Pesquisar
, , ,

Bresser-Pereira: Regime militar estava “acima do bem e do mal” para os liberais

Em entrevista exclusiva para livro "Golpe é Guerra", Bresser-Pereira esclarece condições para a chamada "abertura democrática."

por Pedro Marin | Revista Opera
São Paulo – Manifestação na Avenida Paulista, região central da capital, contra a corrupção e pela saída da presidenta Dilma Rousseff (Rovena Rosa/Agência Brasil)

O que segue é parte de uma entrevista concedida por Luiz Carlos Bresser-Pereira a Pedro Marin em 31 de janeiro de 2018. A entrevista integral consta no livro “Golpe é Guerra – Teses para enterrar 2016”, escrito por Pedro Marin, que será lançado em São Paulo no próximo dia 5. Já é possível adquirir exemplares assinados durante a pré-venda.

__

Pedro Marin: Eu parti do estudo de O Colapso de uma Aliança de Classe, que o senhor escreve em 1978, então queria que o senhor falasse um pouco sobre as teses que desenvolveu nesse livro.

Bresser-Pereira: E fizesse uma relação com a atualidade?

Pedro Marin: Bom, essa era a minha segunda pergunta, na verdade. Mas se o senhor quiser pular, não há problema.

Bresser-Pereira: Não, não, vamos com a primeira. Este livro, O Colapso de uma Aliança de Classes, creio que foi o primeiro livro que tratou do problema da transição para a democracia no Brasil. E esse livro nasceu do fato de que a partir do final de 1974, quando Eugênio Gudin foi, com 95 anos, eleito “homem de visão” daquele ano, e fez um discurso em dezembro, fazendo a crítica do regime militar. Quer dizer, o regime militar, desde 1964, estava acima do bem e do mal para os liberais. E de repente lá estava o príncipe, o rei dos liberais, mostrando sua preocupação e especialmente fazendo a crítica das empresas estatais ou da estatização que estava acontecendo. Em seguida, no ano seguinte, essa campanha contra a estatização prosseguiu muito forte na imprensa, e a pessoa que mais se destacou nessa época foi um engenheiro, o [Henry] Maksoud, que foi também quem construiu o hotel [Maksoud], e era uma coisa muito curiosa, porque eles faziam a crítica da estatização de uma perspectiva liberal, mas não criticavam os militares.

Em abril de 1977 o Geisel faz o “pacote de abril”, ou seja, um pacote de medidas autoritárias muito violentas. Ele tinha chegado ao poder e disse que queria começar a distensão, e tinha feito muito pouco nessa direção, e de repente ele vira tudo. Não havia sido aprovada uma lei qualquer que ele estava propondo no Congresso, e a partir desse momento ele fecha o Congresso por algum tempo, muda a Constituição, cria senadores biônicos, transformou os territórios em “estados” e elegeu em cada território oito deputados… Enfim, fez uma festa autoritária-inconstitucional. E, para minha surpresa, eu vi que a burguesia ficou indignada. Tratava-se de um fato histórico novo, de uma coisa nova, e eu escrevi um artigo na Folha chamado “A Ruptura de uma Aliança de Classes”. Depois eu fui escrevendo outros, e após um certo tempo já estava querendo fazer meu livro, que saiu no ano seguinte.

Esse livro vai explicar a transição democrática a partir de um fato histórico novo; então todas as minhas teorias estão amarradas à ideia de um fato histórico novo. Para explicar algo novo, tenho que ter alguma coisa nova para explicar, não posso explicar com as coisas antigas. E o fato histórico novo foi justamente essa mudança de posição da burguesia. Antes já havia ocorrido uma mudança de posição na igreja, que inicialmente se apoiou [na ditadura], mas não chegou a ser uma coisa que fez muita diferença, enquanto que a mudança de posição da burguesia, ainda que não tenha sido uma mudança claríssima, mas houve… Quer dizer, realmente ela tornou a luta pela democracia, que vinha dos trabalhadores, da esquerda, nessa época já da igreja também, bastante reforçada. E perdia- se qualquer ideia de “comunismo” ou coisa que valha, que havia sido a causa do golpe militar de 1964.

