Pesquisar
, , , ,

“Razão” acima da política: como The Economist retrata a austeridade desde 1945

Enquadrar a austeridade como necessária tem sido o caminho dominante[3] seguido pelos principais meios de comunicação ao descreverem os cortes de gastos, aumentos de impostos e “reformas estruturais.”

por Timo Harjuniemi | LSE – Tradução de Gabriel Deslandes

“A verdade desagradável é que a austeridade está à frente, não importando quem vencer nas pesquisas e o que quer que os partidos digam sobre isso”. Foi assim que The Economist abordou o estado das finanças públicas britânicas antes da eleição geral de 2010[1]. Simplesmente não havia alternativa à austeridade, e o setor público do Reino Unido precisava ser submetido a “uma dieta dura e prolongada”.

Como os estudiosos do jornalismo observaram[2], enquadrar a austeridade como necessária tem sido o caminho dominante[3] seguido pelos principais meios de comunicação ao descreverem os cortes de gastos, aumentos de impostos e “reformas estruturais” de estímulo à competitividade implementadas por governos de centro-esquerda e centro-direita após a crise financeira de 2007-2008. Apesar das diferenças entre as várias economias na Europa, a austeridade foi concebida como uma cura necessária em todo o continente.

Entretanto, isso não é uma novidade no jornalismo contemporâneo. Como ilustrei em um estudo recente[4], essa tendência de tornar a austeridade uma solução inevitável para problemas econômicos é característica do modo como The Economist discutiu a austeridade desde a Segunda Guerra Mundial. Para a Grã-Bretanha do pós-guerra[5], a austeridade era um remédio terrível, mas necessário, para enfrentar os problemas econômicos enfrentados por uma nação que se recuperava das dificuldades da guerra. The Economist observou que a austeridade – na forma de racionamento – era necessária para domar o déficit na balança de pagamentos e combater a inflação. As circunstâncias econômicas não deixavam espaço para alternativas, argumentava The Economist, embora a própria ideia de o Estado interferir nas transações do mercado contradissesse a história liberal da revista[6].

De maneira semelhante, The Economist viu a austeridade como parte do desenvolvimento natural da França no início dos anos 80. O presidente socialista François Mitterrand[7], eleito em 1981, estava finalmente abandonando as ideias keynesianas e adotando a austeridade como forma de simplificar a economia francesa para atender às demandas da economia global. A mudança de Mitterrand de um gastador keynesiano e um defensor do Estado grande para um conservador fiscal prudente foi anunciada como o triunfo da razão. O pensamento ideológico estava finalmente abrindo espaço para uma visão pragmática sobre a formulação de políticas econômicas. Sob o olhar atento do mercado, Mitterrand estava “modernizando” a França. Contudo, a lógica sólida da austeridade foi retratada como estando constantemente em perigo de ser superada por tentações populistas. Os políticos, pressionados pelo público insatisfeito que sofre com aumentos de impostos e cortes de gastos públicos, são naturalmente avessos a decisões difíceis, argumentou The Economist.

Pode-se argumentar, é claro, que esses exemplos são esperados por parte da The Economist, que é frequentemente rotulado como o jornal preferido das elites globais[8] e da classe capitalista internacional, mas dispensar The Economist como antiética ao jornalismo convencional, que deseja se posicionar acima da disputa política, seria um erro[9]. Pelo contrário, The Economist incorpora muitas virtudes do jornalismo moderno e objetivo. Desde a sua criação em 1843, The Economist se orgulha do fato de que o jornalismo é baseado em fatos, razão e deliberações sutis. Em vez de ser um porta-voz para interesses pessoais, a revista se posiciona no “centro radical”[10], para além da tradicional divisão esquerda-direita. Ele deseja atender a um público inteligente e sofisticado e é lido não apenas pelas elites globais, mas também por “hipsters no metrô”[11]. Quando The Economist celebra os efeitos da globalização e do livre comércio, ela se considera falando pelos pobres e desprivilegiados do mundo, aqueles que não são servidos por políticos guiados por interesses mesquinhos. De fato, The Economist fala pelo “projeto humanista moderno”[12].

É digno de nota que esse ethos tem sido característico do jornalismo tradicional desde o final do século XIX, quando as revistas começaram a se desligar dos partidos políticos. No coração do jornalismo, a ideia de fatos substituiu posições ideológicas, e o jornalismo se tornou o guardião do que foi percebido como o “bem comum”. Gradualmente, a despolitização do jornalismo contribuiu para um estilo jornalístico e uma compreensão da sociedade que pode ser descrita como “pós-ideológica”[13]. Essa é uma compreensão do mundo não caracterizada por diferentes visões de mundo e posições político-ideológicas, mas por um consenso racional que pode ser alcançado via expertise, soluções de mercado e cuidadosa deliberação pública. Essa condição pós-política foi cristalizada pelos sociais-democratas da Terceira Via, como Tony Blair e Gerhard Schröder. Como líderes políticos, esses gerentes tecnocráticos abraçaram o liberalismo de mercado e a globalização como os fundamentos incondicionais de um regime de economia política pós-Guerra Fria.

