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EUA: O Macartismo e a pós-verdade na nova Guerra Fria

Um mês após as eleições, o establishment nos EUA não parece ter conseguido engolir a derrota amarga que sofreu. Cunhou até um novo termo: pós-verdade.
por Pedro Marin | Revista Opera (Foto: Gage Skidmore)
(Foto: Gage Skidmore)

Contrariando os Democratas, a imprensa, as pesquisas e até mesmo o núcleo-duro de seu próprio partido, Donald Trump foi eleito, no último mês, presidente dos Estados Unidos da América.

Antes mesmo dos democratas mais histéricos terem tempo de secar suas lágrimas, as ruas de diversas cidades do país já estavam tomadas por manifestações contra o republicano – em poucos dias, mais de trinta cidades já contavam com atos contra Trump. Foi a partir deste momento, e não no dia 8, quando os americanos foram às cabines de votação, que se iniciava a disputa pelo futuro dos EUA e, em grande parte, do mundo.

À pressão das ruas somou-se também a internacional. Uma semana após a eleição, por exemplo, o secretário-geral da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), Jens Stoltenberg, teve uma “boa conversa” com Trump, como ele mesmo (Stoltenberg) descreveu, sobre a “importância duradoura” da aliança, o que parece ter sido entendido pelos parceiros internacionais dos EUA como uma freada nas propostas de diminuir a estrutura “defensiva” do país no mundo. Cinco dias antes, o republicano havia discutido a questão Síria com o presidente russo Vladimir Putin, sinalizando o desenvolvimento de melhores relações entre a Rússia e EUA.

Ocorre que já se passou um mês desde que as movimentações começaram, e o establishment norte-americano não parece ter conseguido engolir a derrota amarga que sofreu. A imprensa, em conluio com o partido democrata, o núcleo duro do partido republicano e a elite financeira daquele país, tem tentado tão desesperadamente procurar uma razão para a derrota de Hillary Clinton que cunhou até um termo, premiado neste ano como “palavra do ano” dos Dicionários Oxford: pós-verdade.

Em um artigo recente, o jornalista Neil Clark explica do que se trata: são “notícias falsas”, espalhadas por blogs obscuros ou pequenos veículos de mídia, que teriam sido os responsáveis pela eleição de Trump e a vitória do Brexit, na Inglaterra. O jornalista arremata: “As pessoas e os veículos que mais alertam contra os perigos das ‘falsas notícias’ e da ‘política pós-verdade’ são os maiores disseminadores repetidores de ‘falsas notícias’ e da ‘política pós-verdade’ que jamais houve. É como ouvir lições da boca de Al Capone sobre a imoralidade do contrabando; ou o corcunda de Notre Dame a exigir que todos se sentem com costas retas.”

Ao arsenal da pós-verdade o establishment agora adiciona o Macartismo dos anos 50, e avança na tese (usada ainda durante as eleições) de que a Rússia “interviu nas eleições”. Diz a quarta matéria mais lida da agência de notícias Reuters no final de semana: “Analistas da inteligência norte-americana concluíram que a Rússia interviu nas eleições de 2016 para ajudar o presidente-eleito Donald Trump a vencer [a disputa] à Casa Branca, e não só para destruir a confiança no sistema eleitoral dos EUA, um oficial sênior dos EUA disse na sexta-feira.”

A acusação, feitas por oficiais que (mais uma vez) falam à Reuters sob a condição de anonimato, é de que a Rússia “devotou crescente atenção a ajudar no esforço de Trump para vencer a eleição”, com o apoio de “indivíduos com conexões com o governo russo que proveram milhares de emails hackeados do Comitê Nacional Democrata e outros, incluindo os do líder da campanha de Hillary Clinton”.

Aqui devemos prestar atenção. Que conexões esses supostos indivíduos têm com o governo russo? Talvez tenham recebido em casa uma edição do Pravda, como o pai de Milo Radulovich, trabalhador de origem sérvia que foi perseguido durante a época de ouro do Macartismo por “manter conexões” com seu pai e sua irmã, o primeiro visto como um simpatizante comunista por ter lido um jornal eslavo considerado pró-comunista, a segunda por ter participado de um piquete em um hotel de Detroit.

De qualquer maneira, o “relatório secreto” da CIA sobre a intervenção russa foi apresentado a senadores Democratas e Republicanos, que pressionaram por uma investigação detalhada. Obama, na sexta, ordenou que as agências de inteligência o façam e que concluam um relatório até o dia 20 de janeiro, quando ele deixa a Casa Branca.

