Nos esplendores da maré montante neoliberal, o caricato presidente da Argentina, Carlos Menem, era tido por essas bandas como “exemplo de gestão”, espelho para toda a América Latina, Ásia, África, Oceania e até mesmo para a Europa, especialmente para os países do Leste do continente. E para o Universo, caso houvesse na infinitude vida inteligente.
Lembram-se?
Miriam Leitão, entre outros 492 comentaristas econômicos do complexo Rede Gobo-O Globo-CBN-G1, arrancava de Fernando Henrique Cardoso suspiros ciumentos, tais os comentários encomiásticos e apologéticos endereçados ao mandatário vizinho.
Depois de dolarizar a Argentina, delirante com o próprio feito, Menem teve um surto político-geográfico ao pedir a afiliação do país ao Tratado do Atlântico Norte, a OTAN, uma aliança forjada pela Guerra Fria e que reúne, ainda hoje, os países do… Atlântico Norte. E queria mandar soldados para o Iraque, o Afeganistão, aos Balcãs, solidário com as guerras do império.
Nem isso serviu para que os coleguinhas jornalistas do “Clarín”, do “Globo, do “Estadão” e equivalentes moderassem a celebração do governo Menem. A destruição da Argentina como nação e sua absoluta e radical submissão à globalização neoliberal contava mais que qualquer surto de grandeza do “Gardelon”.
Bom, as senhoras e os senhores conhecem o enredo e é desnecessário recapitular o que sucedeu à Argentina e a Carlos Menem, e o que custou ao nosso vizinho reaprumar-se. Até hoje, são fundas e dolorosas as marcas da passagem de Menem pela Casa Rosada e o seu desatino, o desvario de fazer da Argentina um apêndice, um estado-associado dos Estados Unidos.
Mas, eis que, também a má fortuna, as desditas e a má andança da história destinam-nos uma presidência caricata, um governo de fancaria, bafejado e nutrido pelos mesmos miasmas que encantaram o formidável quarteto de governantes latino-americanos que fizeram da dependência de seus países causa suprema.
Menem, Fernando Henrique Cardoso, Salinas de Gortari, Fujimori, quem os há de esquecer?
Mas essa contrafação de governo que temos hoje, conquanto toda a sua ilegitimidade original, e talvez por isso mesmo, avança um passo além na renúncia à soberania nacional.
Não se trata de ceder Alcântara para os Estados Unidos, de vender terras para estrangeiros, ilimitadamente, de entregar o petróleo do pré-sal, de alienar as reservas minerais, de destruir a ciência e a tecnologia nacionais, de arrasar com a indústria brasileira, de primarizar a economia nacional.
Esse governo quer mais
Quer agora a adesão do Brasil à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE. Quer que sua submissão ao mercado seja oficialmente reconhecida, certificada, carimbada com a admissão na OCDE.
Se Temer, em sua simploriedade e jequice vê o ingresso na OCDE como o novo rico que se candidata a sócio do Country Club do Rio de Janeiro, bem mais complexas e espertalhonas são as intenções de Meirelles e Goldfajn.
Ao mesmo tempo em que eles cutucam o provincianismo e a vaidade do presidente, que adoraria ver-se fotografado entre os chefes de Estado dos 35 países mais ricos do mundo, a dupla de banqueiros que manda no país tem outros planos.
O que é afinal a OCDE? Por que o Brasil sempre relutou em aderir plenamente à organização?
E por que, agora Temer et allia pedem a inscrição?
A OCDE talvez pudesse ser classificada como o braço político da OTAN, cujo objetivo inicial foi o de conter o “perigo eslavo”, depois da Segunda Guerra Mundial. Aliás, a OCDE surge antes da OTAN, um ano antes.
Ao inscrever como seus princípios básicos a defesa da democracia representativa e da economia de livre mercado, a organização delimitou claramente as suas fronteiras e foi uma parceira militante na luta contra o chamado “mundo comunista”, os movimentos de libertação nacional, o terceiro-mundismo, os países não-alinhados. A tudo, enfim, que escapasse das garras imperiais.
Na guerra nem sempre fria com o Leste, desenvolvia também um lado, digamos, lúdico, premiando, inspirando e estimulando dissidentes.
Ruído o muro, a OCDE adapta-se, deixa a luta anticomunista de lado para se concentrar na defesa da economia de mercado e da tal democracia representativa. Desde que essa tal democracia representativa, é claro, representasse os interesses do capital.