No jornalismo, essa visão de mundo pós-ideológica produz, como argumenta Sean Phelan[14], certo grau de cinismo antipolítico. Na linguagem jornalística, a política é muitas vezes jogada como uma palavra suja, algo antiético aos fatos objetivos da expertise econômica e das soluções baseadas no mercado. É exatamente por isso que The Economist apresenta debates sobre questões como a austeridade, não em contestações entre diferentes posições políticas, mas entre o racional e o irracional. Os políticos são – devido a fixações ideológicas ou pressão eleitoral – incapazes de adotar uma postura razoável em relação à política econômica. Os políticos tendem a evitar a difícil austeridade ou, alternativamente, exageram a austeridade com um vigor “obsessivo”[15]. Ao mesmo tempo, a posição realista da The Economist sobre a austeridade é caracterizada por um raciocínio legal e diferenciado, o senso comum[16].

Em vez de aproveitar um debate crítico entre pontos de vista fundamentalmente diferentes, o jornalismo de qualidade objetiva tende a despolitizar os debates de política econômica. O debate sobre a austeridade, por exemplo, torna-se um debate sobre a escala e o timing da austeridade, cuja necessidade quase não é questionada. Nesses debates, o pensamento econômico dominante e as demandas do mercado tornam a austeridade uma solução técnica, deslegitimando assim quaisquer alternativas radicais e sufocando um debate político verdadeiramente pluralista. Porém, com o objetivo de alcançar verdadeiramente um debate com múltiplas vozes sobre questões de formulação de políticas econômicas, os jornalistas devem criticar criticamente tais “termos de Deus”[17] do jornalismo moderno, como objetividade.

Fontes:

[1] – https://www.economist.com/node/15393679

[2] – https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/14782804.2015.1135109

[3] – http://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/1464884917708870?journalCode=joua

[4] – https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/1461670X.2018.1423633?tokenDomain=eprints&tokenAccess=YxgtvqQabt6XVWpRXnBG&forwardService=showFullText&doi=10.1080%2F1461670X.2018.1423633&doi=10.1080%2F1461670X.2018.1423633&journalCode=rjos20

[5] – https://www.theguardian.com/books/2007/may/20/historybooks.features

[6] – https://www.economist.com/help/about-us

[7] – https://en.wikipedia.org/wiki/Fran%C3%A7ois_Mitterrand

[8] – https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/1360082042000272463

[9] – http://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/1464884915599949?journalCode=joua

[10] – https://www.economist.com/blogs/economist-explains/2013/09/economist-explains-itself-0

[11] – https://www.nytimes.com/2010/08/09/business/media/09economist.html?pagewanted=all

[12] – https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/1360082042000272463?needAccess=true&journalCode=cgsj20

[13] – http://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/1464884915614244

[14] – https://www.palgrave.com/br/book/9781137308351

[15] – https://www.economist.com/node/21555916

[16] – https://www.economist.com/news/leaders/21565211-debate-about-budget-cuts-has-become-dangerously-theological-deficit-common-sense

[17] – https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/1479142042000180953

Continue lendo

O então comandante do Exército, Freire Gomes, ao lado do então presidente, Jair Bolsonaro, durante desfile de 7 de setembro em Brasília, em 2022. (Foto: Alan Santos/PR)
Freire Gomes: no depoimento de um “legalista”, o caminho para a impunidade militar
Mural anti-imperialista pintado na Embaixada dos EUA em Teerã após a crise dos reféns. (Foto: Phillip Maiwald (Nikopol) / Wikimedia Commons)
Sanções como guerra civilizacional: o custo humanitário da pressão econômica dos EUA
Em diferentes contextos, líderes de extrema direita promovem um modelo de governança que algema o Estado de suas funções redistributivas, enquanto abre caminho para que o cripto-corporativismo baseado em IA opere livremente – às vezes até promovendo seu uso como política oficial do Estado. (Foto: Santiago Sito ON/OFF / Flickr)
Por que a extrema direita precisa da violência

Leia também

São Paulo (SP), 11/09/2024 - 27ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo no Anhembi. (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)
Ser pobre e leitor no Brasil: um manual prático para o livro barato
Brasília (DF), 12/02/2025 - O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, durante cerimônia que celebra um ano do programa Nova Indústria Brasil e do lançamento da Missão 6: Tecnologias de Interesse para a Soberania e Defesa Nacionais, no Palácio do Planalto. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
O bestiário de José Múcio
O CEO da SpaceX, Elon Musk, durante reunião sobre exploração especial com oficiais da Força Aérea do Canadá, em 2019. (Foto: Defense Visual Information Distribution Service)
Fascista, futurista ou vigarista? As origens de Elon Musk
Três crianças empregadas como coolies em regime de escravidão moderna em Hong Kong, no final dos anos 1880. (Foto: Lai Afong / Wikimedia Commons)
Ratzel e o embrião da geopolítica: a “verdadeira China” e o futuro do mundo
Robert F. Williams recebe uma cópia do Livro Vermelho autografada por Mao Zedong, em 1 de outubro de 1966. (Foto: Meng Zhaorui / People's Literature Publishing House)
Ao centenário de Robert F. Williams, o negro armado
trump
O Brasil no labirinto de Trump
O presidente dos EUA, Donald Trump, com o ex-Conselheiro de Segurança Nacional e Secretário de Estado Henry Kissinger, em maio de 2017. (Foto: White House / Shealah Craighead)
Donald Trump e a inversão da estratégia de Kissinger
pera-5
O fantástico mundo de Jessé Souza: notas sobre uma caricatura do marxismo
Uma mulher rema no lago Erhai, na cidade de Dali, província de Yunnan, China, em novembro de 2004. (Foto: Greg / Flickr)
O lago Erhai: uma história da transformação ecológica da China
palestina_al_aqsa
Guerra e religião: a influência das profecias judaicas e islâmicas no conflito Israel-Palestina