Agora, mais amplamente, esse livro pressupunha que a burguesia não era essencialmente antidemocrática. Porque a teoria que a esquerda nesta época desenvolvia era a de que a burguesia, ao menos na América Latina, era estruturalmente ou essencialmente autoritária. Quem defendeu isso mais coerentemente foi o Guillermo O’Donnell, um ilustre cientista político argentino, que discutiu sobre o “Estado burocrático- autoritário.” Eu chamava o Estado que existia no Brasil de tecno-burocrático, e ele veio com essa história do burocrático. Mas ele pôs um elemento político que eu não punha, que era o burocrático-autoritário, e dizia que esse caráter burocrático- autoritário do Estado latino-americano — ele queria com isso explicar todos os golpes militares que houve na América Latina — como um processo através do qual se fazia o aprofundamento do investimento no setor industrial. Creio que era mais ou menos isso. Bom, seria portanto uma coisa inerente à burguesia, associada aos burocratas, ser autoritária. E eu falei “não, isso não é verdade”. Historicamente a burguesia acabou sendo democrática, ou ao menos não impôs um veto rigoroso à democracia. Isso na verdade era uma outra teoria que eu estava desenvolvendo, que não podia desenvolver naquele livro, e que só desenvolvi muitos anos mais tarde, depois que passei pela política, primeiro com o Montoro, e depois como ministro do Sarney, brevemente, e depois quando trabalhei com o Fernando Henrique. E essa teoria está em um trabalho, que passei anos escrevendo, chamado “Transição, consolidação democrática e revolução capitalista”, saiu na DADOS. E o que diz este trabalho? Diz que a democracia é inviável, impossível, nos regimes pré-capitalistas, porque nos regimes pré-capitalistas quem dominava era uma oligarquia que se apropriava do excedente econômico na medida em que dominava o Estado. Dominava o Estado e tinha terras, mas o controle do Estado era fundamental para essa oligarquia se apropriar do excedente econômico, de várias maneiras. Então a ideia de alternância de poder, por exemplo, fica absurda em um sistema desses.

Agora, quando você tem a revolução capitalista, esta revolução logo se torna liberal — não democrática, liberal. Porque para que o mercado funcione é preciso que se garanta os direitos civis — ou como gostam de falar agora os neoliberais, garanta a propriedade e os contratos. Ou, em outras palavras, que garanta o funcionamento do mercado. Então o capitalismo, em uma economia de mercado, tem que garantir os direitos civis. E garantidos estes a apropriação do excedente se realiza no mercado, sem o uso direto da força. Você não precisa do controle do Estado para fazer a apropriação do excedente; ela vai ser feita no mercado, através da troca de equivalências — essa expressão é do Marx. Quer dizer, se realizará através do lucro ou mais-valia, através da troca de valores que são equivalentes, de acordo com a teoria do valor-trabalho.

Isso não significa que a burguesia tenha virado democrática, mas ela deixou de aplicar um veto, e nesse ensaio eu vou dizer que durante um século — supondo que a primeira revolução capitalista, que para mim acontece país por país… A primeira a acontecer foi sem dúvidas a inglesa, quando a Inglaterra completa sua revolução industrial por volta de 1800. E demorou mais ou menos um século para que a lei da garantia dos direitos civis, que é uma condição da democracia, fosse preenchida. Segunda condição para que haja democracia, para mim: que haja sufrágio universal. Quer dizer, a burguesia foi contra o sufrágio universal, afirmando que implicaria na “ditadura da maioria”, e na expropriação da burguesia, mas aos poucos ela foi percebendo que isso era falso, e por outro lado a pressão pelo sufrágio universal era muito grande, e aos poucos os países foram concedendo o sufrágio universal. O primeiro foi a Nova Zelândia, o que é interessante; um pequeno país, bem igualitário. Isso em 1893, por aí. Então essa é a teoria desse trabalho. E no Brasil a transição democrática vai acontecer exatamente nos anos 1980, quando o país tinha praticamente terminado sua revolução capitalista. Durante o regime militar se completa toda a montagem de uma estrutura econômica moderna, industrial; uma grande classe média, uma grande classe empresarial, e portanto o Brasil era um país capitalista, e a democracia tornava-se natural para ele. E isso explica o porquê da democracia ter sido conseguida naquela época, em 1985. Quer dizer, a minha previsão de que a democracia aconteceria, que está no O Colapso de uma Aliança de Classes, se confirmou de uma maneira razoável.

