partir de sua realidade paralela.
Uma economia quebrada
Milei dedicou meio ano à improvisação financeira em sua ambição de acumular dólares, repetindo velhas receitas econômicas do ministro da Economia Luis Caputo, que já haviam fracassado durante o governo Macrista e levaram a uma enorme dívida que hipotecou o futuro do país. Vários analistas confiáveis concordam que o governo de Milei já está endividado em mais de 30 bilhões de dólares, e Caputo está começando a ser questionado publicamente por sua incapacidade de atrair investimentos e obter mais dólares do que o estritamente necessário para cumprir os pagamentos da dívida anterior com o FMI.
Talvez para disfarçar a situação da dívida, o governo transferiu as emissões de dívida do Banco Central para o Tesouro e, ao mesmo tempo, reduziu as taxas de juros dos títulos que os bancos haviam acumulado – transações compromissadas de um dia para o outro – de 80% para 40%. Esse último corte representou o destino fatal da “bicicleta financeira” que o ministro da economia, Luis Caputo, havia tentado implementar sem muito sucesso nos meses anteriores, com base na estabilidade da taxa de câmbio.
Nas três primeiras semanas de maio, o dólar paralelo subiu para 1.300 pesos por unidade, um aumento de 30%, e no final de maio estava acima de 1.200 pesos. Antes dessa corrida cambial contra um peso indiscutivelmente supervalorizado, Milei havia garantido que não faria uma desvalorização, mas a diferença entre o valor do dólar oficial e do dólar paralelo mais do que dobrou, e é provável que ele tenha que reconsiderar essa possibilidade, pelo menos se pretender suspender os controles e liberar definitivamente a taxa de câmbio. Como de costume, a corrida do dólar ilegal foi acompanhada de um aumento significativo do “risco-país” e de uma queda generalizada no valor dos títulos da dívida argentina. Por sua vez, uma nova desvalorização do peso provocaria outra rodada de inflação.
Ao mesmo tempo, a compra de dólares pelo Banco Central foi reduzida e a liquidação de moeda estrangeira por parte setor de agroexportador está em níveis historicamente baixos, pois seus proprietários esperam retornos maiores após uma hipotética desvalorização. Dessa forma, e na ausência de investidores estrangeiros e de novos créditos, a acumulação de reservas almejada pelo governo parece ter estagnado e pode até regredir, apesar do ajuste inicial que levou a economia ao seu estado vegetativo atual.
A viabilidade do programa econômico ultraliberal ensaiado durante os primeiros seis meses do governo de Javier Milei é colocada cada vez mais em dúvida. O governo afirma que o investimento estrangeiro virá quando o marco jurídico que o favorece, especialmente a Lei de Bases, for aprovado. E a redução das taxas de juros, seguida pela revalorização do dólar, pôs freio ao mecanismo da “bicicleta financeira” com o qual Caputo tentou ganhar tempo atraindo capital de curto prazo com altos rendimentos às custas do Estado, sem muito sucesso. A última corrida o lembrou de como seria fácil para todo o castelo de cartas financeiro que o governo constrói ao emitir dívida em dólares desmoronar sob o impacto das corridas cambiais.
O descontentamento está em ascensão entre a classe trabalhadora e os funcionários públicos, estudantes e profissionais da saúde, além de amplos setores da classe média desfavorecidos de uma ou outra forma. Em sua ânsia de acumular moeda estrangeira, o governo está abrindo novos conflitos com setores econômicos poderosos, como as empresas de energia. Para pagar a dívida do Estado contraída nos últimos meses, ele ofereceu um título (em dólares) com vencimento em 2038. A decisão de cancelar parte da dívida do Estado com títulos, em um total de 1,2 bilhão de dólares, gerou tensões entre o governo e as empresas de transporte de gás e energia, em especial com a Compañía Administradora del Mercado Mayorista Eléctrico (Cammesa) e seus fornecedores. Esses importantes participantes do mercado de energia – interconectadas com as empresas de petróleo – acusaram o governo ultraliberal de violar os princípios básicos da liberdade de mercado, interpretando essa mudança na forma de pagamento como um confisco. Ao mesmo tempo, essas empresas seriam as principais beneficiárias das políticas de desregulamentação e privatização do setor de hidrocarbonetos que o governo está implementando com sua nova legislação de investimentos.