A polêmica, mais uma vez, expõe a hipocrisia do establishment norte-americano (talvez um reflexo clássico da pré-verdade dos últimos 50 anos?). Distraídos com as letras garrafais dos jornais sobre a nova “Ameaça Vermelha”, a tendência é que esqueçamos de questionar: o que são, afinal, os emails supostamente divulgados por agentes russos? Qual é o conteúdo tão fortemente resguardado pelo polemismo?

Os emails do Comitê Nacional Democrata (DNC) revelaram que funcionários da DNC teriam formado um conluio para prejudicar a campanha do então candidato às primárias do partido, Bernie Sanders, e atacá-lo com base nas suas convicções religiosas. A divulgação dos emails levaram à renúncia de diversos representantes do partido, incluindo da então presidente do Comitê Nacional Democrata, Debbie Wasserman.

Já os emails do presidente de campanha de Hillary Clinton, John Podesta, revelam que a então vice-presidente do Comitê Nacional Democrata, Donna Brazile, que também era comentarista na rede de televisão CNN, concedeu à campanha de Clinton acesso a uma pergunta que posteriormente foi usada em um debate entre a candidata e Bernie Sanders no canal televisivo. O caso levou à demissão de Donna Brazile da CNN. Questionada pela rede em outubro, Brazile disse que “isso é exatamente o que os russos pretendem fazer. E eles estão fazendo.”

Um outro email revela que um oficial sênior do Departamento de Justiça encaminhou uma mensagem dando um “aviso” ao presidente da campanha de Hillary, John Podesta, sobre a divulgação de emails da candidata pelo Departamento de Estado, após uma investigação ter sido iniciada por Hillary ter usado emails privados para tratar de assuntos do Estado norte-americano quando ainda era Secretária de Estado.

Agora o factoide nas manchetes é a suposta tentativa russa de “prejudicar a confiança no sistema eleitoral norte-americano” e “intervir para eleger Trump”, como se instituições do Partido Democrata prejudicando seus próprios pré-candidatos, funcionários do Departamento de Justiça “avisando” a campanha sobre possíveis crises políticas e funcionários de campanha obtendo perguntas posteriormente usadas em debates não fossem provas suficientes de que, de fato, não se deve ter confiança no sistema eleitoral norte-americano.

Se a Rússia de fato teve alguma participação nisso – e as acusações da CIA devem ser provadas, a público, e não apresentadas em reuniões fechadas – esta “ajuda” consistiu somente em divulgar o efetivo ataque ao sistema democrático por parte de Hillary e sua campanha.

Tudo isso parece uma reedição do escândalo com o governo norte-coreano em relação ao filme “A Entrevista”, no ano passado. À época, o FBI considerou que hackers norte-coreanos haviam realizado um ciberataque contra a empresa, o que motivou a aplicação de sanções contra o país. Diversos especialistas em segurança virtual denunciaram a falta de provas concretas no relatório do FBI, em vão. Alguns meses depois, emails da companhia foram vazados pelo Wikileaks – entre eles, revelamos à época, havia um enviado pelo oficial do Departamento de Estado Richard Stengel ao CEO da empresa, Michael Lynton, solicitando ajuda para criar “contra-narrativas” ao Estado Islâmico e à Rússia. Ao contrário do suposto ataque norte-coreano, que não foi provado e que teve suas evidências criticadas arduamente por especialistas, a comprovada solicitação do governo norte-americano para que o estúdio o auxiliasse não foi manchete.

O mais cínico, no entanto, é o governo norte-americano acusar outro país de intervir em questões internas, em defesa de uma candidata que auxiliou durante anos, quando era Secretária de Estado, os “rebeldes” sírios, e que teve participação direta no colapso da Líbia, até então responsável pelo melhor Índice de Desenvolvimento Humano da África, mas que hoje, após o assassinato do líder Muammar Gaddafi, é um não-estado destrúído por uma verdadeira guerra civil.

O establishment segue culpando a Rússia por três motivos: o primeiro; escalar a tensão com o país. O segundo; abrir precedentes pra uma derrubada de Trump, com a subida do guerrista Pence (ou, se somado à recontagem de votos, de Hillary). O terceiro; negar que Hillary perdeu por ter sido, abertamente, a candidata dos ricos, dos drones, da guerra e da intervenção.

Trump respondeu bem: essas são as mesmas pessoas que disseram que Saddam Hussein tinha armas químicas. Em meio a todo este escândalo, ressoa o protesto do Corcunda: “Isso não é postura!”

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