Pesquisar
, ,

A cartada norte-coreana

No Paralelo 38N, uma linha desenhada de maneira arbitrária e sem consulta para separar a Coreia em 1945, Kim Jong-Un apertou a mão do presidente Moon Jae-in.

por Pedro Marin | Revista Opera
(Foto: Henrik Ishihara Globaljuggler)

Nos anos 50, para explicar a razão pela qual uma notícia aparecia ou não em um jornal, teóricos da comunicação começaram a desenvolver a teoria do gatekeeper (porteiro). Em resumo, a ideia é a de que o jornalista não é somente aquele que reporta fatos, mas também o que os seleciona; um porteiro que, frente à abundância de informações que graças aos telégrafos e telefones chegam de todos os cantos, a todo momento, é hábil na arte de gerenciar o espaço disponível nas colunas.

O surgimento dos jornais digitais permitiu a extinção desse cálculo. Sob a égide da “neutralidade”, o “jornalismo factual” poderia agora publicar tudo o que tivesse ocorrido. Ironicamente, um dos princípios que regem o trabalho na Revista Opera – um veículo digital – é o do gatekeeper. Isso é decorrente da percepção de que a fartura de fatos é capaz de gerar um ruído ensurdecedor, mais obscuro do que o silêncio: são tantos os fatos que eles perdem valor; não se precisa mais o que é e o que não é relevante.

Por essa razão, o último artigo que publiquei sobre a situação na Península Coreana, um dos mais fundamentais polos do conflito geopolítico global (e pelo qual tenho enorme interesse) foi em setembro passado, quando a República Popular Democrática da Coreia realizou um teste de uma bomba de hidrogênio, por considerar que, até o momento, ele resumia a situação regional. Dizia no artigo:

“O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, respondeu ao disparo dizendo que ‘todas as opções estão na mesa’ quando, na realidade, não há nenhuma. Um blefe envergonhado, não de um jogador com uma mão ruim, mas de alguém que sequer está no jogo; um gorila jogando fichas e urrando da platéia. A posição que a RPDC ocupa no momento atual é de tal vantagem estratégica que qualquer posição tomada por seus adversários – ou mesmo posição nenhuma – lhe é conveniente. Guerrear é impossível; primeiro porque tal decisão teria de partir unilateralmente dos Estados Unidos. Em tese, uma ação militar por parte das 24 mil tropas norte-americanas estacionadas na Coreia do Sul depende da aprovação do país, que não ocorrerá […]”

Nesta quinta-feira (26) a RPDC enfim consolidou abertamente sua vitória – motivo pelo qual escrevo. No Paralelo 38N, uma linha imaginária que está a 38 graus ao norte da Linha do Equador, desenhada de maneira arbitrária e sem consulta à meia noite de um dia de 1945 por Dean Rusk para separar o norte do sul da Coreia, o líder norte-coreano Kim Jong-Un apertou a mão do presidente sul-coreano Moon Jae-in.

Jae-in estendeu sua mão para a esquerda, dando passagem para que Jong-Un passasse ao lado sul da península. Kim Jong-Un deu um passo adiante, sendo o primeiro líder norte-coreano a pisar além do Paralelo desde o armistício de 1953. Logo pegou na mão de Moon Jae-in e o trouxe um passo atrás, para o norte, como quem sussurra: “a Coreia é uma.”

Na terça-feira (24) o presidente norte-americano Donald Trump, que no ano passado falava em “fogo e fúria” sobre o “homenzinho do foguete”, teve de deixar de lado as bravatas, e declarou que Kim Jong-Un é um “líder respeitável”, prometendo encontrá-lo em maio ou junho.

Sul e norte conversam hoje como não conversavam desde 2007. Na Cúpula entre as Coreias, o foco das discussões deve ser o programa nuclear norte-coreano, paralisado desde a semana passada, bem como medidas menores, mas simbólicas. Especulo: outro ponto tratado, e que não constará na agenda pública do evento, é como lidarão com Trump.

A expectativa de Kim Jong-Un é levar a frente uma tradição de mais de 50 anos no norte da Península: a da barganha. Em troca da paralisação de seu programa nuclear, a RPDC garantirá a suspensão de sanções e possíveis benefícios em infraestrutura, possibilitando os próximos passos de seu novo plano econômico para o desenvolvimento, anunciado nesta semana. Trump, o gorila, não joga mais fichas nem urra. Agora, sim, terá lugar à mesa.

Continue lendo

O então comandante do Exército, Freire Gomes, ao lado do então presidente, Jair Bolsonaro, durante desfile de 7 de setembro em Brasília, em 2022. (Foto: Alan Santos/PR)
Freire Gomes: no depoimento de um “legalista”, o caminho para a impunidade militar
Mural anti-imperialista pintado na Embaixada dos EUA em Teerã após a crise dos reféns. (Foto: Phillip Maiwald (Nikopol) / Wikimedia Commons)
Sanções como guerra civilizacional: o custo humanitário da pressão econômica dos EUA
Em diferentes contextos, líderes de extrema direita promovem um modelo de governança que algema o Estado de suas funções redistributivas, enquanto abre caminho para que o cripto-corporativismo baseado em IA opere livremente – às vezes até promovendo seu uso como política oficial do Estado. (Foto: Santiago Sito ON/OFF / Flickr)
Por que a extrema direita precisa da violência

Leia também

São Paulo (SP), 11/09/2024 - 27ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo no Anhembi. (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)
Ser pobre e leitor no Brasil: um manual prático para o livro barato
Brasília (DF), 12/02/2025 - O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, durante cerimônia que celebra um ano do programa Nova Indústria Brasil e do lançamento da Missão 6: Tecnologias de Interesse para a Soberania e Defesa Nacionais, no Palácio do Planalto. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
O bestiário de José Múcio
O CEO da SpaceX, Elon Musk, durante reunião sobre exploração especial com oficiais da Força Aérea do Canadá, em 2019. (Foto: Defense Visual Information Distribution Service)
Fascista, futurista ou vigarista? As origens de Elon Musk
Três crianças empregadas como coolies em regime de escravidão moderna em Hong Kong, no final dos anos 1880. (Foto: Lai Afong / Wikimedia Commons)
Ratzel e o embrião da geopolítica: a “verdadeira China” e o futuro do mundo
Robert F. Williams recebe uma cópia do Livro Vermelho autografada por Mao Zedong, em 1 de outubro de 1966. (Foto: Meng Zhaorui / People's Literature Publishing House)
Ao centenário de Robert F. Williams, o negro armado
trump
O Brasil no labirinto de Trump
O presidente dos EUA, Donald Trump, com o ex-Conselheiro de Segurança Nacional e Secretário de Estado Henry Kissinger, em maio de 2017. (Foto: White House / Shealah Craighead)
Donald Trump e a inversão da estratégia de Kissinger
pera-5
O fantástico mundo de Jessé Souza: notas sobre uma caricatura do marxismo
Uma mulher rema no lago Erhai, na cidade de Dali, província de Yunnan, China, em novembro de 2004. (Foto: Greg / Flickr)
O lago Erhai: uma história da transformação ecológica da China
palestina_al_aqsa
Guerra e religião: a influência das profecias judaicas e islâmicas no conflito Israel-Palestina