Essa é a teoria; se você quiser jogar isso para agora, para o golpe, é interessante. Porque a primeira coisa é o seguinte: esse foi um golpe contra o PT, um partido de centro-esquerda, e contra um líder populista e carismático, que é o Lula. E ele decorreu do mau governo que a Dilma fez; ela fez um mau governo, não soube governar nem a parte econômica, nem a parte política — mulher séria, respeitável, mas que infelizmente não estava ao nível ou não tinha condições para ser Presidente da República, e portanto cometeu erros desmoralizaram seu governo. E deveu-se à inconformidade das elites brasileiras com o presidente ou com um partido político no poder que fosse de centro-esquerda, embora fazendo muitos compromissos com a direita, especialmente com o capital bancário, com os financistas, como prefiro chamar.

O fato é que as elites liberais financeiro-rentistas brasileiras, quando foram derrotadas na reeleição da Dilma, e o Aécio Neves propôs no dia seguinte o impeachment — o que é uma política de república das bananas — as elites acharam boa essa ideia, e começaram a acariciá-la. O que é uma contradição com aquela teoria, o que mostra que essas teorias não são 100%. Realmente é uma contradição, mas o fato é que eles viram uma fraqueza, viram que o PT não tinha nenhum apoio na sociedade — se você for ver a reeleição da Dilma ela só obteve voto de pobre. Quer dizer, no nordeste houve alguma coisa, mas muito pouco de apoio nas classes médias tradicionais e na classe alta, praticamente zero. Então ela estava contra a sociedade civil, estava enfraquecida. Ela tinha cometido muitos erros, e aí surgiu o momento maquiavélico, pelo qual você está interessado, não é? O movimento maquiavélico é, ao meu ver, o Temer e o Moreira Franco. Moreira Franco é minha hipótese, eu não tenho informação objetiva a respeito disso, mas eu o conheço bem; é um homem muito inteligente, e bastante maquiavélico, no sentido inclusive pejorativo da palavra.

Quer dizer, neste quadro, com um governo mal-sucedido e com falta de apoio na burguesia, ou nas classes médias e altas, nas elites, a isso se somava que de repente, em 2015, uma crise fiscal e econômico-financeira. São duas crises diferentes; a crise econômico-financeira decorreu do endividamento das empresas, especialmente as empresas industriais, que devido a uma valorização muito forte da taxa de câmbio entre 2007 e 2014, e altos déficits de conta corrente, que vieram com isso, as empresas se endividaram muito. E se endividaram em uma taxa de juros geralmente muito alta, de forma que quando chegaram em 2014 estavam sem recursos para investir, sem condições, sem crédito, porque haviam se endividado muito e sua taxa de lucro havia baixado drasticamente. A taxa média de lucro em 2013 ou 2014, não tenho certeza, era 4%; uma coisa ridícula. Média, e não conta as que quebraram e que fecharam, que não constam na média. Então desencadeia-se uma crise, uma recessão grave, de três anos. Mas ao mesmo tempo que os brasileiros se davam conta desta recessão, se davam conta também que o Brasil entrava em uma crise fiscal. Porque o Brasil havia feito um acordo com o FMI, em uma crise lá no primeiro mandato do FHC, em 1988, 1989, tinha feito um acordo para manter um superávit primário de 3% do PIB. Um superávit primário que mantivesse a relação dívida pública e PIB constante. E isso foi mantido durante os governos do FHC, do Lula e inclusive nos primeiros anos de governo da Dilma, ainda que isso já estivesse começando a ficar periclitante. De repente, no terceiro ou quarto ano, chegamos a janeiro ou fevereiro de 2015, e descobrimos que nosso superávit primário, que era quase 2% em 2013, agora era negativo em 0,6% do PIB. Então isso também foi extremamente enfraquecedor para o governo, estas duas crises: a crise fiscal, associada aos gastos populistas da Dilma, e as desonerações de impostos, de folha de pagamento, e a queda da receita, que a recessão causou. Diante disso, surgiu, então, a oportunidade maquiavélica.

