Pesquisar
, ,

Samantha Power não precisa de um guarda-chuva

No documentário "The Final Year" a declaração de que o direito à vida e à verdade, em meio à guerra, será exclusivo aos norte-americanos.

por Pedro Marin | Revista Opera
(Foto: Motto Pictures / Cortesia)

Assisti recentemente ao documentário “The Final Year”, que teve sua estreia nos Estados Unidos em janeiro passado. Produzido pela HBO, o filme tem como objetivo expor a política externa norte-americana do último ano do governo Obama, tendo em seu elenco figuras um tanto quanto fora do comum: Barack Obama, John Kerry, Ben Rhodes e Samantha Power.

Trata-se, sem dúvidas, de uma proposta interessante, que poderia ser bem aproveitada por alguém disposto a cobrir a política externa norte-americana e seus reflexos, e não por alguém ordenado a produzir uma peça de propaganda.

“Eu fui um dos que se inspiraram com aquele discurso. E imediatamente decidi que minha meta era trabalhar para ele”, diz o porta-voz e conselheiro de relações exteriores de Obama, Ben Rhodes. O discurso em questão foi feito por Obama em 2004, e revela muito da mentalidade Democrata. Dizia o ex-presidente no começo do século: “Quando mandamos nossos jovens para o combate, é nossa obrigação não manipular os números, nem ocultar o que eles fazem, e nunca, jamais, combater sem tropas suficientes, ganhar a guerra, conquistar a paz, e conquistar o respeito do mundo.”

Essa é a política externa formal dos Democratas: invadir, conquistar, destruir – mas com transparência. Ao menos em solo norte-americano, onde a densa fumaça das bombas estadounidenses não torna o ar bochornoso e a noção de verdade difusa, como no terceiro mundo. É a compreensão do mundo, dos conflitos, das sanções, como temas de “segurança nacional” dos Estados Unidos, não de “interesses nacionais”. É Obama declarando que o direito à vida e à verdade, em meio à guerra, será exclusivo aos norte-americanos. No mundo real, nem esta promessa é cumprida, é claro.

No documentário não faltam bombas semióticas: Samantha Power negando guarda-chuvas durante uma garoa em um vilarejo qualquer da África, John Kerry como um jovem veterano radical contra a guerra, Ben Rhodes como um jovem democrata que, frente aos aviões que atravessaram o World Trade Center em 11 de setembro, buscou a ação. “Às vezes pensamos que as pessoas agem apenas pelo dinheiro ou que são motivadas pelo poder ou outros incentivos concretos. Mas as pessoas também são motivadas por histórias”, diz Obama durante um fórum com jovens vietnamitas. É este o poder de “The Final Year”: encobrir a desastrosa realidade da política externa norte-americana – exposta de forma naturalizada e até mesmo defendida abertamente – com histórias bonitas. A do jovem fuzileiro contra a guerra do Vietnã que se tornou Secretário de Estado, a da mãe Samantha Power que sente o sequestro de meninas nigerianas nas mãos do Boko Haram como se fossem suas filhas, a de um jovem escritor que queria escrever romances, mas que por um chamado moral foi obrigado a lidar com a dureza da política internacional.

Em resumo, são suas histórias de superação e crescimento pessoais que os obrigam a tomar parte em uma luta do bem contra o mal. Síria, Cuba, Rússia, Ucrânia, Iêmen; não se trata de poder ou dinheiro, mas de “histórias”. É claro que muitos dos que me lêem não acreditam nesse tipo de deboche, mas como reagiria um trabalhador comum ao documentário?

 

Continue lendo

Novo mapa-múndi do IBGE "inverte" representação convencional. (Foto: Reprodução)
O IBGE e os mapas
Cerimônia de celebração dos 80 anos do Dia da Vitória na Segunda Guerra Mundial sobre o fascismo. Praça Vermelha, Rússia - Moscou. (Foto: Ricardo Stuckert / PR)
80 anos depois: lembrando a derrota do fascismo ou testemunhando seu retorno?
Robert Francis Prevost, o papa Leão XIV, se dirige aos fiéis no Vaticano durante sua posse. (Foto: Mazur / cbcew.org.uk / Catholic Church England and Wales / Flickr)
Frei Betto: o legado de Francisco e os desafios do papa Leão XIV

Leia também

São Paulo (SP), 11/09/2024 - 27ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo no Anhembi. (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)
Ser pobre e leitor no Brasil: um manual prático para o livro barato
Brasília (DF), 12/02/2025 - O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, durante cerimônia que celebra um ano do programa Nova Indústria Brasil e do lançamento da Missão 6: Tecnologias de Interesse para a Soberania e Defesa Nacionais, no Palácio do Planalto. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
O bestiário de José Múcio
O CEO da SpaceX, Elon Musk, durante reunião sobre exploração especial com oficiais da Força Aérea do Canadá, em 2019. (Foto: Defense Visual Information Distribution Service)
Fascista, futurista ou vigarista? As origens de Elon Musk
Três crianças empregadas como coolies em regime de escravidão moderna em Hong Kong, no final dos anos 1880. (Foto: Lai Afong / Wikimedia Commons)
Ratzel e o embrião da geopolítica: a “verdadeira China” e o futuro do mundo
Robert F. Williams recebe uma cópia do Livro Vermelho autografada por Mao Zedong, em 1 de outubro de 1966. (Foto: Meng Zhaorui / People's Literature Publishing House)
Ao centenário de Robert F. Williams, o negro armado
trump
O Brasil no labirinto de Trump
O presidente dos EUA, Donald Trump, com o ex-Conselheiro de Segurança Nacional e Secretário de Estado Henry Kissinger, em maio de 2017. (Foto: White House / Shealah Craighead)
Donald Trump e a inversão da estratégia de Kissinger
pera-5
O fantástico mundo de Jessé Souza: notas sobre uma caricatura do marxismo
Uma mulher rema no lago Erhai, na cidade de Dali, província de Yunnan, China, em novembro de 2004. (Foto: Greg / Flickr)
O lago Erhai: uma história da transformação ecológica da China
palestina_al_aqsa
Guerra e religião: a influência das profecias judaicas e islâmicas no conflito Israel-Palestina