No final de maio, com a chegada das baixas temperaturas do início do inverno, foi declarada uma situação de “pré-emergência” e o fornecimento de gás às 100 maiores empresas industriais foi interrompido para garantir o fornecimento às residências e “o funcionamento do sistema elétrico nacional”, de acordo com o interventor do Ente Nacional Regulador del Gas (Enargas). Em 29 de maio, enquanto Milei viajava pela quarta vez aos Estados Unidos, seu governo ordenou a interrupção da venda de gás natural comprimido (GNC) para o transporte automotivo, o que causou longas filas de usuários nos postos de abastecimento, principalmente taxistas que usam esse combustível intensivamente e tiveram que interromper suas atividades.
Essa situação de escassez de gás é um duplo paradoxo. Por um lado, a Argentina tem proclamado nos últimos anos sua capacidade de se tornar um dos maiores produtores e exportadores de gás, o que implicaria uma entrada significativa de moeda estrangeira e, por outro lado, o preço do gás subiu para cifras astronômicas desde que o governo ultraliberal retirou os subsídios para o consumo doméstico e permitiu a liberalização das tarifas.
A origem do problema é atribuída à decisão presidencial de interromper as obras públicas, deixando a conclusão de duas usinas de compressão do gasoduto Néstor Kirchner, que transporta gás do campo de Vaca Muerta, sem financiamento. De acordo com os técnicos, essas duas plantas de compressão teriam dobrado a capacidade do gasoduto de 11 para 22 milhões de metros cúbicos de gás. Mais uma vez, a obsessão com o superávit fiscal e a redução dos gastos públicos colocou o país em uma situação difícil. De acordo com várias fontes da mídia, o corte dos 40 milhões de dólares que teriam custado para dobrar a capacidade do gasoduto levaram a um gasto de 400 milhões de dólares em importações de gás liquefeito. Imediatamente, para aliviar a situação, foi feito um pedido urgente à Petrobras do Brasil para um carregamento de GNL (gás natural liquefeito), o qual a empresa enviou para um porto argentino, mas se recusou a descarregar até que o pagamento antecipado pela operação fosse comprovado. Muitos jornalistas apontaram esse atraso no fornecimento em uma situação de aperto como consequência do esfriamento das relações entre o Brasil e a Argentina, após os insultos de Milei ao presidente Lula da Silva durante a campanha eleitoral.
Milei compartilha muita da bagagem ideológica de outros líderes de extrema-direita, como Donald Trump ou Jair Bolsonaro. Mas há uma distância abismal entre o nacionalismo econômico desses dois ex-presidentes, que nunca incentivaram a submissão de seus países à vontade do capital transnacional, e o anarcocapitalismo apátrida de Milei – digo sem conotação pejorativa, apenas como uma descrição de sua ideologia explícita.
Apesar de tudo isso, a imagem pública de Javier Milei até agora não se deteriorou de forma proporcional ao desastre socioeconômico no qual o país está afundando. É evidente que muitos de seus apoiadores aceitam com resignação e, às vezes, com entusiasmo masoquista, as dificuldades causadas por suas políticas econômicas. Muitos esperam que seus esforços contribuam para uma nova era de prosperidade, não tanto coletiva quanto individual, que, no entanto, parece estar muito distante.
O apoio entre os jovens que votaram em Milei continua alto, alimentado em grande parte por sua forte presença nas redes sociais e seu discurso sempre transgressor e disruptivo, politicamente incorreto. Querendo ou não, grande parte da população argentina continua aos pés do autoproclamado “Leão da motosserra”, que veio para demolir o Estado e desmantelar todas as normas e vínculos sociais preestabelecidos mas, em vez disso, comanda a política e a economia argentina do palco de sua atuação deslumbrante: Panic Show.
(*) Tradução de Raul Chiliani