O vice-presidente da República, o senhor Michel Temer, poderia se beneficiar muito bem de um impeachment, e foi montada uma estratégia para isso, no meu entender — era bom que jornalistas, ou historiadores, fizessem a verificação empírica do que estou afirmando — mas a estratégica foi relativamente simples, e eu juro que foi o Moreira que fez. Porque ele também era o presidente da Fundação Ulysses Guimarães. Ele encomendou a economistas rigorosamente neoliberais, radicalmente liberais, um documento, que foi preparado e chamou-se “Uma Ponte para o Futuro”, e que foi apresentado a uma convenção do PMDB — na verdade não estava sendo apresentado ao PMDB coisa nenhuma, estava sendo apresentado o plano para as elites neoliberais, financeiro- rentistas brasileiras, e ao PSDB, que é o partido político que as representa. E eles gostaram, então se aliaram, e disso resultou o impeachment. E foi bem maquiavélico, foi uma estratégia bem bolada e bem executada, do Temer e do Moreira Franco. Em que mais posso ajudar?

Pedro Marin: Bom, é…

Bresser-Pereira: Eu contei muita coisa para você!

Pedro Marin: Muita coisa, coisas importantes, inclusive — vou dar uma olhada no Moreira Franco [risos].

Bresser-Pereira: [risos]

Continue lendo

O então comandante do Exército, Freire Gomes, ao lado do então presidente, Jair Bolsonaro, durante desfile de 7 de setembro em Brasília, em 2022. (Foto: Alan Santos/PR)
Freire Gomes: no depoimento de um “legalista”, o caminho para a impunidade militar
Em diferentes contextos, líderes de extrema direita promovem um modelo de governança que algema o Estado de suas funções redistributivas, enquanto abre caminho para que o cripto-corporativismo baseado em IA opere livremente – às vezes até promovendo seu uso como política oficial do Estado. (Foto: Santiago Sito ON/OFF / Flickr)
Por que a extrema direita precisa da violência
Novo mapa-múndi do IBGE "inverte" representação convencional. (Foto: Reprodução)
O IBGE e os mapas

Leia também

São Paulo (SP), 11/09/2024 - 27ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo no Anhembi. (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)
Ser pobre e leitor no Brasil: um manual prático para o livro barato
Brasília (DF), 12/02/2025 - O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, durante cerimônia que celebra um ano do programa Nova Indústria Brasil e do lançamento da Missão 6: Tecnologias de Interesse para a Soberania e Defesa Nacionais, no Palácio do Planalto. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
O bestiário de José Múcio
O CEO da SpaceX, Elon Musk, durante reunião sobre exploração especial com oficiais da Força Aérea do Canadá, em 2019. (Foto: Defense Visual Information Distribution Service)
Fascista, futurista ou vigarista? As origens de Elon Musk
Três crianças empregadas como coolies em regime de escravidão moderna em Hong Kong, no final dos anos 1880. (Foto: Lai Afong / Wikimedia Commons)
Ratzel e o embrião da geopolítica: a “verdadeira China” e o futuro do mundo
Robert F. Williams recebe uma cópia do Livro Vermelho autografada por Mao Zedong, em 1 de outubro de 1966. (Foto: Meng Zhaorui / People's Literature Publishing House)
Ao centenário de Robert F. Williams, o negro armado
trump
O Brasil no labirinto de Trump
O presidente dos EUA, Donald Trump, com o ex-Conselheiro de Segurança Nacional e Secretário de Estado Henry Kissinger, em maio de 2017. (Foto: White House / Shealah Craighead)
Donald Trump e a inversão da estratégia de Kissinger
pera-5
O fantástico mundo de Jessé Souza: notas sobre uma caricatura do marxismo
Uma mulher rema no lago Erhai, na cidade de Dali, província de Yunnan, China, em novembro de 2004. (Foto: Greg / Flickr)
O lago Erhai: uma história da transformação ecológica da China
palestina_al_aqsa
Guerra e religião: a influência das profecias judaicas e islâmicas no conflito Israel-Palestina