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Carta no coturno – Os militares e o Brasil sob tutela [parte 2]

Deixar de se mobilizar em função do medo do inimigo já é em si o fortalecimento do inimigo. Se existem forças que querem tutelar a política brasileira, que sejam derrotadas ou ao menos obrigadas a fazê-lo abertamente.
por Pedro Marin | Revista Opera
(Foto: Felipe Barra / Ministério da Defesa)

Este artigo é uma continuação de “Carta no coturno – Anatomia da intervenção no Rio“, publicado em 15 de março deste ano. A leitura do artigo que o antecede é recomendada.

Gabriel García Márquez descreveu em uma matéria de 2003 intitulada “Chile, o golpe e os gringos” um jantar ocorrido nos subúrbios de Washington no final de 1969. Estavam presentes três generais do Pentágono, quatro militares chilenos, alguns pedaços de vitela, ervilhas e vinhos latino-americanos. Ao final do jantar, degustando uma salada de frutas, conta Márquez que um dos militares norte-americanos perguntou o que o exército chileno faria caso o candidato da esquerda, Salvador Allende, ganhasse as próximas eleições. O general chileno Carlos Toro Mazote respondeu: “Tomaremos o palácio de La Moneda em meia hora, ainda que te­nhamos de incendiá-lo.” Demorou mais do que meia hora, mas no dia 11 de setembro de 1973 o general Ernesto Baeza, presente neste jantar, de fato coordenou um assalto ao palácio presidencial, que terminou com a morte do presidente eleito e afundou o Chile em 17 anos de ditadura militar.

Quão útil seria ter hoje, como teve Gabo, detalhes sobre as preferências gastronômicas do alto-escalão de nosso exército!

Não há dúvidas quanto ao tamanho do impacto que a a greve dos caminhoneiros teve contra Temer. A crise causada foi de tal magnitude que, como escrevi em meu último artigo, a queda do governo era tomada como provável não só por seus inimigos, como também pelos seus antigos aliados. Mais uma vez, todavia, houve por parte do PT a inação, em um momento em que até o PSDB já operava com a possibilidade da queda de Temer. A principal razão para a falta de iniciativa do partido se deu pelo o que foi entendido como uma escalada dos pedidos por uma intervenção militar, e o advindo receio de que ela se concretizasse. Também tratei brevemente em meu último artigo sobre esse tema, prometendo considerações mais aprofundadas neste.

Direção militar

Os receios não foram indevidos. Reportagem de Allan de Abreu na Piauí dá conta de que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e a Procuradoria Geral da República (PGR) iniciaram uma investigação com o objetivo de apurar a participação de militares, tanto do exército quanto da polícia, nas movimentações dos caminhoneiros. Os indícios são a “falta de pulso” da polícia na repressão aos pontos de bloqueios e a aparição de atos de sabotagem, com o ocorrido em Bauru, onde um trem que carregava combustível descarrilou.

Por outro lado, houve pronunciamentos do alto-escalão militar pouco simpáticos à greve. O general Antônio Mourão, que no passado falava em “impor uma solução” caso o Judiciário não “resolvesse o problema político”, declarou seu descontentamento com a proposta de uma intervenção contra o governo, dizendo que os caminhoneiros “faziam a população de refém.” “Tem gente que quer as Forças Armadas incendiando tudo. E a coisa não pode ser assim, não pode ser desse jeito. Não concordo. Soluções dessa natureza a gente sabe como começam e não sabe como terminam.” Mourão criticou também a greve da Federação Única dos Petroleiros. “A FUP é ligada à CUT. Alguém viu a FUP entrar em greve quando se roubou a Petrobras até não poder mais?” Ainda assim, Mourão fez uma ressalva: “É um governo fraco, não tenho mais dúvida nenhuma. O governo está tentando se salvar, vamos dizer, está tentando não ir para a cadeia.”

O comandante do exército, general Villas Boas, teve uma postura menos paradoxal. Foi acompanhado pelo general Augusto Heleno, ex-comandante no Haiti. De acordo com a Carta Capital, no entanto, a possibilidade de intervenção militar foi tema de debates também nas esquinas do Congresso. O deputado Celso Russomano, do PRB, contatou o comandante militar do Sudeste, general Luiz Eduardo Ramos Baptista Pereira, que disse que Brasília precisava resolver a crise para evitar o risco de uma rebelião na tropa.