Ah, sim. Em seus gloriosos tempos de “a voz mundial da democracia”, nos anos 50, 60, 70, 80, o OCDE não dava um pio contra as ditaduras que desgraçavam a América Latina, a África, a Ásia.
Os assassinatos de Patrice Lumumba no Congo, a execução de Abdul Karim Kassem no Iraque e, ousadia suprema, o assassinato do secretário geral da ONU, Dagg Hammarskjold, por ação conjunta Estados Unidos-Inglaterra-França e Bélgica; os golpes-genocídios no Chile, na Guatemala, na Nicarágua, na Indonésia, na Argentina, no Peru, no Vietnã, no Laos e no Camboja; o golpe de 64 no Brasil, a deposição de Mossadegh no Irã, são exemplos de atentados contra a democracia e a soberania nacional olimpicamente desmerecidos pela OCDE.
Já os movimentos de 58 na Hungria, 68 na Tchecoslováquia, de 79/80 na Polônia, esses sim foram ribombados pela Organização.
Hoje, se a Guerra Fria política derreteu-se, a Guerra Fria econômica mantém-se ativa e tem na OCDE um de seus bastiões. Tudo bem que a OCDE, ao contrário do FMI e do Banco Mundial, não pode impor políticas de austeridade aos seus consorciados.
No entanto, a adesão à Organização pressupõe isso. Mesmo porque, declaradamente, o governo Temer/Meirelles/Goldfajn quer que os brasileiros vejam na entrada do país no exclusivíssimo clube da OCDE como o reconhecimento mundial à política econômica em vigência.
Esse ingresso na Organização seria uma espécie de “selo de qualidade”, um “nihil obstat” dado pelo mercado internacional às reformas trabalhista, da previdência, ao teto de gastos, à entrega ao estrangeiro do petróleo e dos minérios, à transnacionalização de toda nossa economia.
Rejeitado por mais de noventa e cinco por cento dos brasileiros, o governo Temer busca as bênçãos dos 35 países mais desenvolvidos do mundo que nada mais querem que a nossa submissão à globalização financeira.
A alegação do Itamaraty e da Fazenda de que a inscrição do país na OCDE vai favorecer a atração de investimentos estrangeiros para a nossa economia, faz-me lembrar aquele rapaz da Riachuelo proclamando que no dia seguinte à deposição da presidente Dilma a economia brasileira daria um salto e na pátria bem-amada correria leite e mel.
Segundo alguns analistas, a entrada na OCDE poderia, eventualmente, vir acompanhada da exigência de que o país se afastasse do G77+China, que reúne, sob a liderança do Brasil, países em desenvolvimento e países pobres. Foi exatamente essa liderança do Brasil sobre o G77 que nos deu a projeção internacional de anos atrás.
Com essa liderança, o Brasil pode sentar à mesa dos grandes, dos 20 mais ricos, dos 35 mais ricos, dos sete mais ricos.
Mas como o novo Itamaraty, os banqueiros Meirelles e Goldfajn, e o deslumbrado presidente da República não gostam de pobres, querem ver o nosso país afastado da África, da Ásia, da América Latina e Caribe, da Ásia e da Oceania, renunciando o protagonismo na política internacional, para se transformar em um lambe-botas dos ricos.
A economista norte-americana Deborah James, diretora dos programas internacionais do Centro de Pesquisa Econômica e Política, com sede em Washington, e uma das mais respeitadas críticas mundiais da globalização imperial, comenta:
“Até pouco tempo o Brasil era o líder da região e lutava para construir uma unidade entre os países em desenvolvimento […] Após o golpe de Estado, o país abandonou totalmente suas pretensões de ser o líder do sul. Abriu mão de liderar a América do Sul em discussões comerciais, afastando-se do Mercosul e alinhando-se com ênfase aos interesses dos Estados Unidos”.
Mais claramente: com Temer, estamos tendo uma recaída no complexo de vira-lata, o que imaginávamos haver sido exorcizado.
*Roberto Requião é senador da República no segundo mandato. Foi governador do Paraná por três mandatos, prefeito de Curitiba, secretário de estado, deputado estadual, agricultor, industrial, advogado e oficial do Exército Brasileiro. É graduado em direito e jornalismo com pós-graduação em urbanismo e comunicação.