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Dor e delícia do desatino carnavalesco

Escola de samba é, antes de tudo, uma saga de bravos e, vá lá, inconsequentes.

por Fábio Fabato | Revista Opera
(Fernando Frazão/Agência Brasil)

O amor pelo carnaval, estranhamente, tem a ver com detalhes que merecem críticas. A concentração dos componentes, por exemplo, delineia um complicado ângulo de 90 graus no enlace etéreo da Avenida Presidente Vargas e a Marquês de Sapucaí, palco maior dos desfiles das escolas de samba do Rio. Uma curva – para os íntimos, “joelho” – que é o terror no quesito segurança e, em 2017, sofremos demais nesse trecho: a morte da radialista Liza Carioca, atropelada por uma alegoria, foi um atravessamento de samba que ainda segue engasgado. Mas quem negará a beleza bruta do heroísmo de fazer dobrar milhares sem ensaio geral, jogando-os num abismo sensorial tão sui generis?

Escola de samba é, antes de tudo, uma saga de bravos e, vá lá, inconsequentes. Na formação e na coisa em si. Este rio de cores que precisa fazer seu curso se espalhar em outro rio, e com tempo contado, descreve o desatino quase secular que as pautas conservadoras vigentes terão dificuldades para colocar fim. Afinal, o espetáculo que se ergue como chama para ser cinza ao término de tudo nasce fundamentalmente da dúvida.

E é por isso que contra muitos, inclusive contra as idiossincrasias das próprias agremiações, segue de pé desde 1932 – divã social onde o Brasil se processa e segue adiante. Eis um coletivo tão improvável que, na sanha de grito de alerta de regiões esquecidas, certo dia, batizaram sem água benta como “Maior Espetáculo da Terra”. Pelo menos em discurso. E na tarefa, ingrata de tudo, de comer e sobreviver em 361 dias, salpicou, na contramão da História, um tempero próprio para sua receita encantar além dos domínios comunitários, e sem desandar ao sabor das décadas. Assim foi. Aos trancos, no rebolado, financiado no obscurantismo. Incoerência per se, cá pra nós, e que espelha o Brasil, esse Gigante das misturas, mas forjado em Capitanias de poucos sócios.

Acontece que hoje o coração, também o do povão, ficou frio para as escolas de samba. Uma falha sem dono único, distribuída irmãmente entre sambistas, governo, e na conta até mesmo da visão histórica deturpada sobre o valor da cultura popular: acima da linha do Equador, é artigo de luxo. Aqui, é peça de segunda mão – de sangramento impiedoso quando se aventam cortes.

Ora, o prefeito Marcelo Crivella inventou a dicotomia carnaval versus educação, como se não houvesse complementaridade real na relação de ambos, e cortou 50% da verba municipal anual para as escolas de samba. As agremiações ainda patinam na zona do agrião da necessária gestão empresarial, aliada ao entendimento de que sobrevivem há quase 100 anos porque são entidades transmissoras de saberes ancestrais omitidos pelos livros didáticos, mas pulsantes no peito brasileiro.

A festa dos paradoxos nunca foi tão falada, mas porque está num impasse. Contraditório cenário como ela, não? Ao chegar à quarta-feira de cinzas, urge um mea-culpa generalizado e debates perenes para que saiamos do nó acerca de recursos e representatividade. Mas o começo do resgate se faz com arte. Na pista.

Desconfio que, em 2018, haverá a maior folia deste século até agora justamente porque há um tsunami no sentido oposto: essencialmente, são as melhores ondas para quem sente e surfa o País com quatro mil corações. Mas certas lições recentes não podem ser esquecidas, sob o risco de morrermos – com pandeiro ou sem pandeiro –, na praia.

*Fábio Fabato é jornalista e escritor

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