Salta aos olhos a posição de Villas Boas. É claro que, se tratando da liberdade de Lula, Villas Boas e Mourão tinham uma posição única. Quanto a um presidente à beira do precipício em meio a uma crise de abastecimento, suas declarações são dúbias, mas defensivas. Falavam em “resolver o problema” quando se tratava de prender Lula, mas usam luvas de pelica para tratar de Temer.

Os dirigidos dirigindo

As declarações do alto-escalão do exército afastam, algumas menos e outras mais, a aparência de desejo pelo poder. Resta saber se fazem parecer o que querem fazer ou se desejam fazer o que não fazem parecer. Independente disso, a declaração do general Luiz Eduardo Ramos Baptista Pereira parece ser a chave para compreender os riscos: frente à crise, o perigo não vem de cima, da redoma decisória, mas de baixo, da tropa. Instigados por movimentos pró-intervenção e havendo descontentamento, nasce vontade de ação nos escalões mais baixos das Forças Militares. Só faltará quem a operacionalize – e haverá, sempre haverá. Nasce a possibilidade dos dirigidos dirigirem, contanto que haja um cenário que possibilite uma ruptura, como a greve dos caminhoneiros.

A próxima pergunta se apresenta: para onde? O rumo será dado pela força que operacionalizar o descontentamento. A tendência é que seja também uma nova farsa, como previa em maio do ano passado: “Dado o esfacelamento vindouro deste governo, restará como aposta somente três fichas: a da farsa estética, a de um grande pacto, ou a da força. Nenhuma delas interessa aos brasileiros, é claro, mas é nosso dever estabelecer qual delas interessará às classes dominantes.”

Que fazer?

A justificativa petista para a falta de ação no sentido de apertar o cerco contra Temer foi o risco de algum tipo de levantamento militar neste processo. Respondendo à pergunta “por que a CUT não se aproveitou da greve de caminhoneiros e petroleiros para chamar uma greve geral*”, o presidente da central sindical, Vagner Freitas, declarou que “haviam muitos interesses difusos nessas greves”, citando o “locaute” dos empresários e os pedidos por intervenção militar. “E aí a CUT prestou atenção e falou: vamos discutir qual é o interesse que temos nisso.”

Isto demonstra que o receio era o de que, ao fortalecer um movimento, seus atores seriam também fortalecidos. Há aqui de fato uma preocupação justa. Como ensinou Maquiavel, recorrer às armas auxiliares – isto é, às armas que não são próprias – é fórmula para a derrota. Há no entanto uma consideração a se fazer: O gênio florentino tratava da defesa do Principado – isto é, da dependência em forças alheias para defender seu governo, não das alianças para o ataque. Acima de tudo, tratou desta maneira daquelas armas que são conseguidas por meio de acordos com outras forças poderosas. No caso dos caminhoneiros, o que parece ter ocorrido foi uma dispersão de ideias e de influências de atores políticos que se posicionavam e uniam à greve. Tornar-se um ator fortalecido, portanto, era possível. Apesar dessas digressões, reconheço que a postura petista, e em especial da CUT, possa ter sido a mais inteligente – mas isso depende inteiramente da capacidade de mobilizar e organizar forças. Se a capacidade destas organizações era menor do que a dos outros atores envolvidos ou infiltrados na greve, fizeram bem ao não fortalecer o movimento. Mas se sua capacidade era maior, perderam uma chance de ouro.

O fato é que, independente dos riscos que se apresentaram no passado recente, a lição mais relevante a ser aprendida é a de que o futuro também os reserva. A greve dos caminhoneiros demonstrou de maneira cristalina um ponto que tenho levantado já há algum tempo: o de que o movimento, na política, tem sua origem na demonstração de forças. O que não quer se tornar refém da história deve ter a iniciativa de nela combater antes que outros o façam. Devem ter iniciativa, caso contrário sempre darão respostas à história e nunca lhe farão perguntas.

Deixar de se mobilizar em função do medo do inimigo já é em si o fortalecimento do inimigo. Se existem forças que querem tutelar a política brasileira, que sejam derrotadas ou ao menos obrigadas a fazê-lo abertamente. A coragem leva às estrelas, o medo à morte, dizia Sêneca. A estrela rubra, neste caso, segue se aproximando da tumba.

*Há uma fagulha de ingenuidade na pergunta, naturalmente, porque a greve geral não é um decreto. Consideremos que a pergunta seja “por que a CUT não se aproveitou da greve de caminhoneiros e petroleiros mobilizar suas bases com mais firmeza?”

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